terça-feira, 3 de agosto de 2021

A ciência é moral?

A aliança entre o Estado e a ciência data dos primórdios da civilização. Por milhares de anos, bem antes do início do século XVII marcar o nascimento da ciência moderna, artesãos desenvolveram ligas metálicas, arcos mais precisos, catapultas, pólvora e muitas outras invenções a serviço do Estado, tanto para defender quanto para atacar. A pedido do rei Gelão II, o grande inventor e matemático grego Arquimedes desenhou armas para proteger a cidade de Siracusa dos navios romanos. Relatos históricos (talvez um pouco exagerados) contam que construiu catapultas gigantescas e usou espelhos e lentes gigantes para incendiar as naves invasoras. De qualquer forma, a aplicação do conhecimento científico no desenvolvimento de armamentos é parte essencial da história da humanidade.
Felizmente, essa não é, me parece, a motivação principal que leva jovens a seguir uma carreira científica. A maioria escolhe ser cientista para se engajar no estudo da Natureza em todas as suas manifestações, vivas (nas ciências biológicas) e não vivas (nas ciências físicas), ou para desenvolver tecnologias que potencialmente possam melhorar a qualidade de vida da humanidade: mais conforto e energia, mais comida, mais saúde. Por outro lado, a maioria absoluta das áreas de pesquisa necessitam de fomento, seja ele proveniente do governo ou da iniciativa privada.
É aqui que nasce a aliança entre a ciência e o Estado. A intensidade dessa aliança depende de circunstâncias políticas. Tipicamente, em tempos de guerra ou durante regimes autoritários, a aliança é fortalecida e o Estado engaja cientistas para defender seus interesses estratégicos. Dentro dessa realidade, as reações dos cientistas são variadas. Por exemplo, enquanto os irmãos Wright não tiveram o menor escrúpulo em vender seus aviões para o exército americano em 1909, o uso de aviões como armas de guerra horrorizou nosso Santos Dumont, a ponto de possivelmente ter contribuído para o seu suicídio em 1932.
Na Primeira Guerra Mundial, o impacto da ciência foi essencial. Essa guerra é muitas vezes chamada de “Guerra dos Químicos”, pelo uso de gases venenosos nas frentes de batalha, com resultados devastadores para ambos os lados. Mais de 124 mil toneladas de gases venenosos foram usados, em violação da Convenção de Haia de 1899. Na Alemanha, grandes empresas como a Bayer, a Hoechst e a BASF uniram-se ao Instituto de Pesquisas Kaiser Wilhelm, sob a direção do Prêmio Nobel de Química Fritz Haber, para desenvolver bombas capazes de espalhar os gases nas trincheiras. (Haber recebeu o prêmio em 1918, quando a guerra estava terminando.)
A contratação de empresas privadas pelo Estado é típica nesses casos. Em geral, as guerras são ganhas por aqueles que detêm as tecnologias mais avançadas. Quando necessário, o Estado desenvolve complexos de pesquisa dedicados ao desenvolvimento de novas tecnologias bélicas, muitas vezes contratando times de cientistas para chefiar as pesquisas, como no caso de Fritz Haber. A aliança entre o Estado e a ciência é vista como essencial para proteger a população e a hegemonia estatal: o cientista, patriota, vê-se encurralado, sabendo, ao mesmo tempo, que seus conhecimentos podem defender seu país e comunidade e, também, a devastação que podem causar.
Se a Primeira Guerra Mundial foi a “guerra dos químicos”, a Segunda foi a dos físicos. Entre a invenção do radar em 1935, alguns anos antes da guerra e, mais dramaticamente, a bomba atômica em 1945, a aplicação de conceitos novos da física no desenvolvimento de equipamentos de detecção e armamentos de destruição teve um papel essencial na vitória dos Aliados. Por outro lado, despertou, também, uma conscientização do poder da ciência inédita na história.
Após o primeiro teste da bomba atômica no deserto de Alamogordo, no Novo México, o físico e diretor do Projeto Manhattan, J. Robert Oppenheimer, citou o Bhagavad Gita, a escritura religiosa hindu, para expressar seus sentimentos: “Agora sou a Morte, destruidora de mundos.” Para Oppenheimer e todos os demais cientistas e militares presentes no teste, ficou claro que o mundo jamais seria o mesmo. Pela primeira vez na história, o homem tinha uma arma com poder de destruição de proporções globais. Enquanto muitos cientistas eram veementemente contra o uso de armas nucleares em qualquer conflito, outros não viam outra forma de deter o inimigo.
O orgulho nacional misturado com o patriotismo, a curiosidade científica e o medo de que os nazistas pudessem, também, desenvolver a bomba atômica eram um combustível poderoso. (Após a guerra, ficou claro que os nazistas estavam longe de construir uma bomba atômica. Mas antes, durante o conflito, a informação era inconsistente.)
Mesmo assim, continua sendo um mistério como o grupo de cientistas que trabalhou no Projeto Manhattan, na maioria, indivíduos de natureza pacífica, intelectualmente abertos, e sempre dispostos a dividir o conhecimento entre si, colaborou na construção de uma arma tão nefasta. Por outro lado, uma vez que a arma foi construída, a decisão de usá-la não pertencia aos cientistas que a criaram. Este é um ponto essencial na aliança entre o Estado e a ciência: mesmo que, ocasionalmente, cientistas possam trabalhar entusiasticamente no desenvolvimento de uma nova arma, a decisão de como e onde usá-la vem do Poder Executivo, presumivelmente com o apoio do Legislativo (ou não, em regimes autoritários).
O sucesso da ciência norte-americana durante a Segunda Guerra iniciou uma nova era no fomento da pesquisa científica, tanto básica quanto aplicada. No pós-guerra, a corrida armamentista disparou, aquecida pela Guerra Fria e pelo medo de um ataque soviético. Na década de 1960, a corrida espacial pôs lenha no fogo, acelerando ainda mais o fomento da pesquisa. Tanto nos EUA quanto na União Soviética, a ciência básica era vista como essencial na geração de ideias que, potencialmente, poderiam ser usadas em tecnologias de defesa.
Em julho de 1945, Vannevar Bush, diretor do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento Científico dos EUA, declarou num relatório para o presidente Truman (iniciado sob o governo do presidente Roosevelt), intitulado “Ciência: a fronteira sem fim”: O espírito dos pioneiros ainda é vigoroso em nossa nação. A ciência oferece um território inexplorado para o pioneiro que detenha os instrumentos necessários para esse objetivo. As recompensas dessa exploração para a nação e para o indivíduo são enormes. O progresso científico é a chave essencial para a segurança nacional, para a nossa saúde, para gerar novos empregos e uma qualidade de vida mais elevada, para nosso progresso cultural.
A ciência é uma oportunidade para o indivíduo e para a nação. Não pode progredir sozinha, precisando ser apoiada pelo Estado e pela iniciativa privada. Obviamente, a pesquisa industrial é essencial, e hoje é dominante, inclusive na corrida espacial. O que é raramente discutido, mesmo que sempre esteja implícito, é a moralidade das escolhas que são (ou não) feitas por cientistas que trabalham nas diversas áreas de pesquisa. Rotular a ciência como sendo moral ou imoral não faz sentido.
A ciência em si é amoral, uma coletânea de fatos sobre o mundo natural obtidos pacientemente por cientistas, profissionais que seguem uma metodologia de análise quantitativa de dados e observações. Isso é tanto verdade para os cientistas que estudam frentes de choque em detonações explosivas, como para os cientistas, engenheiros e técnicos que desenham ou trabalham nas linhas de montagem de bombas, ou para físicos de partículas que buscam os componentes fundamentais da matéria. A questão do uso moral da ciência emerge na relação entre os cientistas e os seus patronos, sejam eles o governo ou o setor privado.
É verdade que ter uma arma não é a mesma coisa do que usar a arma. Desde o bombardeio de Nagasaki pelos EUA, nenhuma outra bomba atômica foi usada. A política de prevenção de conflitos nucleares, ao menos até agora, está funcionando. Porém, também é possível argumentar que ter uma arma é a condição essencial para usá-la. Ter uma vasta coleção de armas nucleares é uma estratégia de paz um tanto instável, assunto a que voltaremos adiante. E este é o cerne da questão na aliança entre a ciência e o Estado. A aliança é, por construção, instável.
A decisão do uso das armas, inclusive as nucleares, está nas mãos do líder do país, que é, em última instância, a pessoa responsável pelo seu uso. Não são os cientistas que decidem quais armas são usadas, ou quando. Portanto, o que dizer do cientista que trabalha nessa área? Não me parece que há uma resposta simples. Existem várias profissões que podem prejudicar ou ferir pessoas. Existem muitos modos de ferir o outro. Se o fazem dentro da indústria bélica, é porque escolheram fazê-lo, por uma ideologia de patriotismo, de orgulho nacionalista, ou porque foi o emprego que conseguiram. Porém, a decisão moral de como a ciência é usada está nas mãos daqueles que detêm o poder de ação. Por isso, é essencial que o cidadão saiba escolher seus líderes políticos. E que cientistas saibam refletir, criticamente, sobre a natureza de seu trabalho.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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