quarta-feira, 15 de julho de 2020

O colapso da família e da comunidade

Antes da Revolução Industrial, a vida cotidiana da maioria dos humanos seguia seu curso no interior destas três estruturas antigas: a família nuclear, a família estendida e a comunidade íntima local. A maioria das pessoas trabalhava em negócios familiares – a fazenda ou a oficina da família, por exemplo – ou então trabalhava nos negócios familiares de vizinhos. A família também era o sistema de bem-estar social, o sistema de saúde, o sistema educacional, a indústria de construção, o sindicato, o fundo de pensão, a empresa de seguros, o rádio, a televisão, o jornal, o banco e até mesmo a polícia.
Quando uma pessoa ficava doente, a família cuidava dela. Quando uma pessoa envelhecia, a família a sustentava, e seus filhos eram seu fundo de pensão. Quando uma pessoa morria, a família cuidava dos órfãos. Se uma pessoa queria construir uma cabana, a família dava uma mão. Se uma pessoa queria abrir um negócio, a família levantava o dinheiro necessário. Se uma pessoa queria se casar, a família escolhia, ou pelo menos analisava, o candidato a esposo. Se surgia um conflito com um vizinho, a família interferia. Mas se a doença de uma pessoa era grave demais para a família lidar, ou um novo negócio demandava um investimento grande demais, ou a briga com o vizinho se agravava ao ponto da violência, a comunidade local vinha em seu socorro.
A comunidade oferecia ajuda com base em tradições locais e em uma economia de favores, que com frequência diferia muitíssimo das leis da oferta e da demanda do livre mercado. Em uma comunidade medieval à moda antiga, quando meu vizinho precisava, eu ajudava a construir sua cabana e a cuidar de sua ovelha, sem esperar nenhum pagamento em troca. Quando eu precisava, meu vizinho devolvia o favor. Ao mesmo tempo, o potentado local podia mobilizar todos os aldeães para construir seu castelo sem nos pagar um centavo sequer. Em troca, nós contávamos com ele para nos defender contra bandoleiros e bárbaros. A vida na aldeia envolvia muitas transações, mas poucos pagamentos. Havia alguns mercados, é claro, mas seu papel era limitado. Era possível comprar especiarias raras, tecidos e ferramentas e contratar os serviços de advogados e médicos. No entanto, menos de 10% dos produtos e serviços usados normalmente eram comprados no mercado. A maioria das necessidades humanas eram atendidas pela família e pela comunidade.
Havia também reinos e impérios que realizavam tarefas importantes, como travar guerras, construir estradas e edificar palácios. Para essas finalidades, os reis coletavam impostos e ocasionalmente alistavam soldados e trabalhadores. Mas, com poucas exceções, eles tendiam a ficar de fora dos assuntos cotidianos de famílias e comunidades. Mesmo se quisessem intervir, a maioria dos reis só poderia fazê-lo com dificuldade. As economias agrícolas tradicionais tinham poucos excedentes com que alimentar multidões de oficiais do governo, policiais, trabalhadores sociais, professores e médicos. Em consequência, a maioria dos governantes não desenvolvia grandes sistemas de bem-estar social, de saúde ou educacionais. Deixavam tais assuntos nas mãos de famílias e comunidades. Mesmo nas raras ocasiões em que os governantes tentavam intervir de maneira mais efetiva na vida cotidiana dos camponeses (como aconteceu, por exemplo, no império Qing, na China), eles o faziam convertendo chefes de família e membros mais velhos da comunidade em agentes do governo.
Muitas vezes, as dificuldades de transporte e comunicação tornavam tão complicado intervir nos assuntos de comunidades remotas que muitos reinos preferiam ceder até mesmo as prerrogativas reais mais básicas – como arrecadação de impostos e violência – às comunidades. O Império Otomano, por exemplo, permitia vinganças familiares para que se fizesse justiça, em vez de financiar uma polícia imperial numerosa. Se meu primo matasse alguém, o irmão da vítima podia me matar em vingança. O sultão em Istambul ou mesmo o paxá provincial não intervinham em tais conflitos, contanto que a violência permanecesse dentro de limites aceitáveis.
No império Ming chinês (1368-1644), a população estava organizada no sistema de baojia. Dez famílias se agrupavam para formar um jia, e dez jias constituíam um bao. Quando um membro de um bao cometia um crime, outros membros do mesmo bao podiam ser punidos por isso, em particular os anciãos. Também se cobravam impostos do bao, e era responsabilidade dos anciãos do bao, e não dos funcionários do Estado, avaliar a situação de cada família e determinar a quantidade de imposto que deveria pagar. Da perspectiva do império, esse sistema tinha uma vantagem enorme. Em vez de manter milhares de oficiais da receita e cobradores de impostos, que teriam de monitorar as receitas e despesas de cada família, essas tarefas eram deixadas aos mais velhos de cada comunidade. Eles sabiam quanto cada aldeão ganhava e normalmente conseguiam obrigá-los a pagar impostos sem envolver o exército imperial.
Na verdade, muitos reinos e impérios eram pouco mais do que grandes redes de proteção. O rei era o capo di tutti capi que cobrava uma taxa de proteção e, em troca, garantia que os agrupamentos criminosos e os peixes miúdos das redondezas não causassem nenhum dano àqueles sob sua proteção. Mas não fazia mais do que isso.
A vida no seio da família e da comunidade estava longe de ser ideal. Famílias e comunidades podiam oprimir seus membros de maneira não menos brutal do que os Estados e mercados de hoje, e sua dinâmica interna era muitas vezes repleta de tensão e violência – mas as pessoas tinham pouca escolha. Uma pessoa que perdesse a família e a comunidade por volta de 1750 estava morta. Não tinha emprego, nem educação, nem apoio em época de doença ou sofrimento. Ninguém lhe emprestaria dinheiro ou a defenderia se ela se visse em maus lençóis. Não havia policiais, assistentes sociais nem educação compulsória. Para sobreviver, tal pessoa teria de encontrar rapidamente uma família ou comunidade alternativa. Meninos e meninas que fugiam de casa podiam, na melhor das hipóteses, se tornar servos em uma nova família. Em último caso, havia o exército ou o bordel.
Tudo isso mudou radicalmente nos últimos dois séculos. A Revolução Industrial deu ao mercado novos poderes gigantescos, proveu o Estado de novos meios de comunicação e transporte e colocou à disposição do governo um exército de escriturários, professores, policiais e assistentes sociais. De início o mercado e o Estado descobriram que seu caminho estava bloqueado por famílias e comunidades tradicionais que tinham pouca afeição por intervenção externa. Os pais e os mais velhos da comunidade relutavam em deixar a geração mais jovem ser doutrinada por sistemas educacionais nacionalistas, alistada em exércitos ou transformada em um proletariado urbano sem raízes.
Com o tempo, os Estados e os mercados passaram a usar seu poder crescente para enfraquecer os vínculos tradicionais da família e da comunidade. O Estado enviou policiais para impedir vinganças familiares e as substituiu por decisões judiciais. O mercado enviou seus vendedores para eliminar tradições locais de longa data e substituí-las por modas comerciais em constante transformação. Mas isso não foi suficiente. Para acabar realmente com o poder da família e da comunidade, eles precisavam da ajuda de uma quinta-coluna.
O Estado e o mercado abordaram as pessoas com uma oferta que não podia ser recusada. “Tornem-se indivíduos”, eles disseram. “Casem-se com quem quiserem, sem pedir permissão aos seus pais. Aceitem o emprego que quiserem, mesmo que os mais velhos da comunidade não aprovem. Vivam como desejarem, mesmo que não possam chegar a tempo para o jantar com a família toda semana. Vocês já não dependem da família ou da comunidade. Nós, o Estado e o mercado, tomaremos conta de vocês. Nós lhes daremos alimento, abrigo, educação, saúde, bem-estar e emprego. Nós lhes daremos pensões, seguros e proteção.”
A literatura romântica muitas vezes apresenta o indivíduo como alguém lutando contra o Estado e o mercado. Nada poderia estar mais distante da realidade. O Estado e o mercado são a mãe e o pai do indivíduo, e o indivíduo só pode sobreviver graças a eles. O mercado nos fornece trabalho, seguro-saúde e uma aposentadoria. Se quisermos estudar uma profissão, as escolas do governo estão lá para nos ensinar. Se quisermos abrir um negócio, o banco nos empresta dinheiro. Se quisermos construir uma casa, uma empreiteira a constrói e o banco nos concede um financiamento, em alguns casos subsidiado ou garantido pelo Estado. Se a violência irromper, a polícia nos protege. Se ficarmos doentes por alguns dias, nosso seguro-saúde toma conta de nós. Se ficarmos debilitados durante meses, serviços sociais nacionais intervêm. Se precisarmos de assistência 24 horas, podemos contratar uma enfermeira – geralmente uma estranha vinda do outro lado do mundo que cuida de nós com o tipo de devoção que já não esperamos de nossos próprios filhos. Se tivermos os meios para tal, podemos passar a melhor idade em uma casa de repouso. As autoridades fiscais nos tratam como indivíduos e não esperam que paguemos os impostos do vizinho. Os tribunais também nos veem como indivíduos e nunca nos punem pelos crimes dos nossos primos.
Não só homens adultos como também mulheres e crianças são reconhecidos como indivíduos. Durante a maior parte da história, as mulheres foram vistas como propriedade da família ou da comunidade. Os Estados modernos, por outro lado, veem as mulheres como indivíduos, que desfrutam de direitos econômicos e legais independentemente de sua família e comunidade. Elas podem ter sua própria conta bancária, decidir com quem se casar e até mesmo escolher se divorciar ou viver sozinhas.
Mas a libertação do indivíduo vem com um custo. Hoje, muitos de nós lamentamos a perda de famílias e comunidades fortes e nos sentimos alienados e ameaçados pelo poder que o Estado e o mercado impessoais exercem sobre nossa vida. Estados e mercados compostos de indivíduos alienados podem intervir muito mais facilmente na vida de seus membros do que Estados e mercados compostos de famílias e comunidades fortes. Quando os vizinhos em um condomínio não conseguem nem sequer concordar sobre quanto pagar a seu zelador, como podemos esperar que resistam ao Estado?
O acordo entre Estados, mercados e indivíduos é perturbador. O Estado e mercado discordam quanto a seus direitos e obrigações mútuos, e os indivíduos reclamam que ambos demandam muito e proveem pouco. Em muitos casos, os indivíduos são explorados pelos mercados, e os Estados empregam seus exércitos, forças policiais e burocracias para perseguir indivíduos em vez de defendê-los. Mas é inacreditável que esse acordo funcione – ainda que de maneira imperfeita –, pois infringe inúmeras gerações de pactos sociais humanos. Milhões de anos de evolução nos projetaram para viver e pensar como membros de uma comunidade; em apenas dois séculos, nos tornamos indivíduos alienados. Nada atesta melhor o poder incrível da cultura. A família nuclear não desapareceu totalmente da paisagem moderna. Quando os Estados e os mercados destituíram a família da maioria de seus papéis políticos e econômicos, deixaram algumas funções emocionais importantes. Ainda se espera que a família moderna atenda necessidades íntimas, que o Estado e o mercado (até agora) são incapazes de atender. Mas mesmo aqui a família está sujeita a cada vez mais intervenções. O mercado molda em um nível cada vez maior a maneira como as pessoas conduzem sua vida romântica e sexual. Enquanto, tradicionalmente, a família era o principal casamenteiro, hoje é o mercado que determina nossas preferências românticas e sexuais e então nos ajuda a encontrá-las – por uma bela quantia. Antes, a noiva e o noivo se encontravam na sala de estar da família, e o dinheiro passava das mãos de um pai às de outro. Hoje, o galanteio é feito em bares e cafés, e o dinheiro passa das mãos dos amantes às das garçonetes. Ainda mais dinheiro é transferido para as contas bancárias de designers de moda, gerentes de academias de ginástica, nutricionistas, esteticistas e cirurgiões plásticos, que nos ajudam a chegar ao café o mais parecido possível com o ideal de beleza do mercado.
O Estado também fica de olho nas relações familiares, sobretudo entre pais e filhos. Os pais são obrigados a mandar seus filhos para que sejam educados pelo Estado. Pais que são especialmente abusivos ou violentos com seus filhos podem ser contidos pelo Estado. Se necessário, o Estado pode até mesmo prender os pais ou transferir os filhos para famílias substitutas. Até não muito tempo atrás, a ideia de que o Estado deveria impedir os pais de bater em seus filhos ou humilhá-los teria sido rejeitada imediatamente, sendo considerada ridícula e impraticável. Na maioria das sociedades, a autoridade dos pais era sagrada. O respeito e a obediência aos pais estavam entre os valores mais sagrados, e os pais podiam fazer quase tudo que quisessem, inclusive matar bebês recém-nascidos, vender os filhos como escravos e casar as filhas com homens que tinham mais que o dobro da sua idade. Hoje, a autoridade dos pais está em queda. Aos jovens é cada vez menos exigida a obediência aos mais velhos, ao passo que os pais são culpabilizados por qualquer coisa de errado que aconteça na vida de uma criança. A mamãe e o papai têm praticamente tanta probabilidade de serem absolvidos no tribunal freudiano quanto os réus em uma farsa judicial stalinista.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: Uma Breve História da Humanidade

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