terça-feira, 4 de junho de 2019

Viver é muito perigoso...

Ilustração: Rodrigo Rosa

[…] No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso...
A que, o que logo vi, que Marcelino Pampa, por bem de seu dispor, não dava altura. A tento de se acertar nos primeiros rumos de se mexer, ele me chamou, mais João Concliz. ― Os Judas estão aqui mesmo, de nós a umas quinze léguas, e sabem da gente. Deveras atacar, não atacam, com este tempo de todas chuvas e ribeirões cheios. Mas vão fechando modo de rodear a gente, de menos longe, porque a quantidade deles é à farta... Recurso, que eu acho, é dois! ou se fugir para o chapadão, enquanto tempo ― mas é perder toda esperança e diminuir da vergonha... Ou, então, forçar tudo e experimentar um caminho por entremeio deles! se vai para a outra banda do Rio, caçar João Goanhá e os outros companheiros... Mais ainda não sei, quero toda razoável opinião. Assim ele, Marcelino Pampa, disse. ― Mas, se souberem a notícia que Medeiro Vaz morreu, hoje mesmo é capaz que sejam de vir em riba de nós... ― foi o que João Concliz achou; e estava muito certo. Eu não atinava com o que dizer, as confusões dessas horas me encostavam. O que era, na situação, que Medeiro Vaz havia de fazer? E Joca Ramiro? E Sô Candelário? Ao esmo, esses pensamentos em mim. Ai de, foi que reconheci como súcia de homens carece de uma completa cabeça. Comandante é preciso, para aliviar os aflitos, para salvar a ideia da gente de perturbações desconformes. Não sabia, hoje será que sei, a regra de nenhum meio-termo. Sem ação, eu podia gastar ali minha vida inteira, debulhando. Também, logo depois, depois de muitos silêncios e poucas palavras, Marcelino Pampa resolveu que, de tarde, nossa conversa ia ter repetição. Atontados, três.
Dali, fui para perto de Diadorim. ― Riobaldo, ― ele mal disse ― você está vendo que não temos remédio... Aí, esbarrou, pensou um tempo, com uma mão por cima da outra. ― E vocês, que foi que determinaram de se fazer? ― me perguntou. Respondi! ― Hoje de tarde é que se toma decisão, Diadorim. Você está mal satisfeito? Ele endireitou o corpo. Foi, falou! ― Sei o meu. Cá por mim, isso tudo pouco adianta. Quente quero poder chegar junto dum dos Judas, para terminar! Eu sabia que ele falava coisas de pelejar por cumprir. Eu tinha mais cansaço, mais tristeza. ― Quem sabe, se... Para ter jeito de chegar perto deles, até se não era melhor... ― assim ele desabafou, em trago; e recolhido num estado de segredo. Por seus grandes olhos, onde aquilo redondeou, cri que armasse agarrar o comando, por meio de acender o bando todo em revolta. Qualquer loucura, semelhante, era a dele. Mas, não; mais disse: ― Foi você, mesmo, Riobaldo, quem governou tudo, hoje. Você escolheu Marcelino Pampa, você decidiu e fez... Era. Gostei, em cheio, de escutar isso, soprante. Ah, porém, estaquei na ponta dum pensamento, e agudo temi, temi. Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo!
Mas, depois de janta, quando estávamos outra vez reunidos ― Marcelino Pampa, eu e João Concliz, ― não se teve nem o tempo de principiar. Pelo que ouvimos: um galope, o chegar, o riscar, o desapêio, o xaxaxo de alpercatas. Sendo assim o Feliciano e o Quipes, que traziam um vaqueirinho, escoltado. Que vieram quase correndo. O vaqueirinho não devia de ter mais de uns quinze anos, e as feições dele mudavam ― de mestre pavor.
Arte, que este tal passou, às fugas, meio arupa. Pegamos. Aí ele tem grande coisa pra contar... ― e empurraram um pouco o vaqueirinho. De medo ― a gente olhava para ele ― e de nossos olhos ele se desencostava. Afe, por fim, bebeu gole de ar, e soluceou:
E um homem... Só sei... E um homem...
Te acerta, mocinho. Aqui você está livre e salvo. Aonde é que está indo? ― Marcelino Pampa regrou.
E briga enorme... E um homem... Vou indo pra longe, para a casa de meu pai... Ah, é um homem... Ele desceu o Rio Paracatú, numa balsa de burití...
Que foi mais que o homem fez? ― então João Concliz perguntou.
Deu fogo... O homem, com mais cinco homens... Avançaram do mato, deram fogo contra os outros. Os outros eram montão, mais duns trinta. Mas fugiram. Largaram três mortos, uns feridos. Escaramuçados. Ei! E estavam a cavalo... O homem e os cinco dele estão a pé. Homem terrível... Falou que vai reformar isto tudo! Vieram pedir sal e farinha, no rancho. Emprestei. Tinham matado um veadinho campeiro, me deram naca de carne...
Qual é que é o nome dele? Fala! Como é que os outros dizem? Aí e que jeito, que semelhança de figura é que ele tem?
Ele? O jeito que é o dele, que ele tem? Em é mais baixo do que alto, não é velho, não é moço... Homem branco... Veio de Goiás... O que os outros falam e tratam! Deputado. Desceu o Rio Paracatú numa balsa de burití... ― Estávamos em jejum de briga... ― ele mesmo disse. Ele e seus cinco deram fogo feito feras. Gritavam de onça e de uivado... Disse! vai remexer o mundo! Desceu o Rio Paracatú numa balsa de burití... Desceram... Nem cavalo eles não têm...
E ele! Mas é ele! Só pode ser... ― aí alguém lembrou. ― E é. E, então, está do nosso lado! ― outro completou.
Temos de mandar por ele... ― foi a palavra de Marcelino Pampa. ― Onde é que estará? Na Pavoã? Alguém tem de ir lá... ― E ele... E ver a vida! quem pensava? E é homem danado, zuretado... ― Está a favor da gente... E ele sabe guerrear... E era. Repegava a chuva, trozante, mas mesmo assim o Quipes e Cavalcânti montaram e saíram por ele, da Pavoã no rumo. De certo não acharam fácil, pois até à hora de escurecer não tinham aparecido. Mas! aquele homem, para que o senhor saiba, ― aquele homem! era Zé Bebelo. E, na noite, ninguém não dormiu direito, em nosso acampo. De manhã, com uma braça de sol, ele chegou. Dia da abelha branca.
De chapéu desabado, avantes passos, veio vindo, acompanhado de seus cinco cabras. Pelos modos, pelas roupas, aqueles eram gente do Alto Urucúia. Catrumanos dos gerais. Pobres, mas atravessados de armas, e com cheias cartucheiras. Marcelino Pampa caminhou ao encontro dele; seguinte de nosso comandante, nós formávamos. Valia ver. Essas cerimônias.
Paz e saúde, chefe! Como passou?
Como passou, mano?
Os dois grandes se saudavam. Aí Zé Bebelo reparou em mim:
Professor, ara viva! Sempre a gente tem de se avistar... De nomes e caras de pessoas ele em tempo nenhum se esquecia. Vi que me prezava cordial, não me dando por traidor nem falso. Riu redobrado. De repente, desriu. Refez pé para trás.
Vim de vez! ― ele disse; disse desafiando, quase.
Em boa veio, chefe! E o que todos aqui representamos... ― Marcelino Pampa respondeu.
A pois. Salve Medeiro Vaz!...
Deus com ele, amigo. Medeiro Vaz ganhou repouso…
Aqui soube. Lux eterna... ― e Zé Bebelo tirou o chapéu e se persignou, parando um instante sério, num ar de exemplo, que a gente até se comoveu. Depois, disse:
Vim cobrar pela vida de meu amigo Joca Ramiro, que a vida em outro tempo me salvou de morte... E liquidar com esses dois bandidos, que desonram o nome da Pátria e este sertão nacional! Filhos da égua... ― e ele estava com a raiva tanta, que tudo quanto falava ficava sendo verdade.
Pois, então, estamos irmãos... E esses homens?
Os urucuianos não abriram boca. Mas Zé Bebelo rodeou todos, num mando de mão, e declarou forte o seguinte:
Vim por ordem e por desordem. Este cá é meus exércitos!...
Prazer que foi, ouvir o estabelecido. A gente quisesse brigar, aquele homem era em frente, crescia sozinho nas armas.
Vez de Marcelino Pampa dizer!
Pois assim, amigo, por que é que não combinamos nosso destino? Juntos estamos, juntos vamos.
Amizade e combinação, aceito, mano velho. Já, ajuntar, não. Só obro o que muito mando; nasci assim. Só sei ser chefe.
Sobre curto, Marcelino Pampa cobrou de si suas contas. Repuxou testa, demorou dentro dum momento. Circulou os olhos em nós todos, seus companheiros, seus brabos. Nada não se disse. Mas ele entendeu o que cada vontade pedia. Depressa deu, o consumado!
E chefe será. Baixamos nossas armas, esperamos vossas ordens...
Com coragem falou, como olhou para a gente outra vez.
Acordo! ― eu disse, Diadorim disse, João Concliz disse; todos falaram! ― Acordo!
Aí Zé Bebelo não discrepou pim de surpresa, parecia até que esperava mesmo aquele voto. ― De todo poder? Todo o mundo lealda? ― ainda perguntou, ringindo seriedade. Confirmamos. Então ele quase se aprumou nas pontas dos pés, e nos chamou!
Ao redor de mim, meus filhos. Tomo posse! Podia-se rir. Ninguém ria. A gente em redor dele, misturando em meio nosso os cinco homens do Urucúia. Adiante! ― Pois estamos. E o duro diverso, meu povo. Mas os assassinos de Joca Ramiro vão pagar, com seiscentos-setecentos!... ― ele definiu, apanhando um por um de nós no olhar. ― Assassinos ― eles são os Judas. Desse nome, agora, que é o deles... ― explicou João Concliz.
Arre, vote! dois judas, podemos romper as alelúias! Alelúia! Alelúia! Carne no prato, farinha na cúia!... ― ele aprovou, deu aquilo feito um viva. Nós respondemos. E assim era que Zé Bebelo era. Como quando trovejou: desse trovoo de alto e rasto, dos gerais, entrementes antes dos gotêjos de chuva esquentada: o trovão afunda largo, pé da gente apalpa a terra. Conforme foi: trovejou de cala-a-boca ― e Zé Bebelo tocou um gesto de costas da mão, respeitoso disse: ― Isto é comigo... Do que se tratava, retorno e conto, ele o seguinte revelou: ― Tudo eu não tinha, com os meus, munição para nem meia-hora... A gente reconheceu mais a coragem dele. Isto é, qualquer um de nós sabia que aquilo podia ser mentira. Mesmo por isso, somenos, por detrás de tanta papagaiagem um homem carecia de ter a valentia muito grande.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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