segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O homem que perdeu as letras do livro


Estava deitado, lendo. À noite, antes de dormir, era o único momento disponível para leitura. Lia dez minutos e pegava no sono. Um ritual. Já tinha tentado ler mais tempo, não conseguia. Dormia de luz acesa, o livro na mão, acordava alta madrugada, assustado.
A mulher, ao lado, via televisão. À noite, antes de dormir, era o único momento que ela tinha para ver televisão. Durante o dia, trabalhava. Voltava correndo, fazia o jantar, cuidava dos filhos e ligava a televisão. Os dois não conversavam, diziam boa-noite, bom-dia, bom livro, bom programa, os meninos estiveram bem etc.
Uma vida comum, normal. Igual à de todo mundo. Sem grandes mudanças, tranquila, estável, renda familiar média, apartamento simpático. Não desses anunciados aos domingos nos suplementos imobiliários, com grandes fanfarras, mas um apartamento confortável, dois quartos, sala cozinha e banheiro.
De modo que, o homem estava lendo. Então, percebeu um leve embaralhar das letras. “O sono está chegando”, pensou, “mas vou aguentar”. Tinha feito uma promessa. Resistir um minuto a mais por dia, até que atingisse uma hora, duas.
Continuou a ler, as letras embaralharam mais ainda. As linhas pareciam entortar. Fechou os olhos um segundo. “Se eu descansar, melhoro, não estou com tanto sono.”
Abriu os olhos, continuou a leitura. Aí, as linhas entortaram como se alguém tivesse dado um empurrão violento. E as letras começaram a despencar, como leve garoa, no colo dele. Em dois segundos a página ficou em branco.
Estou louco, sonhando, o quê?” Virou a página. Tudo escrito, certinho. Mas no que virou, as letras despencaram. Ele acordou totalmente. “Esta não! Cada livro vagabundo que andam vendendo. Nem imprimir direito imprimem mais. É uma tinta sem cola, a letra não gruda na página.” Como não tinha o mínimo conhecimento de impressão, imaginava coisas. Na verdade, estava abalado. Olhou para a mulher. Ela, indiferente, seguia as opiniões dos jurados num programa de prêmios. Não tinha visto nada.
Foi virando as páginas, uma a uma. As letras formavam, agora, um amontoado preto sobre a cama. Folheou o livro, rapidamente, as letras caíram numa enxurrada. Formando um monte considerável. “Quantas letras são necessárias para um livro.” Fez, superficialmente, um cálculo estatístico: se cada linha contivesse 50 letras e cada página 38 linhas, então um livro de 300 páginas teria cerca de 57 mil letras.
A mulher virou-se na cama e viu aquele montinho, a poeirinha negra se espalhando.
O que é isso? Essa sujeira? Cinza de cigarro?
Que cinza! Que nada! São as letras do meu livro que caíram.
Ora essa. Letra caindo de livro?
Verdade.
E agora?
Vou apanhá-las, reconstituir o livro.
Não vai, não!
Ela deu um tapa, atirou tudo no chão. Buscou uma vassoura, jogou as letras sobre uma pá, enfiou num saco plástico, colocou no tubo de lixo.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras Proibidas

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