sábado, 6 de março de 2021

Torto Arado / 7

          Anos depois do acidente que emudeceu uma de suas filhas, meu pai, incentivado por Sutério, havia convidado o irmão de minha mãe para residir em Água Negra. O gerente queria trazer gente que “trabalhe muito” e “que não tenha medo de trabalho”, nas palavras de meu pai, “para dar seu suor na plantação”. Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra. Podia colocar roça pequena para ter abóbora, feijão, quiabo, nada que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono da fazenda, afinal, era para isso que se permitia a morada. Podia trazer mulher e filhos, melhor assim, porque quando eles crescessem substituiriam os mais velhos. Seria gente de estima, conhecida, afilhados do fazendeiro. Dinheiro não tinha, mas tinha comida no prato. Poderia ficar naquelas paragens, sossegado, sem ser importunado, bastava obedecer às ordens que lhe eram dadas. Vi meu pai dizer para meu tio que no tempo de seus avós era pior, não podia ter roça, não havia casa, todos se amontoavam no mesmo espaço, no mesmo barracão.
Para convencê-lo, meu pai disse que o arrozal era bom de trabalhar. Que ali chovia, tinha terra boa, que, “olha”, abria os braços mostrando a roça e o quintal, mostrando a mata ao redor deles, “aqui não nos falta nada”. “Você tem os meninos, isso é de ajuda. Tem um passarinho preto miudinho assim”, mostrava as falanges dos dedos dando a dimensão aproximada da praga, “que ataca o arrozal de manhã cedo. Os meninos podem ajudar a espantar eles. Aqui todo mundo acorda cedo para espantar os passarinhos, só assim fazemos boa colheita”.
Era verdade. Nos longos anos em que plantaram arroz no meio do sertão de água, na beira dos pântanos dos marimbus, acordávamos antes que o sol se levantasse no horizonte e seguíamos rumo à roça da fazenda. Nos muníamos de galhos, pedras, tudo que fosse instrumento para espantar os pássaros, miudinhos, de penas negras e que brilhavam quase azuis na luz da manhã. Se não fôssemos rápidos o suficiente, seu bico entrava no grão que amadurecia e sugava tudo que estivesse dentro, com sua minúscula língua. Enquanto os adultos trabalhavam, cabia a nós, as crianças, espantar a praga. Os meninos chegavam com estilingues, por vezes abatiam a ave pequena. Certa vez, Belonísia chorou e só cessou o pranto quando sugeri que fizéssemos um enterro, com direito a uma caixa de vela, como urna, e flores que colhemos no campo.
Meu tio viajou no lombo de um burro, a mulher em outro, os filhos caminhando, se revezando na travessia para a montaria dos animais. Foram morar numa construção de alvenaria, uma casa vazia que abrigava os trabalhadores que chegavam. Era permitido que se hospedassem ali até a aceitação definitiva da morada, dada de acordo com a produtividade e a disposição para o trabalho da nova família. Se aceitos, destinava-se a eles uma parcela de terra para que pudessem construir a tão almejada casa e ter seu quintal e animais pequenos.
Tio Servó chegou acompanhado da esposa, Hermelina, e dos seis filhos. Era a primeira vez que os via. Minha mãe estava emocionada, com a discrição de sentimentos que lhe era peculiar. Matou duas galinhas de nosso quintal e fez um almoço farto. Sentamos no chão com nossos pratos, as crianças tímidas se escondiam atrás dos pais. Salu não conhecia a cunhada e logo quis saber os nomes dos sobrinhos. “Esse aqui guardei pra você batizar, Salu”, disse. Era meu primo mais velho, Severo. Era quase um rapaz, crescido, mas igualmente tímido como os irmãos. “Mas deixou o menino tanto tempo pagão, Servó?”, reclamou minha mãe da negligência do irmão.
Depois do almoço, e espalhados pelo terreiro, meus primos foram se entrosando. A casa onde iriam ficar estava mais próxima do rio Santo Antônio, do lado oposto à nossa casa. Assim, nosso contato não seria tão frequente, nos veríamos nas festas e feriados, ou nos dias das brincadeiras do jarê em nossa casa. Não cheguei a vê-los nos arrozais da várzea do Santo Antônio, para saber se espantavam o chupim tão bem como nós. Mas Severo, o primo tímido, chegava de tempos em tempos com meus tios para nos visitar. Se era brincadeira de jarê, ficávamos acordados até a madrugada correndo pelo terreiro, contando histórias e rindo alto.
Eu e Belonísia, estranhamente, já que estávamos cada vez mais próximas, nos dispersávamos nesses momentos, talvez de forma irrefletida, para disputar a atenção de Severo. Domingas e Zezé se ocupavam em brincadeiras com os menores, enquanto nós, quase adolescentes, descobríamos aos poucos o interesse que um menino poderia despertar em duas moças com seios despontando nos vestidos, ancas se firmando e o perfume do corpo abundando como nunca. Duas moças que se descobriam vaidosas, que reclamavam por um espelho em casa, que ocupavam o tempo vago com penteados e combinações de vestimentas diferentes com as poucas peças de roupa que tinham.
Severo superou aos poucos a timidez e passou a se comunicar de forma incessante conosco. No início, a que era a voz duplicada, a que falava pelas duas, cuidou, sem perceber, de instruir o primo de como poderia ser fácil entender os sinais que havíamos elaborado, sem o recurso de uma escola, para nos comunicarmos. De maneira breve, ele aprendeu a se comunicar também, às vezes melhor que qualquer um da casa, e logo se passou a sentir, além do óbvio ciúme pela atenção do primo, ciúme pela capacidade de compreensão que havia adquirido em tão pouco tempo. Quiçá o primo nos compreendesse melhor que nossos pais.
Chupim aos montes e todo dia, ao alvorecer. Nós seguíamos para espantá-los com nossas armas. Chupim engana, é matreiro e preguiçoso. Come o arroz que a gente planta – ouvíamos falar –, gosta de coisa pronta. Não batalha pelo seu grão. Chupim nos marimbus podia colocar ovos no ninho de xanã, no do sangue-de-boi de penugem vermelha cor de fogo, cantando “tiê, tiê” para os ovos dos filhotes que pensa serem seus. Chupim coloca ovos no ninho de carrega-madeira que esteve construindo sua casa para abrigar sua cria – e as crias do parasita sem saber. Deixava seus ovos fecundados para serem chocados nos ninhos de xorró-d’água, cabeça-de-velho, sabiá-bosteira, sabiá-bico-de-osso, bem-te-vi, patu-d’água e guachu. Os ovos do chupim cresciam debaixo da beleza do canto do sofrê e até de zabelê no chão. Mas nunca vi ovo de chupim no ninho de paturi. Por que será? É o que guardo das conversas que tínhamos quando nos encontrávamos em nossa casa, quando muito, na casa da família de tio Servó, no sequeiro do rio Santo Antônio. Com a chegada do tio, ganhamos um tocador de pífaro para alegrar as festas de santos, porque a festas dos encantados eram dominadas pelos atabaques. Por muitos anos, a música do pífaro de nosso tio dominou nossas celebrações e as mais distantes, quando viajávamos para festejar São Francisco e outros santos de nossa estima nos povoados de Remanso e Pau-de-Colher. No dia de São Sebastião, santo de devoção de nosso pai e celebrado na sua data de nascimento, havia a maior festa, a que mais agregava gente e a que mais trazia devotos de fora da fazenda. Muitos vinham de longe para seguir os rituais da brincadeira para festejar com bebidas e comidas as dádivas que haviam recebido dos encantados. Nós, crianças, permanecíamos distantes das atividades principais, os mais novos em brincadeiras ao redor da casa; os mais jovens disputando a atenção dos adultos. Eu e Belonísia ouvíamos a conversa das filhas de dona Carmeniuza e dona Tonha. Elas falavam da visita dos patrões às roças da fazenda. Queriam saber se eles haviam chegado por aqui, se tinham levado as batatas do nosso quintal também. “Mas as batatas do nosso quintal não são deles”, alguém dizia, “eles plantam arroz e cana. Levam batatas, levam feijão e abóbora. Até folhas pra chá levam. E se as batatas colhidas estiverem pequenas fazem a gente cavoucar a terra para levar as maiores” – disse Santa, arregalando os olhos para mostrar sua revolta. “Que usura! Eles já ficam com o dinheiro da colheita do arroz e da cana.” Poderiam muito bem comprar batata e feijão no armazém ou na feira da cidade. Nós é que não conseguíamos comprar nada, a não ser quando vendíamos a massa do buriti e o azeite de dendê, escapulindo dos limites da fazenda sem chamar a atenção. “Mas a terra é deles. A gente que não dê que nos mandam embora. Cospem e mandam a gente sumir antes de secar o cuspo” – alguém disse, num sentimento de deboche e indignação. Severo nos observava de longe, riscando um graveto no barro seco.
Quando já era madrugada minha mãe perguntou se havia visto Belonísia e Domingas. Domingas estava brincando com a filha de Jandira, na lateral da casa. Belonísia eu havia perdido de vista. “O povo está indo embora”, disse minha mãe. Pediu que levasse minha irmã para a cama. Não obedeci logo, deixei Domingas num canto, parecia não ter sono àquela altura, quando dei uma volta ao redor da casa procurando por Belonísia. Não muito distante, debaixo do umbuzeiro quase seco, vi uma sombra que se distinguia do resto da escuridão da noite. Era uma noite fresca e parte das pessoas que iam embora estavam agasalhadas para caminhar para suas casas. Outros abraçavam o próprio corpo, tentando se aquecer. Me aproximei devagar da árvore onde se abrigava a sombra e, antes que chegasse mais perto, a vi se dividir. Belonísia deixou o abrigo como se nada tivesse acontecido. Passou por mim de cabeça erguida e sorrindo. Antes que eu me aproximasse mais, Severo também deixou o umbuzeiro e seguiu em direção aos pais que estavam prontos para caminhar até sua casa com o candeeiro que tremulava a luz ao longe nas mãos.
Sem conseguir dormir o resto da noite, nem olhar para minha irmã, fui tomada por um sentimento de decepção e rivalidade que desconhecia até aquele instante.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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