domingo, 22 de setembro de 2019

Pensando no homem que nunca existiu, Souza tenta ver stripteases. Depois, uma surpresa ao tomar o elevador

O Centro Esquecido de São Paulo, que cerca as estações rodoviária e ferroviária, me dá a sensação de estar montado num carrossel alucinado. As imagens circulam vorazmente, não dá tempo de fixá-las. Tudo o que vejo são manchas velozes, imprecisas, misturadas a música, gritos, vozes, passos.
É o comércio livre. Onde se vendem objetos de segunda mão, roupas usadas, sobras de remédios, livros e revistas velhas (caríssimos), eletrodomésticos retificados, peças de reposição, tiradas de carros que não funcionam mais, mesquinharias. Aqui, compra quem quer, não exigem fichas apropriadas.
Essa calma e vagarosidade me dão a impressão de doença. Os olhos que entrevejo são baços, as bocas repuxadas. Os movimentos retardados, automatizados. Os narizes tremem, perturbados pelo fedor à nossa volta. Não há como evitar. Esta é uma cidade sobre a qual se perdeu todo o controle.
O visual indicativo, produto típico do Grande Ciclo das Comunicações, me informa: teatro. As placas de metal são mal-conservadas, a pintura descascou, há marcas de tiros. Há quantos anos não vou a um teatro? Nem sabia dizer se ainda existiam por aí. Vejo que sim, fiquei curioso.
Estão na Zona Restrita aos Divertimentos. No entanto os grandes teatros funcionam sob égides das Corporações Empresariais. Os ingressos não são mais vendidos, e sim trocados pelos tickets de compras. Cada ticket comercial equivale a setenta por cento do preço do bilhete.
São válidos apenas os tickets cujo valor exceda duas vezes e meia o limite mínimo do consumo obrigatório. Falam que, apesar das dificuldades, os teatros vivem cheios. Tanto as peças normais, obrigatoriamente comédias digestivas, como os grandes shows musicais com os cantores de sucesso.
Passo três vezes diante do teatro. Olhar, interessar, fingir, continuar, voltar. Diante da porta, dois homens me encaram, vou embora. Podem comentar. Besteira, timidez absurda. Uma vez, faz tempo, assisti a um filme curioso. Chamava-se O homem que nunca existiu. Fita comum, passou desapercebida.
Não para mim. Fiquei fascinado com aquele homem que nunca tinha sido. Tentava entender por que e começo a chegar ao ponto de compreensão. Estou subindo esta escada em caracol, pensando que não devo subi-la. Carreguei sempre este sentimento de que não devo estar. Querer, não ir.
Onde vai dar a escada? Os stripteases prometidos serão reais? Espetáculo de museu, não sei como ainda existe, esquecido neste centro caótico. O que mais terá o velho centro preservado? Sempre tive curiosidade em relação ao desconhecido. Avançava com medo sobre ele. Mas avançava.
Cheguei a elaborar para meus alunos uma teoria interessante do Risco Terrível que é o Eterno Conhecido. Uma cópia do trabalho foi anexada ao processo que me deu a compulsória. Não tinha como explicar. Aqueles homens procuravam subversão e a pasta marrom cheia de folhas forneceu o que desejavam.
A sala de aulas era o único lugar onde me sentia bem. Liberado. À frente dos alunos, diante do quadro-negro. Eles gostavam de mim porque eu insistia em sair dos currículos estreitos, organizados de modo a formar baterias conformadas de tecnoburocratas. Tecnocratas, disso o país precisa.
Ouvia isso com exaustão, a cada reunião de professores, nas visitas de inspetor, lia nos boletins do ministério. Os alunos nem conseguiam mais formular questões. Eu mesmo levantava perguntas que nunca me seriam feitas, trazia respostas que nunca outros dariam. Nem eu, mais.
Sala de primeiro andar, espelhos rachados nas paredes. Cortinas vemelhas, remendadas, cobrindo parte dos espelhos. Letreiros recomendando o churrasco especial da casa, frango com farofas e batata. Tinha sido a parte superior de um restaurante antes de ser teatro pulgueiro.
Picada dolorida no braço. Bato com a mão, instintivamente. Mato um inseto marrom. O braço fica latejando. A sala está quase vazia. Discos fanhosos, cheios de ruídos, boleros, rocks, discotecas, músicas fora de moda, tocam por trás da cortina ensebada. Me sinto solto, de repente.
Toda sensação ruim escorre. Posso ficar aqui, ou em outro lugar, quanto tempo quiser. Me vem a vontade de ir embora. Sobre a porta, o painel desbotado, há muito esquecido ali. Anuncia o espetáculo: Adão e suas sexy sete Evas. Todas loiras, olhos azuis. Adão com a maçã.
O porteiro corcunda me olha espantado. “Nem começou, doutor, já vai? Não podemos devolver o ingresso.” Nem respondo, saio, imagino que na parede em frente estão pousados milhares de insetos marrons, a zumbir. A maçã de Adão, desenhada como um símbolo fálico. Vermelho, empalidecido.
O sol desaparece de repente, como todas as tardes. Não há mais crepúsculo desses que alegram calendários em casa de caboclo. Aliás, não há caboclos, as últimas migrações do campo se deram há cinco anos. Nas zonas rurais não ficou ninguém. Para quê? Somos um país urbano. A terra gretada não produz nada.
É curioso. O dia está quente, o sol ardido. Quando chega pela altura de oito horas, cai o escuro. Quando menos se espera, não há luz. O mormaço continua por algumas horas e sofre uma queda brusca. Certas noites, não dá para dormir sem um ou dois cobertores. Quem entende de física?
Não é sempre. O melhor é ter a coberta à mão. No entanto, às vezes, o mormaço permanece inalterado, a gente sente falta de ar. Quer beber água o tempo inteiro. Nessas noites, ninguém dorme. Percebe-se por trás das janelas o ciciar abafado das conversas. No dia seguinte, todos mal-humorados.
Estou há três dias fora de casa. Talvez mais. Sei lá. Não importa. Ficar andando perde o sentido, sinto falta da minha sala, do quarto. E Adelaide? Se conseguir enganar o fiscal do ônibus, não preciso voltar a pé. Estou cansado, sem vontade de andar tanto. O ponto vazio, o S-7.58 chega.
Posso viajar neste carro?
Por que não?
Pensei que fosse proibido.
Só se o senhor não tiver ficha de circulação.
Tem certeza que posso?
Nunca se proibiu ninguém de andar de ônibus.
Dois dias atrás não me deixaram entrar. Me jogaram para fora.
Não deixaram ou jogaram para fora?
Não deixaram, forcei, entrei, me atiraram fora.
Algum mal-entendido. Um cobrador substituto... Vai ver foi isso...
Foi contigo.
Não me lembro do senhor. Vai sentar, vai... É melhor.
Viajei olhando na cara do cobrador atrevido. Nem se dignou me encarar. Continuou trabalhando como se não tivesse havido nada. Sinto outra picada no braço, é o inseto marrom. Virando praga, como os grilos. São meio bobalhões, picam e grudam. Não parecem mosquito, abelha, motuca, borrachudo.
Quando enfiei a chave na porta, tive um arrepio estranho. Veio um cheiro de casa fechada. O silêncio. A esta hora Adelaide sempre está vendo sua novela, se não for aula de receitas. Tudo escuro. Nunca senti o cheiro de minha casa parada. Andei por todos os cômodos. Ninguém.
A casa arrumada, chinelos sobre o tapete de retalhos, o urinol debaixo da cama. O meu cotidiano. Um bilhete sobre o travesseiro. Letra de Adelaide. Atirei no urinol e me deitei. Com roupa e tudo, a luz acesa, fumando, jogando a cinza no chão. Depois, larguei a brasa, esperei fazer um furo no tapete.
Quando acordei, ouvi barulhos de rua. Abri a geladeira, só tinha manteiga. Factícia, com gosto de sebo misturado a plástico. A cozinha estava em ordem, o chão todo limpo, o banheiro cheirava a detergente. Minha vida inteira cheirou detergente. Urinei fora da privada, cuspi no chão.
Fiz um café fraco, espalhei pó, deixei cair xícaras, quebrei dois pratos. Vesti um paletó que não combinava com a calça. “Assim você não pode ir, querido. O que vão dizer no escritório? Que sua mulher não cuida de você?” Deixei que ela me cuidasse todos esses anos. Eu a fiz assim, na verdade.
Paletó? Estou louco? Queimei o paletó no incinerador de lixo. As cinzas não desceram, o escoadouro estava entupido. O dia nublado. Se ao menos fosse chuva. Fico com a boca seca de pensar na possibilidade de uma chuva. Uma garoinha leve que molhasse tudo, umedecesse a terra, me encharcasse.
As secas definitivas vieram logo após o grande deserto amazônico. Um ano sem gota de água e as represas de São Paulo se esgotaram. Apavorado, o povo fazia promessas, enchia as igrejas. Organizavam procissões, novenas, romarias. Inúteis. Poços artesianos começaram a ser abertos às pressas, às centenas.
Por muito tempo, a secretaria de obras trabalhou em poços. Todas as verbas foram desviadas para os programas de água. Cada estado contou consigo, não havia possibilidade de ajudar o outro. O problema era igual para todos, estavam à beira da calamidade. Charlatões, fazedores de chuva enriqueceram.
As chuvas não vieram. De nada adiantaram procissões, rezas, trezenas, missas, macumbas. Padres gritaram no púlpito que tinha chegado o juízo final. Parlamentares denunciaram o Esquema no congresso. Tantos padres e políticos tiveram de se calar sob pena de aplicação do Definitivo Julgamento.
Onde será que foi minha mulher? Para a casa da mãe, decerto. Um dia desses, passo por lá. Bom, féria conjugal faz bem. E a faxineira? Devia ser dia dela vir. Ou foi ontem? Estava tudo tão arrumado. Caminhei para o escritório ao sair do ônibus. Maquinal, nem percebi. Fiquei à espera do elevador.
O ascensorista me olhou, amedrontado. Seu rosto se refletia nos espelhos enfumaçados do elevador, imagem reproduzida ao infinito. Não nítida, toda sombreada, apenas um esboço do rosto. E eu vi milhares de rostos aterrados me contemplando. O ascensorista não sabia que atitude tomar.
Está lotado!
Lotado? Como? Está vazio!
Vazio, mas reservado.
Desde quando se reserva elevador?
Me avisaram que o senhor não trabalha mais aqui. Deram ordens para não deixá-lo subir.
Você me conhece, não fiz nada de mal.
Para mim o senhor era até boa pessoa. Não... não é mais...
Não sou mais?
É... o senhor sabe... tem quem mande... tem quem diz as coisas como devem ser...
Fechou a grade interna rapidamente, ficou atento, pronto para subir caso eu tentasse alguma coisa. Atirei-me contra a grade, rindo, vendo o pavor desfigurar totalmente o rosto dele. Fiz só para ver o que vão comentar lá em cima os homens-mesa, homens-gaveta, quietinhos, obedientes.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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