quinta-feira, 10 de junho de 2021

— Dize-me o que fazes, do que comes e eu te direi quem és

O Sol já ia alto quando acordei. Estava com a mão inchada de tanto escrever e não podia juntar os dedos. A tempestade búdica havia passado, deixando-me vazio e fatigado.
Abaixei-me para apanhar as folhas espalhadas pelo chão. Não tinha nem vontade nem força para olhá-las. Como se toda essa impetuosa inspiração não tivesse sido senão um sonho, que eu não queria ver prisioneiro das palavras, aviltado por elas.
Estava chovendo nesse dia, sem barulho, molemente. Zorba, antes de sair, havia acendido o braseiro, e durante todo o dia deixei-me ficar sentado diante do fogo, sem comer, imóvel, escutando a primeira chuva caindo docemente.
Não pensava em nada. Meu cérebro, enrolado sobre ele mesmo como uma toupeira no chão seco, descansava. Ouvia os movimentos ligeiros, os rumores, os gemidos da terra e a chuva que caía e as sementes que se inchavam. Sentia o céu e a terra acasalarem-se como nos tempos antigos, em que eles se uniam como homem e mulher e faziam filhos. Diante de mim, ao longo da praia, ouvia o mar que mugia e lambia como uma fera que estica a língua para beber.
Eu estava feliz, sabia-o. Enquanto estamos felizes, é difícil sabê-lo. E só quando a felicidade já passou que olhamos para trás e sentimos — às vezes com surpresa — como éramos felizes. Mas eu, sobre essa costa cretense, vivia a felicidade e sabia que era feliz.
Um mar azul-escuro, imenso, indo até as praias africanas.
Subitamente um vento do sul soprava, muito quente, o Livas, que vinha das longínquas areias escaldantes. De manhã o mar recendia como uma melancia; ao meio-dia esfumaçava-se, imóvel, com ligeiras ondulações de seios, apenas desenhados. De noite suspirava, cor de rosa, de vinho, de berinjela, azul-escuro.
Diverti-me, de tarde, a encher a mão com areia fina e senti-la escorregar e escapar, quente e mole, entre meus dedos. A mão: um saco de areia onde a vida se escapa e perde. Ela se perde e eu olho o mar, ouço Zorba e sinto as têmporas estalarem de felicidade.
Um dia, lembro-me bem, minha sobrinha Alka, uma garotinha de quatro anos, no momento em que olhávamos, na véspera de primeiro do ano, uma vitrina de brinquedos, voltou-se para mim e me disse essa frase surpreendente: “Meu tio Ogre, estou contende que me tenham nascido chifres!” fiquei apavorado. Que prodígio é a vida, e como todas as almas, quando mergulham em suas raízes, se juntam e se confundem! Pois lembrava-me também de uma cabeça de Buda esculpido em ébano que havia visto em um museu distante.
Buda se havia libertado, e a alegria suprema o inundava, após uma agonia de sete anos. As veias de sua fronte, à direita e a esquerda, se haviam de tal forma intumescido que saltaram para fora da pele, transformadas em dois chifres vigorosos, retorcidos com duas molas de aço.
Ao entardecer a chuvinha miúda havia parado, o céu fez-se de novo puro. Tive fome e estava alegre com isso, pois agora Zorba ia voltar, acenderia o fogo e começaria a cerimônia cotidiana da cozinha.
Ainda uma história sem fim, essa! — dizia às vezes Zorba, pousando a panela sobre o fogo. — não é só a mulher... Maldita seja ela... Que é uma história sem fim; ainda tem a comilança.
Pela primeira vez senti, nessas paragens, a doçura de uma refeição. De noite, Zorba acendia o fogo entre duas pedras e cozinhava, começávamos a comer e bebericar, a conversa ia se animando e eu compreendia, enfim, que comer também é uma função espiritual e que a carne, o pão e o vinho são as matérias-primas das quais se faz o espírito.
Antes de comer e beber Zorba não tinha, de noite, depois da canseira do trabalho, nenhuma disposição; seus modos eram mal-humorados, e era preciso arrancar-lhe as palavras. Seus gestos eram lentos e sem graça. Mas, depois de jogar carvão na máquina, como ele dizia, toda a usina entorpecia e moída que era seu corpo se reanimava, tomava impulso e começava a trabalhar. Sus olhos se iluminavam, sua memória renascia, cresciam asas em seus pés e ele dançava.
Dize-me o que fazes, do que comes e eu te direi quem és. Há os que transformam isso em gordura e lixo, outros em trabalho e bom humor, outros em Deus... como já ouvi dizer. Existem, portanto, três espécies de homem. Eu não sou nem dos piores nem dos melhores. Estou no meio. O que eu como, transformo em trabalho e bom humor. Não é muito ruim!
Olhou-me maliciosamente e pôs-se a rir.
Você patrão — disse ele, — você se esforça por transformar em Deus o que come. Mas não consegue e fica se torturando por isso. Aconteceu a você a mesma coisa que ao corvo.
O que aconteceu ao corvo, Zorba?
Ele, você sabe, antes andava direito, convenientemente, como um corvo, ora. Mas um dia meteu na cabeça de se pôr a rebolar como um perdiz. Desde esse tempo, coitado, ele se esqueceu até do seu próprio andar, ele não sabe mais o que fazer, e manca.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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