quarta-feira, 20 de junho de 2018

Dor

Gosto da Adélia Prado por várias razões. É poeta. Tem o jeitão mineiro. E teóloga. Sempre que ela fala sobre os mistérios do mundo sagrado, eu me calo e medito. Quase sempre as palavras dela iluminam as minhas dúvidas. Sugestão para algum estudante que esteja à procura de tema para dissertação: “A Teologia da Adélia Prado”...
Mas hoje peço perdão. Discordo do que ela escreveu. Estava teologando, falando sobre a coisa mais terrível que há no mundo, o demônio, e foi isso, mais ou menos, o que ela escreveu. Digo “mais ou menos” porque não sei de cor e não posso consultar os livros dela que estão encaixotados, prontos para uma mudança que, julgo, será a última... Foi isso que acho que ela disse: “O céu será igualzinho a essa vida, menos uma coisa: o medo...” . Tanta coisa boa! Não é preciso pôr mais nada. O que está aí chega. Precisa só tirar uma coisa, uma única coisa, e a Terra se transformará no céu. Qual é o nome dessa coisa terrível? Ela responde: o medo.
Concordo. Mas eu acho que tem coisa pior, que é a causa de todos os medos: a dor. Nunca tive medo de cálculo renal. A despeito de eu nunca ter tido medo dele, ele veio, sem pedir licença e sem consultar se eu tinha medo ou não. Foi assim que conheci pela primeira vez a dor do inferno. Cessam todos os pensamentos. O corpo só deseja uma coisa: parar de sentir dor, a qualquer preço.
Dor não tem jeito de explicar. Bernardo Soares diz que tudo o que é sentimento é inexplicável. O artista, para comunicar seus sentimentos — inexplicáveis —, se vale de um artifício: ele invoca um sentimento “parecido” que o outro conhece. Não posso explicar o cheiro da flor de um jasmim-do-imperador. O perfume está além das palavras. Mas eu posso dizer: “É igualzinho ao cheiro de pêssego...”.
De que comparação vou me valer para explicar a dor a alguém que não a está sentindo? Só sabe o que é a dor aquele que a está sentindo, no presente. Enquanto a dor está doendo, meu corpo — não minha cabeça — sabe o que ela é. Passada a dor, ela fica na memória. Passa a morar no passado. Mas isso que está na memória não é conhecimento da dor porque o passado não dói. A memória da dor, por terrível que tenha sido quando aconteceu, não me dá conhecimento da dor, depois que ela se foi.
Minha memória mais antiga de dor me leva de volta à roça onde vivi quando menino. Lembro-me da cena, mas não sinto. Acho até engraçado. Era dor de dente — dor num minúsculo dente. A dor fazia meu minúsculo dente inchar até ficar do tamanho do universo — e eu, chorando, sem saber contar a minha dor, dizia que tinha inveja das galinhas que não tinham dentes... Foi o meu primeiro encontro.
Mais tarde, ela voltou sem se anunciar. Não a mesma. Nenhuma dor é a mesma. Cada dor é única. Chegou bruta, definitiva. Lutei contra ela usando as armas que se compram nas farmácias. Inutilmente. Levaram-me (nesse ponto eu já não era dono de mim mesmo; eu estava à mercê dos outros) então para o hospital, lugar da medicina forte. As injeções são mais potentes que os comprimidos. Aplicaram-me seis Buscopan. A dor não tomou conhecimento. Ficou mais forte. Comecei a vomitar. O médico, reconhecendo a derrota dos recursos penúltimos, dirigiu-se à enfermeira e disse o nome do último, nenhum mais forte: “Aplica uma dolantina nele...”.
Ela aplicou. Aí, passados cinco minutos, senti a mais deliciosa sensação que tive em toda a minha vida. Não era sensação de nada. Que me importavam música, sexo ou flores? Era, simplesmente, a sensação de não ter dor. Pensei se essa euforia não deveria ser o estado normal da alma, sempre que o corpo não estivesse sentindo dor. Rindo e feliz, brinquei que o Paraíso morava dentro de uma ampola de dolantina...
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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