quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Preparativos para a partida

Fotograma do filme As vinhas da ira

No terreiro e no celeiro moviam-se os círculos luminosos das lanternas, os homens juntavam todos os objetos que iriam levar na viagem e os empilhavam ao lado do caminhão. Rosa de Sharon trouxera para fora todas as roupas que a família possuía: os macacões, as botinas de solado grosso, as botas de borracha, os melhores ternos, os suéteres e os casacos de pele de carneiro. E ela meteu todas essas coisas num caixote e entrou no caixote também, pisando tudo muito bem para arranjar mais espaço. Depois trouxe os vestidos de chita, os xales, as meias pretas de algodão e as roupinhas das crianças — pequenos macacões e vestidinhos de chita —, botou tudo no caixote e pisou tudo muito bem, outra vez.
Tom foi ao depósito e apanhou todas as ferramentas que valia a pena levar — um serrote, um jogo de chaves de fenda, um martelo, um sortimento de pregos de diversos tamanhos, dois alicates, uma lima plana e duas curvas.
Rosa de Sharon trouxe para fora um grande rolo de encerado e desenrolou-o no chão, atrás do caminhão. Lutou para atravessar a porta com os colchões, três colchões de casal e um de solteiro. Empilhou-os sobre o encerado e trouxe depois velhos cobertores dobrados e colocou-os também um por cima dos outros.
A mãe e Noah trabalhavam rapidamente no preparo da carne de porco, e o cheiro da carne grudada aos ossos se apoderava da cozinha. As crianças já haviam adormecido, agora que a noite avançava. Winfield dormia enrolado, na poeira defronte à porta, e Ruthie, que se tinha sentado sobre um caixote na cozinha, de onde viu esquartejarem o porco, deixou-se cair de encontro à parede. Respirava tranquilamente e tinha os lábios ligeiramente entreabertos.
Tom terminou de arrumar as ferramentas e entrou na cozinha com a lanterna na mão; o reverendo Casy seguia-o.
Deus do céu! — exclamou ele. — Que cheiro formidável! Ouve só como estala!
A mãe ainda estava ocupada em colocar os pedaços de carne salgada nas barricas e espargia sal nos espaços entre cada um deles, untava-lhes com bastante sal as superfícies e apertava-as bem contra o fundo da barrica. Ela levantou a vista para Tom e sorriu-lhe um pouco, mas seus olhos estavam cansados e sérios.
É bom a gente ter ossos de porco para o almoço — falou ela.
O pregador chegou-se a ela.
Deixe que eu salgue esta carne — falou. — Eu sei fazer isso. E a senhora tem outras ocupações.
Ela interrompeu o seu trabalho e lançou um olhar singular ao pregador, como se este tivesse sugerido algo de extraordinário. Suas mãos estavam untadas de sal molhado e avermelhadas pelo sangue da carne fresca.
Não, isso é trabalho de mulher — disse, afinal. — É trabalho — replicou o pregador.
E temos muito o que fazer para firmar diferença entre trabalho de homem e de mulher. A senhora tem muitas outras coisas a resolver. Deixe que eu salgue esta carne.
Durante mais alguns segundos, ela o encarou e depois entornou um balde d’água numa tina e lavou nela as mãos. O pregador foi pegando os tijolinhos de carne de porco e os foi untando com sal. Depois foi colocando-os na barrica, como a mãe fizera antes. Somente depois que ele terminou uma camada inteira e a cobriu cuidadosamente com sal foi que ela ficou tranquilizada. Então, enxugou as mãos ásperas e vermelhas.
Tom disse:
Mãe, que é que a gente vai levar daqui da cozinha?
Ela olhou rapidamente em torno.
O balde — falou. — Tudo que precisaremos pra comer: os pratos e copos, as colheres, garfos e facas. Bota tudo na gaveta e leva a gaveta pro caminhão. E também aquela frigideira, a chaleira e a cafeteira. Quando a grelha esfriar, tira ela do fogão. Sempre a gente pode precisar dela, quando fizer carne assada. Por mim, também levava a tina, mas acho que não tem tanto lugar assim. Vou ter que lavar a roupa no balde. As outras coisinhas nem vale a pena a gente carregar. Pode-se cozinhar coisas pequenas em vasilhas grandes, mas não se pode cozinhar coisas grandes em vasilhas pequenas. O que convém é levar todas as fôrmas de pão. Elas entram uma na outra. — Ficou parada a olhar demoradamente a cozinha. — Bom, Tom, pega as coisas que te disse. Eu vou ver o resto, a lata grande de pimenta, o sal, a noz-moscada e o ralador. — Pegou uma lamparina e dirigiu-se pesadamente para o quarto de dormir, e seus pés nus não produziam som algum ao pisar no chão.
Ela parece que está cansada — disse o pregador.
As mulheres sempre se cansam — aduziu Tom. — Elas são assim mesmo. Só não ficam cansadas quando estão no culto.
Sim, mas ela está cansada demais. Como se estivesse doente até.
A mãe ainda não tinha fechado a porta atrás de si e ouvira estas palavras. Lentamente, o relaxamento dos músculos de suas faces sumiu-se, para dar lugar à antiga expressão de energia. Seus olhos brilharam e os ombros se endireitaram. Lançou um olhar ao quarto desnudo. Nada havia ali dentro, a não ser trastes sem o menor valor. Os colchões, que tinham sido postos no chão, foram levados para fora. As mesas tinham sido vendidas. Um pente quebrado estava jogado ao chão, tendo ao lado uma caixa de talco vazia e um montículo de fezes de rato. Ela colocou a lamparina no chão. Pôs a mão atrás de um caixote que servira de cadeira e tirou de lá uma caixa de papel de carta, já bastante velha, suja e quebrada nos cantos. Sentou-se e abriu a caixa, onde havia cartas, recortes, fotografias, um par de brincos, um anel de sinete muito pequeno, de ouro, uma corrente de cabelos trançados e entremeados por fios de ouro. Ela tocou as cartas com os dedos, tocou-as de leve, e alisou um recorte de jornal que tratava do julgamento de Tom. Longo tempo ficou a segurar a caixa, olhando-a; depois seus dedos espalharam o maço de cartas e tornaram a ordená-lo. Mordeu o lábio inferior, pensativa, recordando coisas. Afinal tomou uma decisão. Tirou da caixa o anel, a corrente, os brincos, meteu a mão por baixo do maço de cartas e achou o elo de uma pulseira de ouro. Tirou uma carta de um envelope e pôs nele todos esses pequenos objetos. Fechou o envelope e guardou-o no bolso do vestido. Depois, delicada, cuidadosamente, tornou a pôr a tampa na caixa e acariciou-a com dedos carinhosos. Seus lábios entreabriram-se. A seguir, levantou-se, pegou a lamparina e voltou à cozinha. Ergueu uma das tampas de ferro do fogão e enfiou, devagar, a caixa para dentro do braseiro. Depressa o calor chamuscou a caixa de papelão. Tornou a fechar o fogão, e instantaneamente a caixa foi consumida pelas chamas.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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