quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Inverno em Abruzzo

Deus nobis haec otia fecit.*

Em Abruzzo só há duas estações: o verão e o inverno. A primavera é coberta de neve e cheia de ventos como o inverno, e o outono é quente e límpido como o verão. O verão começa em junho e termina em novembro. Os longos dias ensolarados sobre as colinas baixas e queimadas, a poeira amarela da estrada e a disenteria das crianças terminam, e o inverno começa. Então as pessoas deixam as ruas: os meninos descalços somem das escadarias da igreja. Na cidade de que estou falando, quase todos os homens desapareciam depois das últimas colheitas: iam trabalhar em Terni, em Sulmona, em Roma. A cidade era um vilarejo de pedreiros: e algumas casas eram construídas com graça, tinham terraços e coluninhas como pequenas mansões, e causava espanto encontrar, na entrada, grandes cozinhas escuras com presuntos pendurados e amplos cômodos esquálidos e vazios. Nas cozinhas, o fogareiro ficava aceso e havia vários tipos de fogo, havia grandes fogos feitos com toras de carvalho, fogos de galhos e folhas, fogos de gravetos recolhidos um a um pelas ruas. Era mais fácil identificar os pobres e os ricos olhando o fogareiro aceso do que observando as casas e as pessoas, as roupas e os sapatos, que eram mais ou menos iguais para todos.

Quando cheguei a essa cidade, nos primeiros tempos, todos os rostos me pareciam iguais, todas as mulheres se assemelhavam, ricas e pobres, jovens e velhas. Quase todas tinham a boca desdentada: ali as mulheres perdem os dentes aos trinta anos, por cansaço ou má alimentação, pelos maus-tratos dos parceiros e dos aleitamentos que se sucedem sem trégua. Mas depois, pouco a pouco, comecei a distinguir Vincenzina de Secondina, Annunziata de Addolorata, e comecei a entrar em cada casa e a me esquentar naqueles diversos fogareiros.

Quando a primeira neve começava a cair, uma lenta tristeza se apossava de nós. Aquilo era um exílio: nossa cidade estava longe, e longe estavam nossos livros, os amigos, as várias e cambiantes vicissitudes de uma verdadeira existência. Acendíamos nossa estufa verde, com o longo tubo que atravessava o teto: nos reuníamos todos na sala onde ficava a estufa, e ali se cozinhava e comia, meu marido escrevia na grande mesa oval, os meninos espalhavam os brinquedos no pavimento. No teto da sala havia uma águia pintada: e eu olhava a águia e pensava que aquilo era o exílio. O exílio era a águia, era a estufa verde que chiava, era o vasto e silencioso campo e a neve imóvel. Às cinco os sinos da igreja de Santa Maria tocavam, e as mulheres iam receber a bênção com seus xales pretos e os rostos vermelhos. Todas as tardes meu marido e eu dávamos um passeio: todas as tardes caminhávamos de braços dados, afundando os pés na neve. As casas que margeavam a rua eram habitadas por gente conhecida e amiga, e todos vinham à porta e nos diziam: “Muita saúde e paz”. Alguém às vezes perguntava: “Mas quando vão voltar para casa?”. E meu marido dizia: “Quando terminar a guerra”. “E quando essa guerra acaba? Você, que sabe tudo e é um professor, quando vai acabar?” Chamavam meu marido de “o professor”, já que não sabiam pronunciar seu nome, e vinham de longe para consultá-lo sobre as coisas mais variadas, sobre a melhor estação do ano para arrancar os dentes, sobre os subsídios que a prefeitura dava e sobre as taxas e os impostos.

No inverno alguns velhos partiam por causa de uma pneumonia, os sinos de Santa Maria dobravam, e Domenico Orecchia, o marceneiro, fabricava o caixão. Uma mulher enlouqueceu, a levaram ao manicômio de Collemaggio e a cidade falou disso por um bocado de tempo. Era uma mulher jovem e asseada, a mais asseada de toda a cidade: disseram que tinha ficado assim por excesso de asseio. Gigetto di Calcedonio teve duas gêmeas, além dos dois gêmeos que já tinha em casa, e fez um escarcéu na prefeitura porque lhe negavam o subsídio, visto que possuía muitos lotes de terra e uma horta maior que a cidade. Quanto a Rosa, a bedel da escola, uma vizinha lhe cuspiu no olho e ela circulava com esse olho enfaixado, para que lhe pagassem uma indenização. “O olho é delicado, o cuspe é salgado”, explicava. E sobre isso também se falou um bocado, até que não houve mais nada a dizer.

A saudade aumentava dia a dia em nós. Certas vezes era até prazerosa, como uma companhia terna e levemente inebriante. Chegavam cartas da nossa cidade com notícias de casamentos e de mortes dos quais éramos excluídos. Às vezes a saudade era aguda e amarga, e se tornava ódio: então odiávamos Domenico Orecchia, Gigetto di Calcedonio, Annunziatina, os sinos de Santa Maria. Mas era um ódio que mantínhamos oculto, reconhecendo que era injusto: e nossa casa estava sempre cheia de gente, que vinha tanto para pedir favores quanto para oferecê-los. Às vezes a costureirinha vinha preparar sagnoccole. Metia um pano na cintura, batia os ovos e mandava Crocetta circular pela cidade em busca de um caldeirão emprestado, mas daqueles bem grandes. Seu rosto vermelho ficava absorto e os olhos resplandeciam numa vontade imperiosa. Teria incendiado a casa para que suas sagnoccole ficassem boas. O vestido e os cabelos se cobriam de farinha branca, e sobre a mesa oval onde meu marido escrevia eram colocadas as sagnoccole.

Crocetta era nossa empregada. Ainda nem era uma mulher, porque tinha apenas catorze anos. Foi a costureira que a encontrou para nós. A costureira dividia o mundo em dois times: os que se penteiam e os que não se penteiam. Dos que não se penteiam era preciso manter distância, porque naturalmente tinham piolhos. Crocetta se penteava: por isso veio trabalhar para nós, e contava aos meninos longas histórias de mortos e cemitérios. Era uma vez um menino que perdeu a mãe. Seu pai arranjou outra mulher, e a madrasta não gostava do menino. Por isso o matou enquanto o pai estava no campo e com ele fez um ensopado. O pai volta para casa e come, mas, depois de comer, os ossos que ficaram no prato se puseram a cantar:

E la mia trista matrea

Mi ci ha cotto in caldarea

E mio padre ghiottò

Mi ci ha fatto ’nu bravo boccò. **

Aí o pai mata a mulher com uma foice e a pendura num prego diante da porta. Às vezes me pego murmurando as palavras dessa canção, e então toda a cidade ressurge diante de mim, e com ela o sabor específico daquelas estações, com o sopro gelado do vento e o repicar dos sinos.

Toda manhã eu saía com meus meninos, e o pessoal se espantava e desaprovava que eu os expusesse ao frio e à neve. “Que mal fizeram essas criaturas?”, diziam. “Não é tempo de passear, senhora. Volte para casa.” Caminhávamos longamente pelos campos brancos e desertos, e as raras pessoas que eu encontrava olhavam os meninos com piedade. “Mas que pecado eles cometeram?”, me diziam. Lá, quando nasce uma criança no inverno, não a levam para fora do quarto até que chegue o próximo verão. Ao meio-dia meu marido vinha me encontrar com a correspondência, e voltávamos todos juntos para casa.

Eu falava aos meninos da nossa cidade. Eram muito pequenos quando a deixamos, não tinham nenhuma lembrança dela. Eu lhes dizia que lá as casas tinham muitos andares, havia muitas casas e muitas ruas e uma porção de lojas lindas. “Mas aqui também tem Girò”, diziam os meninos.

A venda de Girò ficava bem em frente à nossa casa. Girò se postava na porta feito uma velha coruja, seus olhos redondos e indiferentes fixos na rua. Vendia um pouco de tudo: gêneros alimentícios e velas, cartões, sapatos e laranjas. Quando a mercadoria chegava e Girò descarregava as caixas, os meninos corriam para comer as laranjas podres que ele jogava fora. No Natal chegavam também os torrones, os licores, as balas. Mas ele não abaixava um centavo do preço. “Como você é mau, Girò”, lhe diziam as mulheres. E ele respondia: “Quem é bom vira comida de cachorro”. No Natal os homens voltavam de Terni, de Sulmona, de Roma, ficavam uns dias e tornavam a partir, depois de terem abatido os porcos. Por alguns dias só se comia torresmo ou linguiça e só se fazia beber: depois os berros dos leitõezinhos novos enchiam as estradas.

Em fevereiro o ar se tornava úmido e macio. Nuvens cinzentas e carregadas vagavam pelo céu. Houve um ano em que, durante o degelo, as calhas se romperam. Então começou a chover dentro de casa, e os quartos eram verdadeiros pântanos. Mas foi assim em todo o vilarejo: nem uma só casa ficou seca. As mulheres esvaziavam os baldes pelas janelas e varriam a água das portas. Teve gente que foi para a cama de guarda-chuva. Domenico Orecchia dizia que era o castigo por algum pecado. Isso durou mais de uma semana; depois, finalmente toda a neve desapareceu dos telhados e Aristide consertou as calhas.

O fim do inverno despertava em nós uma inquietude. Talvez alguém viesse nos visitar: talvez finalmente acontecesse alguma coisa. Nosso exílio afinal devia ter um fim. Os caminhos que nos separavam do mundo pareciam mais curtos: a correspondência chegava com mais frequência. Todas as nossas frieiras melhoravam lentamente.

Há certa uniformidade monótona nos destinos dos homens. Nossa existência se desenvolve segundo leis antigas e imutáveis, segundo uma cadência própria, uniforme e antiga. Os sonhos nunca se realizam, e assim que os vemos em frangalhos compreendemos subitamente que as alegrias maiores de nossa vida estão fora da realidade. Assim que os vemos em pedaços, nos consumimos de saudade pelo tempo em que ferviam em nós. Nossa sorte transcorre nessa alternância de esperanças e nostalgias.

Meu marido morreu em Roma, nas prisões de Regina Coeli, poucos meses depois de termos deixado o vilarejo. Diante do horror de sua morte solitária, diante das angustiantes vacilações que a antecederam, eu me pergunto se isso aconteceu a nós, a nós, que comprávamos as laranjas de Girò e íamos passear na neve. Na época eu tinha fé num futuro fácil e feliz, rico de desejos satisfeitos, de experiências e de conquistas em comum. Mas aquele era o tempo melhor da minha vida, e só agora, que me escapou para sempre, só agora eu sei.

Natalia Ginzburg, in As pequenas virtudes

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* “Deus nos concedeu este descanso”, palavras com que Virgílio agradece a Augusto nas Éclogas, usadas quase sempre de modo satírico.

** Cantiga em dialeto. Tradução livre: “Minha madrasta malvada/ Cozinhou-me num caldeirão/ E meu pai glutão/ Devorou-me numa grande garfada”.

[Todas as notas são do tradutor.] 

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