sábado, 31 de julho de 2021

Evidências | Hamilton de Holanda & Mestrinho

Exegese

Mas que quer dizer esse poema? — perguntou-me alarmada a boa senhora.
E que quer dizer uma nuvem? — retruquei triunfante.
Uma nuvem? — diz ela. — Uma nuvem umas vezes quer dizer chuva, outras vezes bom tempo…

Mário Quintana, in A rua dos cataventos

O Impressionismo de Monet

 

Mulher com sombrinha (1875), de Claude Monet

Camponês

 “Sou um camponês que se disfarça suficientemente bem para poder viver na cidade sem olharem muito para mim.”

José Saramago, in As palavras de Saramago

Torto Arado / 10

A agressividade de Tobias cresceu nos meses que se seguiram, a ponto de minha mãe fazer chegar a mim um recado de meu pai: estava preocupado comigo e queria que voltasse para casa. Não seria vergonha alguma para a família meu retorno. Apenas queria zelar por sua filha para que nada de ruim acontecesse.
Tobias reclamava por pouca coisa, e quase sempre a culpa de tudo estava em mim. Bebia grande quantidade de cachaça, seus olhos ficavam vermelhos e pousavam no meu corpo quase sempre para acompanhar os insultos que me dirigia: lembrar que era muda, que passado tanto tempo não havia gerado filho como minha irmã, que não cozinhava bem, que perdia muito tempo arando o quintal, que não queria me ver na companhia de Maria Cabocla. Ela, por sua vez, me dizia que era certo que o problema de não criar menino na barriga não era meu, porque Tobias deitava antes com uma e com outra mulher, mas não se tinha notícia de filho algum. “Decerto”, me disse, “ele é que deve ter a gala rala”.
Não foram poucos os dias em que pensei em retornar à casa de meu pai. Mas algo me dizia que poderia dobrar o homem. Não deveria deixar a casa, acovardada. Se havia coisa que aprendi era que não deveria aceitar a proteção de ninguém. Se eu mesma não o fizesse, ninguém mais poderia. O cuidado que Bibiana direcionava a mim, no passado, nada mais era que o desejo que ela mesma alimentou desde muito cedo de que poderia salvar a todos, talvez influenciada pela experiência de crença de nosso pai. Mas, no fundo, era eu quem a protegia quando demonstrava medo nas atividades mais corriqueiras, quando precisávamos avançar na mata ou nos rios ou marimbus, me fazendo seguir na frente para, caso avistasse uma cobra ou um animal selvagem, espantar com o que dizia ser minha valentia.
Durante um tempo, Tobias ainda temeu meu pai enquanto frequentava as noites de jarê. Bebia, falava alto, chamava atenção dos presentes. Mas não era o único a exagerar, por isso ninguém dava muita importância. Era um momento de descontração da faina levada ao extremo dia a dia. Mas eu, que já o via falar alto quase todo dia por conta da bebida, não suportava nem olhar ou escutar sua voz, nem mesmo ficar ao seu lado quando saíamos. Preferia procurar outras companhias, ajudar minha mãe nos afazeres, ficar com Domingas ou com as filhas de Tonha.
Foi mais ou menos naquele período que me veio um forte sentimento de culpa por ter aceitado viver com Tobias. Ele nunca havia feito perversidade como o marido de Maria Cabocla e de tantas outras que faziam das mulheres saco de pancada. Somente uma vez havia ameaçado me bater, quando me fez procurar uma calça puída que havia costurado dias antes para que vestisse. Gritou com seu jeito grosseiro, e eu, me sentindo ofendida, não arredei o pé da cadeira onde costurava uma toalha. Ele levantou a mão como se fosse dar um tapa e a susteve no ar quando interrompi a costura para mirar com olhos ferozes os seus olhos. Como se o desafiasse a fazer o que ele queria, para ver se sua bravura ultrapassaria minha determinação. Senti um bicho ruim me roendo por dentro naquele instante e talvez tenha visto a fúria que guardava. Tobias abaixou a mão e parou de falar, envergonhado, e saiu para beber mais. Quando retornou, cambaleando, deitou na cama ainda sujo e dormiu.
Pensava que seria melhor se tivesse morrido no dia em que saí de casa. Que poderia ter despencado do cavalo e me estrebuchado no chão sem forças, porque àquela altura minha lamentação não servia de nada. Sabia que mesmo depois de muitos anos, carregaria aquela vergonha por ter sido ingênua, por ter me deixado encantar por suas cortesias, lábia que não era diferente da de muitos homens que levavam mulheres da casa de seus pais para lhes servirem de escravas. Para depois infernizarem seus dias, baterem até tirar sangue ou a vida, deixando rastro de ódio em seus corpos. Para reclamarem da comida, da limpeza, dos filhos mal criados, do tempo, da casa de paredes que se desfaziam. Para nos apresentarem ao inferno que pode ser a vida de uma mulher.
A vida bem sucedida de meu pai e minha mãe, ou até o momento de Bibiana e Severo, parecia ser uma exceção. Sofriam algumas penitências, nenhuma mulher estava livre delas, mas eram respeitadas, tinham voz dentro de casa. Nunca havia visto meu pai dirigir qualquer insulto à minha mãe. Se não eram calorosos e afetuosos entre si, também não eram indiferentes. Cada um sabia da necessidade do outro e concordava em ceder para avançar. Apesar de pouco tempo, conseguia ver que comigo não seria do mesmo jeito. Poderia até piorar, a ponto de Tobias me destinar os mesmos maus-tratos que Aparecido dava a Maria Cabocla.
Sem justificativas, Tobias passou a ficar mais tempo fora de casa. Deixou de ir ao jarê de meu pai e começou a frequentar outro, a léguas de distância. Quando não era o jarê eram as festas de santo, ou os aniversários e batizados da gente que conhecia. Continuava a chegar bêbado, com as roupas sujas, com todos os tipos de mancha, de barro a pintura de mulher. Foram muitos os dias que dormiu fora de casa. No início, me preocupava com seu jeito explosivo e possíveis brigas e juras de vingança que poderiam recair sobre ele. Me preocupava também que Sutério, vendo correr sua fama, o convidasse a se retirar da fazenda. Já havia decidido que, caso isso ocorresse, não iria embora do lugar em que nasci.
Senti meu corpo esfriar muitas vezes e, a cada ausência de Tobias, rezava por mim mesma, para que tivesse forças para suportar aquela vida. Continuei a trabalhar no quintal, cuidando da roça e das coisas que ele não fazia mais. Só não montava animal como um vaqueiro porque isso não sabia.
Passadas semanas, depois de uma noite mal dormida, sem eu saber por onde andava Tobias, Genivaldo, vaqueiro da fazenda, chegou à porta de nossa casa com o chapéu na mão. Silencioso, o mau presságio a ponto de arrebentar em seu rosto. Parecia uma ave de mau agouro, e senti meu corpo se arrepiar por inteiro. Me convidou a acompanhá-lo pela estrada para o lugar onde encontrou o homem que havia me tirado de casa, caído.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

Eva contra as almas deformadas

 


Esta é a história de uma mulher que cometeu um crime que a humanidade não perdoa. Recusou-se a ser vítima. Eva Rodrigues preenchia todos os requisitos para a sentença. Era mulher: coitada. Era negra: coitada. Era pobre: coitada. Ainda não era tudo. Eva nasceu de um parto sofrido. Teve paralisia cerebral. O corpo todo tremia, ela derrubava a comida, caminhava mal, era toda ela um desajeito. À Eva, o mundo reservava apenas um destino: o de ser coitada. Eva poderia estender a mão e pedir esmolas. E receberia olhares de profunda pena. Em troca da moeda, devolveria ao doador o alívio não apenas da caridade, mas o outro, secreto: a garantia de que a deformidade, assim como a loucura, está sempre no outro.
Eva rebelou-se. Decidiu que não seria coitada. Que o mundo se virasse com isso. Que o mundo achasse outras vítimas para preencher seu horror. Este foi o crime de Eva. Pelo qual jamais a perdoaram. Como não puderam lhe imprimir na testa o rótulo de coitada, a marcaram com outro. Como ela, a deformada, como ela, a deficiente, como ela, a defeituosa, ousava renegar a mão da caridade, irmã da pena, prima da hipocrisia? Como ousava ela, a anormal, encarar de igual para igual os normais? Parecia até que a exibição do corpo torto de Eva revelava a alma torta do outro. Parecia até que a falha exposta de Eva devassava a falha oculta do outro. Como ousava Eva, justo Eva, ser imperfeita em um mundo onde se paga fortunas para que todos sejam igualmente perfeitos? Como ousava Eva ser diferente em um mundo onde a igualdade das ideias é a única garantia de segurança? Como ousava Eva vencer pelo espírito no mundo da aparência?
Ah, quanta pretensão a de Eva. Quanto perigo ofereceu Eva quando decidiu que não seria coitada. De vítima, Eva virou culpada.
É preciso contar como Eva insurgiu-se. Antes de revelar como a castigaram. Eva não sabe se foi nos risos que a perseguiam, nas imitações que dela faziam, se foi no anúncio de que seu destino era ficar amontoada num canto. De preferência em silêncio. Só sabe que decidiu que não se submeteria. Que reinventaria seu destino. Reinventaria a si mesma.
O primeiro ato de rebeldia foi entrar na escola. Conseguiu aos nove anos, no lugar onde nasceu, em Restinga Seca, na região central do Rio Grande. Suas mãos não obedeciam, eram dois membros convulsos que Eva não dominava. Eva usou toda a força de que dispunha para que a mão esquerda segurasse a direita. Uma mão retorcida sobre a outra, dores horrendas pelo esforço, Eva escreveu pela primeira vez. O atrito da mão dobrada sobre o papel deixou os dedos em carne viva. Os primeiros cadernos tinham letras ensanguentadas, palavras feridas. Os primeiros cadernos de Eva foram escritos a sangue.
Eva descobriu nesse momento que era capaz de reescrever seu destino. E, logo à primeira ousadia, já recebeu o primeiro castigo. Mesmo com as melhores notas, foi obrigada a repetir o ano. A professora não aceitava, não compreendia que Eva conseguisse escrever. Eva repetiu e prometeu que repetiria quantas vezes fosse necessário até que a professora, o mundo, entendesse que jamais desistiria. Que os venceria, nem que fosse pelo cansaço. Que pedissem tudo a ela, menos o impossível. Que pedissem tudo a ela, menos que ficasse no seu lugar.
Logo Eva aprendeu que a independência é areia movediça. Território a ser tomado e retomado dia após dia. Aos 17 anos, diante dos oito irmãos, dos pais analfabetos, agricultores sem terra, deu o primeiro grito:
Chega! Eu não sou coitada disso, coitada daquilo. Se eu derramar comida para comer, deixem que eu derrame. Se eu derrubar as coisas quando eu pegar, deixem que eu derrube. Se eu cair, deixem que eu me levante.
Eva mudou-se para Porto Alegre. Empregou-se como doméstica e terminou o ensino médio. Suas mãos, assim como sua alma, eram escalavradas por cicatrizes. Mas já não sangravam.
Eva ingressou na universidade, mas não podia pagar. Por duas vezes lhe negaram o crédito educativo. Pediu transferência para uma mais barata. Eva sonhava em ser educadora. Queria ensinar como se podia escrever com as mãos em chagas. E fazer das mãos retorcidas asas. Mas muitas eram as almas disformes que se colocariam entre Eva e o mundo. A luta estava recém no começo e provavelmente não terá fim.
Ela ouviu e ouviu. Como vai escrever no quadro-negro tremendo desse jeito? Como vai ensinar com uma letra tão feia? Não vê que só vai incomodar? Não entende que entre você e uma menina normal vão escolher a normal? O que você quer? Vai passar a vida olhando para um diploma na parede? Eva ouviu tudo isso de uma educadora. Eva ouviu tudo isso na faculdade. Apenas para comprovar que a ignorância está onde menos se espera. Eva, a deficiente física, respondeu à deficiente de alma:
Em primeiro lugar, eu não vou desistir. Em segundo, a vida é um risco. Não só para mim. Mas para todo mundo.
Eva demorou a descobrir por que sua tremedeira ameaçava tanto aqueles seres impávidos. Qual era a ofensa de sua fragilidade. Foi vilipendiada de todas as formas conhecidas e outras inventadas só para ela. Primeiro, impediram que fizesse estágio. Depois, só poderia fazê-lo numa escola de deficientes. Em seguida, decidiram que tinha de ser durante o dia porque sabiam que nesse horário ela trabalhava para pagar as contas. Por fim, como Eva não desistisse, desistiram eles de a impedir.
Quando o nome de Eva foi pronunciado na formatura, todos levantaram, gritaram, aplaudiram. Eva não ouviu. Todos os seus sentidos estavam concentrados em não cair. Atravessar aquele palco sem tropeçar era a metáfora de sua vida. Eva não cairia. Não ali. E Eva não caiu.
Finalmente conseguiu ocupar as salas de aula como educadora. Foram pelo menos três escolas. E em cada uma algo se passou. Quando descobriam que Eva não era coitada, que empregá-la não era um ato de caridade, tudo mudava. Quando descobriam que Eva era capaz, que era preciso competir com a sua mente, não com seus tremores, tudo se alterava. A comiseração do início transmutava-se em ódio. Quem essa aleijada pensa que é? Foi o que Eva ouviu e escutou. E assim Eva foi expulsa do mundo que mal havia tocado.
Eva não desistiu. Como não desistirá. Prestou concurso em 1994 para servente no extinto Tribunal de Alçada. Pensou que os olhos vendados da Justiça não a julgariam por sua deformidade. Fez concurso em sala especial, como deficiente. Foi aprovada em nono lugar. A nomeação chegou a ser publicada. Mas vejam só, Eva foi reprovada pelo neurologista. Porque tremia as mãos, porque derramaria os cafezinhos.
Uma assinatura encerrou o capítulo de uma vida. Eva ingressou na Justiça. A defensora pública não compareceu ao julgamento alegando não ter sido avisada. Eva continuou. O processo está hoje no Supremo Tribunal Federal. Eva voltou a trabalhar como doméstica.
Eva é mulher, negra e pobre. Eva treme as mãos. Tudo isso até aceitam. O que não lhe perdoam é ter se recusado a ser coitada. O que não perdoam a Eva é, sendo mulher, negra, pobre e deficiente física, ter completado a universidade. E neste país. Todas as fichas eram contra ela e, ainda assim, Eva ousou vencer a aposta. Por isso a condenaram. Atenção para as palavras de Eva:
A cada vez que me derrubarem eu vou levantar com mais força. Não quero saber de derrota. Derrota nunca esteve nos meus planos. E coitado é quem me chama.
A vida é pródiga em paradoxos. O de Eva é que a odeiam porque não podem sentir pena dela. E o do mundo é que as piores deformações são as invisíveis.

Eliane Brum, in A vida que ninguém vê

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Maria Flor / Cor de Maria

Saudade, sempre

Sem mim
me agarro a um tanto de mim
não aqui
já existente
sobre tudo e abismo.
Horas são outrora
além-de. O
muito em mim me faz:
som de solidão.

Guimarães Rosa

Fubina

Levante um só dedo e estará salvo!”, dizia o reverendo Davis ao Fubina deitado na cama, já sem consciência de coisa alguma. O momento era grave. A eternidade estava em jogo. Os circunstantes acompanhavam a batalha entre Deus e o Diabo. “Levante um só dedo e estará salvo!”, repetia o reverendo Davis. Mas o dedo do Fubina não se levantava. Quem diria que de um levantamento de dedo dependia o futuro eterno da alma do Fubina! Se levantasse o dedo, sua alma iria para as delícias do Céu. Se não levantasse o dedo, sua alma iria para os horrores do Inferno.
O reverendo Davis era um missionário norte-americano, de rudes origens rurais. Aprendera na sua congregação as verdades espirituais necessárias à salvação das almas. Sabia que os católicos iriam para o Inferno por serem idólatras. Ficou sabendo que havia milhões de pessoas que iriam para o Inferno se alguma coisa não fosse feita para salvá-las da idolatria do catolicismo. Então, de repente, Deus o chamou... Foi quando ele lia o livro de Jonas, no Antigo Testamento. Jonas, um pacato cidadão que cuidava da sua vida, foi chamado por Deus, que lhe ordenou largar tudo e ir para Nínive, a grande cidade, para pregar contra os seus pecados. Se a cidade não se arrependesse, Deus a destruiria! Jonas não gostou da idéia e fugiu na direção contrária: tomou um navio que ia para Társis. O resto todo mundo sabe. Deus mandou uma tempestade sobre o mar que ameaçava afundar o navio. Descobriram que Jonas era o culpado daquela situação e, sem dó nem piedade, lançaram-no ao mar, sobrevindo imediatamente a bonança. Mas Deus havia posto um peixe à espera. De boca aberta, engoliu Jonas sem lhe fazer mal algum. E, no ventre do peixe, Jonas chegou mesmo a fazer literatura. O reverendo Davis não queria que coisa parecida acontecesse com ele e tratou de ir na direção que Deus apontava, o Brasil e seu povo idólatra. Era o santo guerreiro contra o dragão da maldade. Por caminhos vários chegou a Dores, onde pregava monótonos sermões num pequeno salão. Ninguém prestava muita atenção nos sermões, nem era possível, mas os hinos eram bonitos. Minha mãe, de vez em quando, acompanhava os hinos ao harmônio. O Fubina era um homem comum, nem santo nem pecador, pecava somente os pequenos pecados que tornam a vida menos monótona, como, de vez em quando, jogar na loteria ou beber uma cerveja sem que ninguém o visse. Não, o Fubina não merecia o Inferno eterno de forma alguma. Mas faltava-lhe uma coisa: ainda não havia publicamente confessado que aceitava Cristo como seu salvador. Por isso ele estava excluído da eucaristia. O reverendo Davis advertia o Fubina com seu sotaque americano: “O senhor está procrastinando...” . Como o Fubina não soubesse o que era “procrastinar”, as palavras do reverendo entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Tudo menos se comprometer. Mas tempo vai, tempo vem, o Fubina teve um derrame e perdeu a consciência das coisas. O momento decisivo se aproximava. Os católicos são mais felizes que os protestantes. Eles têm um jeito de fazer depósitos de méritos na conta de uma pessoa mesmo depois de sua morte. No Purgatório estão as almas em liberdade condicional. Missas e rezas são créditos que se somam à contabilidade espiritual falida daquelas almas. Quando os débitos se equilibram com os créditos então a alma sai de sua liberdade condicional e vai para a bem-aventurança eterna. Mas o Deus protestante não aceita pagamentos a prazo. Com a morte vem a execução imediata da dívida, e a alma vai eternamente para o fogo do Inferno. Essa era a agonia do reverendo Davis. A alma do Fubina estava em perigo. Ele chegou mesmo a amenizar a exigência de confissão pública da fé. Bastava que o Fubina mexesse um dedo, uma única vez. O dedo do Fubina não mexeu. O reverendo Davis perdeu a batalha. O Diabo ganhou. Fora ele, o Diabo, que segurara o dedo do Fubina para que não levantasse. Pobre Fubina... Se o seu dedo tivesse se mexido, ele passaria a eternidade no Céu ouvindo coros de anjos a cantar hinos. Mas o seu dedo não se mexeu. Passará toda a eternidade no Inferno a ouvir os sádicos demônios a repetir, em coro, a voz esganiçada da sua mulher a lhe dar ordens... Quem diria que o destino eterno de uma alma pode depender de uma ereção de dedo!

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

Quase Nada

 

Inventar meu porto

Dobrei — entre contentamento e tristeza — as poucas e mudas roupas. Nunca soube por que as lágrimas se negam a serem doces quando convocadas pela alegria. Sempre chorei salgado, talvez pelo peso da carne morta. Meu desterro, decretado pela voz do pai — naquela manhã seca e fria —, me fez inventar meu porto, mesmo sem escolher a margem do rio. Do abandono construí meu cais sempre do outro lado. Em barco sem âncora e bússola, carrego, agarrado ao meu casco, caramujos suportando sobre si o próprio abrigo, solitariamente.
Não disse adeus. O amor peregrinou em meu corpo vida adentro. Se tudo era nada, a lembrança acordava mais. O amor se fez sempre o rosto do meu depois. A saudade, ao me afrontar, mais eu desfazia dos amanhãs. E, se a carne reclamava, eu salgava sua dor com os sonhos da memória. Sua ausência ocupou os labirintos por onde eu me procurava e me perdia em meus próprios traços. Mesmo em vão, jamais interditei os prenúncios do meu amor.
Dois. Desconheço o depois de minha despedida. Não se caminha sobre a sombra ao entardecer. Ignoro se o remorso nos preservava em suas memórias, ou se a paixão lhes presenteou com o esquecimento. A culpa é relativa ao tamanho da memória. Esquecer é desexistir, é não ter havido. Ao me interrogar se tomate ainda há, não me fecho em silêncio. Confirmo que minha primeira leitura se deu a partir de um recado rabiscado pela faca no ar cortando em fatias o vermelho.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

Sobre padrões estéticos e mágoas

Segunda-feira, dia em que mesmo quando a gente acorda na hora, sabe que já está atrasado. E foi numa dessas que coloquei meu tênis, peguei minha mochila e saí para a academia.
Quando entrei no elevador – Jesus, que susto! –, quem é aquela mulher, de cara lavada e olheiras profundas? Quem? Eu? Como assim, eu? Sim. A verdadeira “eu”, que está sempre oculta embaixo de uma bela camada de maquiagem. Na pressa, não me lembrei de nada e saí com a minha própria cara. Que choque. Estava pronta para mandar o elevador de volta para o meu andar e para fazer, com corretivo e blush, minha cara voltar a ser o que não sou, mas que acho que devo ser. Foi quando pensei: “Pera lá, Ruth. Academia. Dá pra ir sem corretivo nas olheiras, vai? Ninguém vai enfartar de medo da sua cara.”
E fui. E ninguém desmaiou. Nem riu. Nem me perguntou de que caverna eu saí. Podem ter pensado, isso podem. Mas também podem ter pensado “Olha, aquela moça tem olheiras que nem eu. Não estou sozinho”.
Voltei para casa, tomei meu banho e comecei a trabalhar. Decidi gravar um vídeo no Snapchat. Quando abri a câmera pensei “Opa! De novo! Essa Ruth desmaquiada. Não posso gravar assim”. Parei. Pensei de novo. O que será que é mais bacana para meus seguidores (sobretudo os do Snap, tão novos)? Eu aparecer sempre ajeitada e produzida, fazendo-os se perguntar se só eles são mortais, normais, descabelados, com espinhas no queixo, enquanto a blogueira aqui está sempre arrumada? Melhor isso ou ser de verdade?
Coincidência ou destino, recebi minutos depois uma mensagem de uma amiga que é professora de ensino médio. Ela ficou me contando que passou um texto meu para seus alunos. Era um texto sobre ser nariguda, no qual eu brincava com isso e falava da minha aceitação – e até carinho – pelo meu narigão. Ela pediu para os alunos escreverem sobre suas características incômodas e como lidavam com elas. Fiquei com os olhos cheios de lágrimas. Seguem alguns trechos:
As crianças que falavam comigo me faziam ficar inferior a elas, pela minha estatura fora do normal. Ficavam me xingando ou me chamando de ‘poste de luz’, ‘girafa’, entre outras coisas. Queria bater neles, não queria me sentir inferior a ninguém.” Luiz Gabriel
Por que cacheado? Por que não liso? Eu não gostava do meu cabelo, me achava diferente das outras pessoas… Ele era cheio, volumoso, cheio de ondinhas que pareciam miojo, enfim, eu detestava.” Giovanna
Muita gente tem marca de nascença, e eu sou uma dessas pessoas. Eu tinha muito receio e até uma certa vergonha de usar algumas roupas ou biquíni só pelo fato de ela aparecer. Já fizeram muitas brincadeiras de mau gosto comigo, já fiquei mal de verdade por conta dessas brincadeiras.” Maria Carolina
Uma parte da minha infância foi marcada pelo apelido Dumbo, porque eu era gordinho, baixinho e, óbvio, orelhudo. Não aceitava de jeito nenhum esse apelido, tinha vontade de não sair mais de casa. Chegar perto de um espelho, então, ‘somente para ver dos ombros pra baixo’.” Allef
Faz uma franja, não use tiara, não prende o cabelo assim. Com tantas pessoas falando, às vezes acabamos escondendo nossa testa com uma franja ou uma touca. Não ligue quando derem um tapa na sua testa e falarem que dá para amaciar carne ali.” Larissa
Por que será tão fácil nos acusarmos e acusarmos os outros, nos condenarmos e condenarmos os outros por sermos como somos e tão difícil cultivarmos afeto pela nossa natureza? Não é difícil entendermos, se sairmos olhando as imagens com as quais somos bombardeados diariamente. Pessoas impecáveis, corpos esculpidos com Photoshop. Tudo montado, tudo estruturado. Natural acharmos que só nós, mortais, temos defeitos.
Então chega, né? Chega de ser escrava da maquiagem. Chega de boné escondendo a testa, o cabelo ou a careca. Chega de cinta modeladora, de calcinha que aperta a barriga. Chega de barba para esconder o queixo pontudo. Chega de secar o cabelo todo dia no verão. E chega, sobretudo, de apontar essas “falhas” nos outros. Chega de ser mais um dedo que julga aqueles que já são julgados diariamente por si próprios.
A gente pode gostar de tudo isto: de batom, de corretivo, de cabelo alisado, de barba, de boné. Mas a gente precisa gostar mais da gente. Precisa se abraçar de vez em quando e se aceitar do jeito que é. Precisamos elogiar os outros. Reduzir as críticas, as piadas, os risos. A gente nem pode mensurar o mal que isso faz, para nós e para os outros. E nem imaginamos quantas empresas lucram milhões com a nossa autoestima no chão. Que sentido faz contribuirmos com elas, e não conosco e com as pessoas que nos cercam?
Luiz Gabriel, garotos altos são lindos e dão os melhores abraços. Deve ter muita gente querendo um abraço seu. Giovanna, acabei de gastar uma nota num aparelho para encaracolar meus cabelos, aproveite os seus que são assim naturalmente. Maria Carolina, eu também tenho uma mancha de nascença, vermelha, no pescoço. Aprendi a achar um charme, prendo o cabelo só pra ela aparecer. Allef, eu também era chamada de Dumbo. Acabei me rendendo a uma cirurgia plástica. Vou me orgulhar de você se não fizer o mesmo. E se decidir fazer um dia, vou ser a primeira a entender. Larissa, dizem que testa grande é sinal de inteligência. Eu realmente acredito nisso, porque minha irmã tem uma testa enorme e é uma mulher brilhante. E, por sinal, também é linda, independentemente do tamanho da testa.
Eu nem conheço vocês, mas uma coisa garanto: vocês são muito mais fantásticos do que pensam ser. A gente tem essa péssima mania de achar que somos bem menos do que somos realmente. Não se rendam a isso não.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Brasileirinho | Hamilton de Holanda & Mestrinho

Nosso tempo / II

Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
a pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

Carlos Drummond de Andrade

Apoie políticas educacionais afirmativas

Por causa do racismo estrutural, a população negra tem menos condições de acesso a uma educação de qualidade. Geralmente, quem passa em vestibulares concorridos para os principais cursos nas melhores universidades públicas são pessoas que estudaram em escolas particulares de elite, falam outros idiomas e fizeram intercâmbio. E é justamente o racismo estrutural que facilita o acesso desse grupo.
Esse debate não é sobre capacidade, mas sobre oportunidades — e essa é a distinção que os defensores da meritocracia parecem não fazer. Um garoto que precisa vender pastel para ajudar na renda da família e outro que passa as tarde em aulas de idiomas e de natação não partem do mesmo ponto. Não são muitos os que podem se dar o luxo de cursar uma graduação sem trabalhar ou ganhando apenas uma bolsa de estagiário. Eu mesma entrei na Universidade Federal de São Paulo, cujo campus de ciências humanas foi criado em 2007 graças a políticas públicas, aos 27 anos e com uma filha pequena, tendo que fazer malabarismos para conseguir estudar.
Embora as desigualdades nas oportunidades para negros e brancos ainda sejam enormes, políticas públicas mostraram que têm potencial transformador na área. O caso das cotas raciais é notável. Na época em que o debate sobre ações afirmativas estava acalorado, um dos principais argumentos contrários à implementação de cotas raciais nas universidades era “as pessoas negras vão roubar a minha vaga”. Por trás dessa frase está o fato de que pessoas brancas, por causa de seu privilégio histórico, viam as vagas em universidades públicas como suas por direito.
A primeira universidade a adotar as cotas raciais no vestibular foi a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em 2003, seguida pela Universidade de Brasília (UnB), em 2004. As novas políticas públicas universitárias transformaram o perfil dos alunos ingressantes: ao contrário do que muita gente afirmava quando essas políticas começaram a ser implementadas, o desempenho positivo de alunos cotistas trouxe grandes avanços para o saber do país.
Pesquisas sobre os resultados dessas políticas logo começaram a surgir, como a do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2008, na qual se demonstrou que os alunos cotistas de quatro universidades federais tinham desempenho similar ou superior ao dos alunos não cotistas; e a da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, realizada em parceria com universidades estaduais, a qual constatou que no período entre 2003 e 2016 a evasão universitária entre cotistas (26%) foi menor se comparada com a de não cotistas (37%), além de apontar desempenho similar entre ambos. Sobre outras políticas de acesso à educação, destaca-se o estudo de Jacques Wainer, professor do Instituto da Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Tatiana Melguizo, professora associada da Universidade do Sul da Califórnia, que, com base na análise dos resultados de mais de 1 milhão de alunos que realizaram o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), entre 2012 e 2014, apontou que não havia diferença entre as notas de beneficiários do programa Prouni e as de outros estudantes. Diferente da política de cotas, o Prouni é um convênio realizado entre universidades privadas e o governo federal que permite às universidades abaterem impostos ao oferecer bolsas integrais ou de 50% para alunos e alunas do programa — seja por raça ou por renda —, desde que mantenham um desempenho exemplar.
Muitas vezes, casos de pessoas negras que enfrentam grandes dificuldades para obter um diploma ou passar em um concurso público são romantizados. Entretanto, ainda que seja bastante admirável que pessoas consigam superar grandes obstáculos, naturalizar essas violências e usá-las como exemplos que justifiquem estruturas desiguais é não só cruel, como também uma inversão de valores. Não deveria ser normal que, para conquistar um diploma, uma pessoa precise caminhar quinze quilômetros para chegar à escola, estude com material didático achado no lixo ou que tenha que abrir mão de almoçar para pagar um transporte.
A cultura do mérito, aliada a uma política que desvaloriza a educação pública, é capaz de produzir catástrofes. Hoje, em vez de combater a violência estrutural na academia, a orientação de muitos chefes do Executivo brasileiro é uniformizar as desigualdades, cortando políticas públicas universitárias, como bolsas de estudo e cotas raciais e sociais.
Informe-se sobre as políticas públicas de combate à desigualdade racial e pela promoção da diversidade. Apoie e prestigie institutos de pesquisa e de desenvolvimento de políticas. Apoie candidatos que defendem políticas públicas efetivas e transformadoras.
A lei de cotas para universidades federais, promulgada em 2012, representou uma grande vitória. Uma pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) com base em dados de 2018 mostrou que, nessas instituições, a maioria dos estudantes é negra (51,2%), 64,7% cursaram o ensino médio em escolas públicas e 70,2% vêm de famílias com renda mensal per capita de até um salário mínimo e meio. Infelizmente o mercado de trabalho ainda não reflete essa mudança.

Djamila Ribeiro, in Pequeno Manual Antirracista

A Art Nouveau de Klimt

 

Poppy Field (1907), de Gustav Klimt

O escolho de Montale

Falar de um poeta na primeira página de um jornal comporta um risco: é preciso fazer um discurso “público”, sublinhar a visão do mundo e da história, o ensinamento moral implícito em sua poesia; tudo aquilo que se diz é verdadeiro, mas depois nos damos conta de que poderia ser igualmente verdade para um outro poeta, que o acento inconfundível daqueles versos permanece fora do discurso. Tratemos portanto de manter-nos o mais próximo possível da essência da poesia de Montale ao explicar como hoje as exéquias desse poeta tão pouco inclinado a qualquer oficialidade, tão distante da imagem do “vate nacional” sejam um acontecimento em que o país inteiro se reconhece. (Fato tão mais singular dado que as grandes fés proclamadas pela Itália de seu tempo jamais o incluíram entre seus adeptos, ou melhor, ele não economizou o próprio sarcasmo contra todo “clérigo vermelho ou negro”.)
Gostaria de dizer em primeiro lugar: os versos de Montale são inconfundíveis pela precisão e impossibilidade de substituir a expressão verbal, o ritmo, a imagem evocada; “il lampo che candisce/ alberi e muri e li sorprende in quella/ eternità d’istante” [o relâmpago que cristaliza/ árvores e paredes e os surpreende naquela/ eternidade do instante]. Não falo da riqueza e versatilidade dos meios verbais, dote que também outros poetas nossos tiveram em grau elevadíssimo, e que se assemelha muitas vezes a uma veia copiosa e redundante, isto é, a tudo o que está mais longe de Montale. Montale não desperdiça nunca os golpes, joga a expressão insubstituível no momento justo e a isola em sua unicidade. “Turbati/ discendevamo tra i vepri./ Nei miei paesi a quell’ora/ cominciano a fischiare le lepri” [Perturbados/ descíamos entre os espinheiros./ Na minha terra àquela hora/ começam a assoviar as lebres].
Vou direto ao que interessa: numa época de palavras genéricas e abstratas, palavras boas para todos os usos, palavras que servem para não pensar e não dizer, uma peste da linguagem que transborda do público para o privado, Montale foi o poeta da exatidão, da escolha lexical motivada; da segurança terminológica visando capturar a unicidade da experiência. “S’accesi su pomi cotogni,/ un punto, una cocciniglia,/ si udì inalberarsi alla striglia/ il poney, e poi vinse il sogno” [Acendeu-se sobre marmelos,/ um ponto, uma joaninha,/ ouviu-se empinar contra a almofaça/ o pônei, e depois venceu o sonho].
Mas essa precisão para nos dizer o quê? Montale nos fala de um mundo turbilhonante, movido por um vento de destruição, sem um terreno sólido onde apoiar os pés, com o único recurso de uma moral individual suspensa à beira do abismo. É o mundo da Primeira e da Segunda Guerra Mundial; talvez também da Terceira. Ou quem sabe a Primeira ainda permaneça fora do quadro (na cinemateca de nossa memória histórica, sobre os fotogramas já meio desbotados da Primeira Guerra Mundial movem-se como subtítulos os versos descarnados de Ungaretti) e é a precariedade do mundo que se apresenta aos olhares dos jovens no primeiro pós-guerra que serve de fundo para os Ossi di seppia [Ossos de sépia], como será a espera de uma nova catástrofe o clima das Occasioni [Ocasiões], e a sua realização e as suas cinzas o tema da Bufera [A tempestade]. La bufera é o livro mais bonito que saiu da Segunda Guerra Mundial e, mesmo quando fala de outra coisa, é daquilo que fala. Tudo já está ali implícito, inclusive nossas ansiedades posteriores, até as de hoje: a catástrofe atômica (“e un ombroso Lucifero scenderà su una proda/ del Tamigi, del Hudsoh, della Senna/ scuotendo l’ali di bitume simi-mozze dalla fatica, a dirti: è l’ora” [e um sombrio Lúcifer descerá/ do Tâmisa, do Hudson, do Sena/ sacudindo asas de betume semidecepadas pela fadiga, para dizer-nos: é a hora]) e o horror dos campos de concentração passados e futuros (“Il sogno del prigioniero”).
Mas não são as representações diretas e as alegorias declaradas o que pretendo colocar em primeiro plano: essa nossa condição histórica é vista enquanto condição cósmica; também as menores presenças da natureza na observação cotidiana do poeta se configuram como vórtices. São o ritmo do verso, a prosódia, a sintaxe que levam em si esse movimento, do princípio ao fim de seus três grandes livros. “I turbini sollevano la polvere/ sui tetti, a mulinelli, e sugli spiazzi/ deserti, ove i cavalli incappucciati/ annusano la terra, fermi innanzi/ ai vetri luccicanti degli alberghi” [Os pés de vento levantam a poeira/ sobre os tetos, em redemoinhos e nas clareiras/ desertos, onde os cavalos encapuzados/ cheiram a terra parados em frente/ dos vidros rebrilhantes dos hotéis].
Falei de moral individual para resistir ao fim do mundo histórico ou cósmico que pode cancelar de um momento para outro a lábil pegada do gênero humano; mas é preciso dizer que em Montale, mesmo distante de qualquer comunhão sincera e de qualquer impulso de solidariedade, está sempre presente a interdependência de cada pessoa com a vida dos outros. “Occorrono troppe vite per farne una” [São necessárias muitas vidas para fazer uma outra] é a conclusão memorável de uma poesia das Occasioni, em que a sombra do milhafre a voar dá o sentido do destruir-se e refazer-se que conforma toda continuidade biológica e histórica. Mas a ajuda que pode vir da natureza ou dos homens não consiste numa ilusão unicamente quando um riacho muito fino que aflora “dove solo/ morde l’arsura e la desolazione” [onde só/ morde a aridez e a desolação]; somente remontando os rios até que se tornem delicados como cabelos é que a enguia encontra o lugar seguro para procriar; é só “num fio de piedade” que podem matar a sede os porcos-espinhos do monte Amiata.
Esse difícil heroísmo escavado na interioridade, na aridez e na precariedade do existir, esse heroísmo de anti-heróis é a resposta que Montale deu ao problema da poesia de sua geração: como escrever versos depois (e contra) D’Annunzio (e depois de Carducci, e depois de Pascoli ou pelo menos de uma certa imagem de Pascoli), o problema que Ungaretti resolveu com a fulguração da palavra pura e Saba com a recuperação de uma sinceridade interior que compreendia também o pathos, o afeto, a sensualidade: aquelas características do humano que o homem montaliano recusava ou considerava indizíveis.
Não existe mensagem de consolação ou de encorajamento em Montale caso não se aceite a consciência do universo hostil e avaro: é nessa rota árdua que o discurso dele continua o de Leopardi, embora suas vozes ressoem bastante diversas. Assim como, confrontado com o de Leopardi, o ateísmo de Montale é mais problemático, atravessado por tentações contínuas de um sobrenatural logo corroído pelo ceticismo de fundo. Se Leopardi dissolve as consolações da filosofia das Luzes, as propostas de consolação que são oferecidas a Montale são aquelas dos irracionalismos contemporâneos que ele pouco a pouco avalia e deixa cair com uma sacudida de ombros, reduzindo sempre a superfície da rocha sobre a qual se apoiam seus pés, o escolho ao qual se agarra a sua obstinação de náufrago.
Um de seus temas, que com os anos se torna cada vez mais frequente, é o modo com que os mortos estão presentes em nós, a unicidade de cada pessoa que não nos conformamos em perder: “il gesto d’una/ vita che non è un’altra ma se stessa” [o gesto de uma/ vida que não é uma outra mas ela mesma]. São versos de uma poesia em memória da mãe, onde voltam os pássaros, uma paisagem em declive, os mortos: o repertório das imagens positivas de sua poesia. Não poderíamos dar agora à sua lembrança melhor moldura que esta: “Ora che il coro delle corturnici/ ti blandisce nel sonno eterno, rotta/ felice schiera in fuga verso i clivi/ vendemmiati del Mesco…” [Ora que o coro das codornizes/ te acaricia no sono eterno, roto/ feliz bando em fuga rumo às encostas/ vindimadas do Mesco…].
E continuar a ler “dentro” de seus livros. Certamente isso lhe garantirá a sobrevivência, pois quanto mais lidos e relidos, seus poemas capturam ao abrir da página e não se exaurem jamais.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

O sueco

Os problemas do Brasil, as mesquinharias de nossa vida pública, a miséria fundamental de nosso povo, todas essas coisas de repente cansam e desanimam uma pessoa sensível. Evandro Pequeno encontrou uma solução: “Eu sou um sueco em trânsito.”
Não saber de nada, não entender uma palavra do que estão dizendo e escrevendo por aí, não ter nada a ver com nada, não se sentir responsável por nada (muito menos pela famosa dívida externa), não ter vergonha de nada: ser um sueco em trânsito.
E, se possível, como Evandro fazia, tocar fagote.

Rubem Braga, in Recado de primavera

quarta-feira, 28 de julho de 2021

João Fênix / Todo Homem

Lavoura Arcaica / 21

Prosternado à porta da capela, meu dorso curvo, o rosto colado na terra, minha nuca debaixo de um céu escuro, pela primeira vez eu me senti sozinho neste mundo; ah! Pedro, meu querido irmão, não importa em que edifício das idades, em alturas só alcançadas pelas setas de insetos raros, compondo cruzes em torno dessa torre, existe sempre marcado no cimo, pelo olho perscrutador de uma coruja paciente, a noite de concavidades que me espera; neste edifício erguido sobre colunas atmosféricas escorridas de resinas esquisitas, existe sempre nas janelas mais altas a suspensão de um gesto fúnebre; e existe a última janela de abertura debruçada para brumas rarefeitas e espectros incolores, ali onde instalo meus filamentos e minhas antenas, meus radares e minhas dores, captando o espaço e o tempo na sua visão mais calma, mais tranquila, mais inteira; eu nunca duvidei que existisse, com a mesma curvatura que rola, a mesma gravidade que cai, a mesma precária arquitetura, um translúcido hálito azul, a bolha derradeira, presente em cada folha amanhecida, em cada pena antes do voo, denso e pendente como orvalho; mas em vez de galgar os degraus daquela torre, eu poderia simplesmente abandonar a casa, e partir, deixando as terras da fazenda para trás; eram também coisas do direito divino, coisas santas, os muros e as portas da cidade.

Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

Não ao sistema!

 

Etiqueta da floresta

As árvores da floresta seguem um manual de etiqueta tácito, que dita sua aparência e o que devem fazer. Na idade adulta, um exemplar frondoso e disciplinado deve ter tronco ereto, com fibras internas de madeira completamente uniformes. As raízes se estendem de forma simétrica em todas as direções e se aprofundam na terra. Os galhos laterais, finos na juventude, já morreram e foram cobertos por casca fresca e madeira nova, apresentando assim um tronco longo e homogêneo. Apenas na extremidade superior é que se forma uma copa uniforme de galhos fortes que apontam para o céu como braços estendidos na diagonal. Uma árvore ideal como essa pode viver bastante. No caso das coníferas, as regras são semelhantes – a diferença é que os galhos da copa podem ser perpendiculares ou levemente curvados para baixo.
Mas para que tudo isso? As árvores se importam com a beleza? Não sei, mas existe um bom motivo para buscarem a aparência ideal: estabilidade. As grandes copas das árvores adultas ficam expostas a ventanias, tempestades e nevascas. A árvore precisa amortecer o impacto dessas forças e conduzi-las através do tronco até as raízes, que devem conter a maior parte da energia para impedir que a árvore tombe. Para isso, a raiz se agarra ao solo e às pedras. A violenta energia redirecionada de um vendaval pode atingir a base do tronco com uma força equivalente a 200 toneladas.11 Se a árvore tiver algum ponto fraco, ele pode se transformar em uma fissura e, em casos mais graves, quebrar o tronco. As árvores estáveis atenuam esse impacto de maneira uniforme, dissipando-o e distribuindo-o por sua estrutura.
No entanto, quem não segue o manual de etiqueta tem dificuldades. Se o tronco estiver curvado, por exemplo, terá problemas durante a hibernação. O enorme peso da copa não será bem distribuído pelo diâmetro do tronco e acabará pressionando apenas um lado da madeira. Para que o tronco não dobre, a árvore terá que fortalecer esse lado. Quando precisar se valer desse mecanismo, surgirão anéis especialmente escuros no tronco (nos pontos onde armazena menos ar e mais substâncias).
A situação das árvores de tronco bifurcado, ou em forquilha, é ainda pior. Nesses casos, o tronco se divide em determinado ponto, e a partir daí as duas partes crescem lado a lado. Quando bate um vento forte, as partes, cada uma com sua copa, balançam e forçam o ponto de bifurcação. Se ele tiver a forma de U, normalmente não há problema, e nada acontece, mas se a forquilha for em forma de V podem surgir complicações, pois o ponto de convergência será muito pontudo, e não dará uma base de sustentação larga o suficiente para que a árvore suporte a força do vento. Ela acaba se partindo onde o tronco se divide.
Isso pode causar dificuldades para a árvore. Depois da quebra ela cria uma protuberância na região afetada para que não haja outro rompimento quando voltar a crescer. No entanto, em geral essa tática é inútil, e o ponto de quebra passará a vazar continuamente um líquido que ganha uma coloração preta por causa das bactérias. Para piorar, a água começa a penetrar a fissura e provoca apodrecimento. Por isso, no caso de muitas forquilhas, quando a árvore se parte ao meio a metade mais estável permanece em pé. Essa meia árvore sobrevive no máximo algumas décadas. A ferida imensa e aberta não tem mais cura, e lentamente os fungos começam a devorá-la de dentro para fora.
Muitas árvores têm o tronco curvado como uma banana. Sua base cresce inclinada, e só mais tarde começam a crescer verticalmente. Elas ignoram o manual de etiqueta, e com frequência é possível encontrar partes inteiras de uma floresta com tronco curvado. Será que, nesse caso, as leis da natureza estão sendo ignoradas? Não. Muito pelo contrário: é o entorno que as obriga a crescer dessa forma.
Isso acontece, por exemplo, nas partes elevadas de montanhas pouco antes dos limites da floresta. Em certos lugares com inverno rigoroso, a neve costuma atingir alguns metros de altura, e sempre há deslizamentos. E não precisam ser avalanches: mesmo em repouso a neve se desloca lentamente vale abaixo, em um movimento imperceptível aos nossos olhos. Com isso, acaba curvando as árvores, ao menos as mais jovens. No caso das menores, isso não é uma tragédia, pois elas voltam a se aprumar depois do derretimento da neve e não sofrem ferimento algum. No entanto, nas de crescimento médio, com alguns metros de altura, o tronco é danificado ou, no pior dos casos, fica retorcido ou até se quebra. A partir de então tentam crescer verticalmente, mas, como crescem a partir da ponta superior, a base permanece na mesma posição. No inverno seguinte, a árvore é entortada outra vez pela neve, mas quando cresce é em linha reta.
Se isso se repetir por muitos anos, aos poucos a árvore é moldada e ganha o formato de um sabre. Só com o passar do tempo o tronco engrossa o bastante e fica tão estável que a neve não consegue mais danificá-lo. Com isso, a parte torta inferior permanece curva, enquanto a superior fica reta como nas árvores normais.
Em encostas, a árvore também pode crescer dessa forma mesmo sem a pressão da neve. Nesse caso, talvez a causa seja o solo, que ao longo dos anos desliza de maneira extremamente lenta para o fundo do vale. Quase sempre o terreno desce apenas poucos centímetros por ano. Com isso, as árvores deslizam e se inclinam enquanto continuam crescendo para cima.
É possível observar a versão extrema desse fenômeno no Alasca e na Sibéria, lugares onde a camada de solo permanentemente congelado começa a derreter por causa da mudança climática. As árvores perdem o apoio e se desequilibram no solo enlameado. Cada espécime se inclina em uma direção, e a floresta lembra um bando de bêbados cambaleantes.
Nos limites da floresta, a regra que dita o crescimento reto dos troncos perde força. Ao contrário do que acontece no centro da floresta, a luz também incide de lado, atravessando qualquer local sem árvore, como uma pradaria ou um lago. Dessa forma, árvores menores podem sair de baixo das grandes e crescer na direção do terreno aberto. As frondosas podem curvar seu tronco e deslocar sua copa em até 10 metros, inclinando o broto principal de maneira quase horizontal. Claro que, com esse movimento, a árvore corre o risco de quebrar numa nevasca. No entanto é melhor uma vida curta mas com luz suficiente para a reprodução do que não viver.
Enquanto a maioria das árvores frondosas aproveita a oportunidade, grande parte das coníferas é teimosa: só cresce diretamente para cima e em linha reta, contra a gravidade, formando um tronco perfeito e estável. Somente os galhos laterais às margens da floresta podem ficar mais grossos e longos com a incidência da luz. O pinheiro é a única conífera que desloca a copa. Não surpreende que, entre esse grupo de espécies, seja a que apresenta a maior taxa de rompimento sob o peso da neve.

Peter Wohllben, in A vida secreta das árvores: O que elas sentem e como se comunicam

O convidado agradece

Há dias, em certo jantar naquela cobertura da Zona Sul, um convidado pediu a palavra, e tal foi a surpresa que ninguém se mexeu para recusá-la. É de lembrar que há muito na Zona Sul desapareceu o hábito de usar da palavra à maneira clássica: um falando e os demais reduzidos ao silêncio, ouvindo. Há talvez meio século que se instituiu a conversa generalizada, isto é, todos falando ao mesmo tempo, com a voz ou com o garfo, pois comer é também maneira eficiente de comunicar-se: o apetite chama o apetite, e os apetites porfiam no diálogo manducativo. Esta segunda técnica de comunicação é, mesmo, a preferida.
Não se lhe tendo recusado a palavra, ela também não lhe foi concedida, pois o espanto dominava as fisionomias e os talheres. À falta de sim ou não, peremptório, o homem tomou a palavra resolutamente, e disse que ia agradecer. Agradecer o quê? perguntou a si mesmo. E a si mesmo respondeu, como o saudoso ministro Ataulfo de Paiva: tudo. E prosseguiu:
Tudo é para agradecer, a começar pelo fato de estarmos aqui reunidos, degustando o excelentíssimo arroz com castanha-de-caju, digno da mesa dos deuses, como outro igual ainda não comi, e creio que todos os presentes jurarão o mesmo. Gozar da amizade de Baby e Lulu Fontamaro é uma felicidade para o coração e para o paladar.
Mas, se estamos aqui reunidos, papando o bom arroz do casal, obviamente é porque emplacamos mais este setenta e um, e se emplacamos, é forçoso agradecer o emplacamento. Já imaginaram se todos nós houvéssemos tomado a barca de Caronte antes desta noite amena sob as estrelas, pois até estrelas Lulu e Baby providenciaram neste dezembro de chuva? Que desolação reinaria nesta casa, que abandono, que gélidas imagens de finitude — mas nem quero insistir, rendo graças à vida e à sua conservação, à maravilhosa circunstância de termos vencido todos os elementos que conspiravam contra a nossa permanência em nossos respectivos domicílios, gabinetes, escritórios, empregos e mesmo desempregos, pois há quem viva disto, e viva bem.
Agradecer à vida é agradecer inclusive os seus males, porque nos pouparam ou só de leve nos atingiram com sua farpa. Nossas gripes não se entenebreceram em pneumonias duplas; nossos embaraços gástricos e/ou financeiros não nos derrubaram. Passo os olhos em torno desta mesa florida (que soberbo arranjo de flores você conseguiu com sua criatividade, Baby!) e não vejo nenhum aleijado. Se alguém aqui usa perna mecânica, eu o felicito, pois absolutamente não se percebe, e noto nos convivas uma aérea leveza de Nureyev. Graças! graças sejam dadas à vida, em sua plenitude às vezes contraditória, mas, no fundo, dialética, perfazendo a síntese expressa nesta gratíssima reunião!
Agradeço ao charuto do nosso amigo Nivaldo, que, ao acendê-lo antes de terminado o jantar, e soprando baforadas junto às faces pulcras de Jeanete Taborda, nem por isto eleva o índice de poluição ambiente na Guanabara, pois como este índice já chegou ao máximo, pretensão inútil seria tentar aumentá-lo. Eis uma demonstração objetiva que devemos ao Nivaldo (obrigado, companheiro), ao mesmo tempo em que cabe agradecimento especial ao referido índice de poluição, de vez que ele comprovou a fortaleza de nossos organismos, resistentes a tudo. Enfrentaremos sorridentes os futuros flagelos sociais que se desencadearem sobre nossas cabeças, uma vez que o homem provou ser sempre superior a qualquer flagelo na história, sem embargo das baixas sofridas na sempiterna peleja.
Agradeço à língua portuguesa por me haver obsequiado com esta palavra sempiterna, que suponho pronunciada pela primeira vez na Zona Sul, onde se diz que tudo é passageiro, as situações não duram mais que uma estação de praia ou um drink no Country, e amanhã já é ontem. Agradeço às guerras não declaradas, ou declaradíssimas, no Vietnã, no Camboja, no Oriente Médio, no Paquistão Oriental, por absurdo que pareça meu ponto de vista: elas estimulam o estudo da geografia através de notações concretas, dão matéria a correspondentes, fotógrafos e comentaristas internacionais, e assegurando a continuidade dos debates acadêmicos na ONU, garantem trabalho infindável às delegações. Eu quisera estar lá (na ONU, não na guerra) em pessoa, mas, como nem sempre as aspirações elevadas são factíveis, dar-me-ei por satisfeito (e agradecerei) se o governo se lembrar de meu filho Joanito para assessor de qualquer coisa naquela Assembleia. Ele é habilitado.
Em suma, agradeço. De coração. A tudo. Seria impossível minudenciar as gratidões, pois chegamos à sobremesa, e quero agradecer desde logo esta espetacular musse de manga gelada, nunca outra igual saboreamos antes, ou não é de manga? ah, é de pêssego, pois eu afirmo do mesmo modo que…
Aí faltou luz, e o homem acrescentou:
Agradeço à Light: ela não falha nunca nestas horas.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

Apelo à hipocrisia


Também conhecida por seu nome em latim, tu quoque (você também), esta falácia ocorre quando se aponta uma suposta contradição entre o argumento da pessoa e suas ações ou afirmações anteriores (Engel). Portanto, ao rebater uma acusação com outra acusação, o objetivo é desviar a atenção do mérito do argumento e colocá-la na pessoa que expressou aquela ideia. Essa característica torna o apelo à hipocrisia um tipo de ataque ad hominem. E, claro, mesmo que haja inconsistência da pessoa, o argumento dela ainda pode ser correto.
Num episódio do programa Have I Got News for You, da TV britânica BBC – que, de forma bem-humorada, faz perguntas sobre notícias a celebridades –, um dos convidados criticou um protesto em Londres contra a ganância dos empresários por conta da aparente hipocrisia dos manifestantes, usando o surrado argumento de que eles não podiam ser contra o capitalismo enquanto usavam smartphones e tomavam café latte.
Outro exemplo vem do filme Obrigado por fumar, de Jason Reitman, onde um diálogo com várias falácias tu quoque é concluído da seguinte maneira por um carismático e inescrupuloso lobista da indústria do fumo, Nick Taylor: “Só acho engraçado o senador de Vermont me chamar de hipócrita, quando ele, num mesmo dia, deu uma coletiva de imprensa defendendo a queima de todas as plantações de tabaco no país, para depois pegar um jatinho particular e ir até o festival de rock Farm Aid, onde dirigiu um trator no palco e lamentou o declínio do agricultor americano.”

Ali Almossawi, in O livro ilustrado dos maus argumentos

Aprendendo com as crianças

Com frequência, levando meus filhos para a escola, tenho que desligar o rádio. Só se fala em morte: terroristas suicidas no Afeganistão, violência nas ruas do Brasil e do mundo, na faixa de Gaza, controle de armas para evitar mais ataques em escolas (nos EUA), corrupção política, o vício e a ganância do homem ocupando o centro do palco. Certa vez, meu filho Lucian, sentado no banco de trás, disse, horrorizado: “Ei pai, e você fica dizendo que videogame é que é violento!” Foi quando desliguei o rádio. Vivemos numa sociedade que tem uma atração patológica pela morte. Aparentemente, boa notícia ou não vende ou não é interessante.
Talvez, no sofrimento dos outros, encontremos – de forma mesquinha – um alívio para o nosso. Contraste isso com uma experiência que tive alguns anos atrás, quando viajei pelo país durante a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia. Mais de oitocentas cidades por todo o Brasil produziram algum tipo de evento sobre ciência com o objetivo de atrair o interesse das crianças e dos jovens aos estandes de exibição e atividades. Isso se repete todos os anos. Naquele ano (2013), Brasília foi o centro das atividades, focadas nos esportes e na melhora da qualidade de vida. Ou seja, um foco na vida, através da ciência.
Todos os dias, milhares de crianças visitaram o centro de exposições, trazidas pelas suas escolas. As mais novinhas, do jardim de infância, andavam em fila de mãos dadas para não se perder nas multidões. De olhos arregalados, devoravam tudo o que viam, absorvendo o máximo de informação que podiam. Tenho certeza de que muitas delas, a maioria de áreas carentes, não se esquecerão desse dia especial, tão diferente dos outros. Pelo menos por um dia, a ciência se transformou num portal mágico, capaz de transportá-las para um mundo cheio de descobertas e fantasias.
O grande físico Isidor Rabi disse uma vez que os cientistas são os Peter Pan da sociedade, os que nunca param de fazer as perguntas que as crianças fazem o tempo todo, o “Por que isso? Por que aquilo?” que costuma irritar os pais que, em geral, não sabem a resposta e têm preguiça de procurá-la. (O que, aliás, é uma grande oportunidade perdida, pois nada melhor do que a família aprender junto algo novo.)
Para uma criança, o mundo é um grande laboratório, cheio de experiências a realizar, explorando como os objetos interagem entre si, como os animais vivem e comem, como as plantas crescem e morrem. Toda criança nasce cientista, testando hipóteses e experimentando para aprender. Deixar algo cair no chão para ver se quebra, encher um copo com um monte de fluidos e comidas fazendo “poções mágicas”, pôr coisas no fogo para ver como queimam, misturar tintas de cores diferentes, fazer aviões de papel para ver os que voam melhor, colecionar insetos, tudo isso faz parte da exploração científica do mundo.
A Natureza se abre como um livro quando a curiosidade pode voar livremente. Até, claro, os adultos chegarem. “Não mexe nisso! Cuidado, vai quebrar! Você vai se queimar! Vai se molhar! Vai levar choque! Vai ser picado!” Sendo pai de cinco, entendo bem que temos que ensinar para as crianças a diferença entre explorar brincando e se machucar brincando de explorar. Mas existe uma diferença enorme entre educar uma criança a ter cuidado, e reprimir seus instintos de exploração, sua relação lúdica com o mundo. Nas escolas e em casa, forçamos as crianças a se conformarem a moldes rígidos de comportamento, a serem todas iguais, suprimindo comportamentos e atitudes vistas como “provocadoras”, reprimindo perguntas que achamos “chatas”, insistentes ou, pior ainda, “bobas”.
Até manifestações de carinho são, ocasionalmente, vistas com suspeita: não invada o espaço do Chiquinho, fique na sua “bolha”. Queremos crianças afetuosas, mas dentro de nossos moldes ascéticos. (Isso costuma ser bem pior nos EUA do que no Brasil.) Temos muito o que aprender com as crianças. Se queremos motivá-las a se interessar por ciência, temos que deixá-las soltas, dando-lhes espaço para realizar seus experimentos, para explorar, enquanto crescem num mundo tantas vezes hostil. E, no processo, nós, os adultos, os pais, os professores, acabamos nos liberando também, inspirados pelas crianças, por sua energia e curiosidade, e nos lembramos de focar nossa atenção na vida e não na morte e na destruição, no senso de maravilhamento com o mundo e com as pessoas.
É óbvio que precisamos examinar o que ocorre na sociedade e na política, como entendemos bem no Brasil atual. Mas, para construir uma sociedade saudável, é necessário vivenciar os dois opostos. Inspirados pelas crianças, os grandes portais de mídia e informação deveriam fazer o seu grande experimento, e estudar o que ocorreria com a sociedade se o foco das notícias deixasse de ser exclusivamente a morte, o crime, a corrupção e a fofoca leviana e incluísse, também, o bem viver e os grandes feitos da criatividade humana nas artes, nos esportes, na ciência. Se a intenção dos noticiários ao nos informar dos horrores de que somos capazes é mudar nosso comportamento, podemos com segurança absoluta afirmar que esse experimento fracassou. É hora de tentarmos outro, que enalteça o espírito humano, e não o esmague continuamente.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Nasceu o amor | Hamilton de Holanda Quarteto

O espreguiçoso

O que do tempo desfolha,
em vagar de tumba,
na palma da sua mão tomba.

Deitado no mundo,
nem olha as nuvens:
a pressa dos céus
cansa-lhe a retina.

Do sol não se arreda:
sombras são móveis,
nem vale mudar de assento.

E quando chove
nem se desvia:
gotas nunca são tantas, por si mesmas se enxugam.

Sendo noite,
dispensa sonho:
acordar é mais árduo em sonhadora noite.

À amada confessa: príncipe, me dizes.
Eu me prefiro sapo sem beijo
e, no charco baldio,
quedar-me ensopado e vadio.

Namorar pede pulsação.
Eu quero o sono de quem dorme.
Dormir talvez seja demais.

Dormir sem verbo:
ser dormido.

Mia Couto

São Paulo

De São Paulo recebi uma carta de Fernanda Montenegro. Telefonei-lhe pedindo licença para publicá-la. Foi dada:

Clarice

É com emoção que lhe escrevo pois tudo o que você propõe tem sempre essa explosão dolorosa. É uma angústia terrivelmente feminina, dolorosa, abafada, educada, desesperada e guardada.
Ao ler meu nome, escrito por você, recebi um choque não por vaidade mas por comunhão. Ando muito deprimida, o que não é comum. Atualmente em São Paulo se representa de arma no bolso. Polícia nas portas dos teatros. Telefonemas ameaçam o terror para cada um de nós em nossas casas de gente de teatro. É o nosso mundo.
E o nosso mundo, Clarice?
Não este, pelas circunstâncias obrigatoriamente político, polêmico, contundente. Mas aquele mundo de que nos fala Tchekhov: onde repousaremos, onde nos descontrairemos? Ai, Clarice, a nossa geração não o verá. Quando eu tinha quinze anos pensava alucinadamente que minha geração desfaria o nó. Nossa geração falhou, numa melancolia de ‘canção sem palavra’, tão comum no século XIX. O amor no século XXI é a justiça social. E Cristo que nos entenda.
Estamos aprendendo a lição seguinte: amor é ter. Na miséria não está a salvação.
Quem não tem, não dá. Quem tem fome não tem dignidade (Brecht). Clarice, estou pedindo desculpas por este palavrório todo. Mas deixe que eu mantenha com você esta sintonia dolorosa dos que percebem alguns mundos, não apenas este ou aquele, porém até mesmo aquele outro, embora linearmente – como é o caso.
Nossa geração sofre da frustração do repouso. É isso, Clarice? A luta que fizermos, não o faremos pra nós. E temos uma pena enorme de nós por isso. É assim que explico pra mim estas frases que você põe no seu artigo: ‘Eu que dei pra mentir. E com isso estou dizendo uma verdade. Mas mentir já não era sem tempo. Engano a quem devo enganar, e, como sei que estou enganando, digo por dentro verdades duras.’ A luta, a que me refiro lá no alto, seria aquela luta bíblica, a grande luta, a que engloba tudo.
Voltando às ‘verdades duras’ de que você fala: na minha profissão o enganar é a minha verdade. É isso mesmo, Clarice, como profissão. Mas na minha intimidade toda particular, sinto, sem enganos, que nossa geração está começando a comungar com a barata. A nossa barata (Fernanda se refere a um livro meu). Nós sabemos o que significa esta comunhão, Clarice. Juro que não vou afastá-la de mim, a barata. Eu o farei. Preciso já organicamente fazê-lo. Dê-me a calma e a luz de um momento de repouso interior, só um momento.
Com intensa comoção.
Fernanda”

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Hagar, o Horrível