domingo, 14 de agosto de 2022

A última tarde

Muitas peles de cordeirinhos pendiam da cerca. Porfirio Lasta ouviu na cantoria da tarde uma espécie de amanhecer. O arvoredo que rodeava o sítio era pequeno, mas os pássaros o multiplicavam. Àquelas horas, Porfirio sempre pensava na mesma coisa: na filha do capataz do Recreo. Era uma senhorita opulenta, de meias de seda e salto alto. Ele pensava também em um piano, que tinha entrevisto detrás de uma porta, num dia de chuva. A música o fascinava, e lembrar-se dos acordes de um piano e daquela mulher era o prêmio que recebia ao cair da noite.
Fazia já vinte anos que ele tinha arrendado aquelas terras, com um só potreiro e um rancho: depois de muitos sacrifícios, conseguiu comprá-las. Quando se instalou, o rancho estava quase em ruínas; tinha-o restaurado aos poucos, de maneira que o teto não tivesse goteiras, nem a porta rangesse demais. Tinha acrescentado mais tábuas ao postigo da janela, aplainara o chão de terra batida e clareara as paredes.
Em volta do rancho havia os restos de uma horta, pouquíssimas galinhas, uma ou outra vaca, três cavalos. Além disso, havia trezentas ovelhas: era disso que ele vivia. Vendia bem a lã, e os gastos eram poucos. Banhava-as no terreno vizinho. Entregava todo o lucro a um de seus irmãos, o que sabia ler, escrever, conduzir o dinheiro e o carro. Guardava só o necessário para seus gastos pessoais.
Porfirio pensou em seu irmão; era distante e silencioso feito uma caixa de ferro; circundava-o uma auréola de instrução. Vivia a duas léguas de distância, em uma casa com vários corredores; tinha mulher e alguns filhos.
Porfirio tinha ido várias vezes reclamar-lhe o dinheiro. Desde a compra do sitiozinho e dos animais, não tinha conseguido fazer com que seu irmão lhe entregasse nenhuma quantia. Este costumava lhe dizer o seguinte:
Não é bom que você guarde dinheiro em casa. Qualquer noite dessas podem entrar para te matar.
Não tenho medo — respondia Porfirio, tremendo. — Preciso do dinheiro para comprar umas quantas ovelhas crioulas. E depois, acho que estão me fazendo falta uns hectares a mais.
O irmão distraído não respondia nada.
Daquela vez Porfirio saiu do rancho, abriu lentamente a porteira do alambrado que dava no potreiro, caminhou entre bostas encrespadas e cardos, anteparando a luz do poente com a mão. Era agosto. Fazia um frio cortante: sentia-o de frente como uma coroa de gelo em suas mãos, tal qual uma superfície dura. Apressou o passo. Deteve-se no limite do potreiro, junto à cerca. Flocos de lã floresciam da cerca de espinhos. O rebanho se desenrolava com ruído de tapete. Apenas uma ovelha não se mexia. Estava de barriga para cima, deitada no chão, prestes a parir. Alguns abutres e chimangos aguardavam o nascimento, esperando um cordeirinho vivo ou uma mãe quase morta, com grandes olhos vítreos.
Ao se aproximar, Porfirio afugentou os pássaros. A ovelha respirava com dificuldade, grunhia e mascava devagar gordos grãos invisíveis de milho duríssimo. Em seguida, feito incisão na tarde vermelha, sobre uma pedra cinza, foram nascendo, um, dois, três cordeirinhos idênticos. A mãe lambeu cuidadosamente os dois primeiros e se esqueceu do último. Porfirio procurou uma bolsa, limpou o terceiro cordeirinho, o envolveu, o levou ao rancho e o colocou debaixo do beiral.
Entrou na casa e foi em direção ao fogão aceso. Pôs carne para assar nas brasas.
Os últimos raios de sol brilhavam na abertura da porta. Porfirio viu cintilar um círculo de luz na parede do quarto. Era a mensagem cotidiana de seu vizinho. Levantou-se do banco, despregou o espelhinho redondo que tinha usado certa vez para se barbear e parou na soleira da porta. Tentou inutilmente responder com o mesmo círculo de luz, com o mesmo reflexo, sobre a casa do vizinho. O sol tinha desaparecido. Canalizando a voz com as mãos postas de cada lado da boca, depois de um instante gritou:
Boa noite.
O silêncio multiplicou a voz. A noite caiu de repente. Ele entrou no rancho e junto ao fogão comeu um pedaço de carne com pão e vinho tinto. A chama da vela tremulava com o vento, apesar de ele ter fechado a porta. Os rangidos eram seus companheiros.
Sem se despir, deixou-se cair na cama. Tinha dois ponchos bem puídos e uma manta com as bordas vermelhas. O sono, antes de chegar a seus olhos, rondava por todo seu corpo que nem água bem mansa. Não foi domado pelo sono como em outras noites. Soprou a vela e o quarto ficou em trevas. Demorou para dormir. Repassou mentalmente os trabalhos do dia e depois começou a sonhar.
Sonhou que se casava com a filha do capataz do Recreo na igreja de Azul. Depois da cerimônia, chegava ao Recreo com sua noiva em uma carruagem, escoltado por toda a família, que vinha em um vagão, rebocando um piano com rodas. O piano era uma casinha alta e preta, com um tablado coberto no centro. Tinha dois candelabros de ouro de cada lado. Uma família pequeníssima de anões vivia dentro dessa casa. A música surgia aparentemente das mãos da pianista, quando ela tocava as notas, mas o procedimento era mais complicado e misterioso: a música surgia da boca dos anõezinhos.
Tem que levar com cuidado — dizia o pai da noiva, abraçando o piano —; ele tem notas muito sofridas.
Os cavalos foram freados, com cuidado, diante da porteira, e em seguida o pai, junto com o resto da família da noiva, saiu pelo sítio, agitando ramos para espantar os mosquitos. A filha do capataz, que era rechonchuda, deitou-se na cama de ferro e Porfirio ao lado dela, no chão de terra batida, sobre uns quantos sacos que serviam de colchão. Aquela casa, tão suntuosa por dentro, tinha dormitórios com chão de terra batida. Os recém-casados já deviam estar dormindo quando a porta se abriu de repente. Uma tropa de cavalos passou relinchando.
O cachorro latia ao longe. Um círculo de luz bailou suavemente na parede. Ao ver o sinal do vizinho, Porfirio sorriu. Uma sombra se delineava no batente da porta e ele não viu outro rosto a não ser aquele círculo de luz. Deu alguns passos adiante, para além de seu sonho; ainda penso que ele teve tempo de se assustar, de virar sonâmbulo, ele, que nunca tinha sido, quando sentiu que lhe afundavam um ferro bem vermelho no peito.
A escuridão modificou as cores, os meios-tons, como a revelação caprichosa de uma fotografia.
A mão de Remigio Lasta não soltava a faca. O silêncio, que não havia se manifestado até então, crescia; preenchia-se de filamentos, de silvos, de memórias, da cantoria de grilos infinitesimais.
Nenhuma porta estalava, nenhum móvel: todos os objetos se ausentavam sobre o chão de terra. As paredes, o teto tinham se dissolvido, mas o homem sentiu, na irrealidade do quarto, uma presença viva. Dava as costas à janelinha; as paredes tinham se dissolvido, mas a janelinha, não. Incomodava-o ter costas; eram elas o lugar vulnerável do corpo; a fim de ignorar isso, ele virou bruscamente a cabeça e viu, pela primeira vez, um fantasma. Estudou-o com atenção. Era uma senhorita opulenta, de meias de seda e salto alto. Ouviu uma insuportável musiquinha de piano. Instantes depois, sentiu o contato de uma mão sobre uma das suas, e três dedos seus ficaram dormentes.
Tirou a faca e a limpou com a manta. A lanterna era pequena e iluminava uma circunferência nítida, porém muito exígua. Procurou um fósforo; acendeu a vela. Fez um passeio circular ao redor do quarto. Sentou-se por um minuto em um banco e tirou as luvas: olhou para suas mãos escuras, de veias muito salientes. Levantou-se do banco e voltou a pôr as luvas. Os três dedos continuavam dormentes. Soprou a vela, e depois de iluminar o quarto com a lanterna abriu a porta uma última vez e olhou para o céu. A noite carecia de estrelas; mirou o cavalo, que estava a cinco metros, e disse em voz alta:
Duas léguas, duas léguas. Terei tempo de percorrê-las antes que amanheça.
Montou o cavalo e ninguém, a não ser eu, pôde ouvir aquele galope, que ia longe na noite. Ninguém, a não ser eu, soube que Remigio Lasta herdaria não apenas o dinheiro, como também o sonho de seu irmão.

Silvina Ocampo, in A fúria

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