domingo, 30 de junho de 2019

Nando Reis - A Guerra dos Meninos, participação de Jorge Mautner

O elogio da amizade

Voltamos ao jardim público para examinar as duplas de moças sentadas nos bancos, mas, quando uma era bonita, o que acontecia algumas vezes, a vizinha não era.
É uma estranha lei da natureza — disse eu a Martin. — As mulheres feias esperam se aproveitar do brilho de suas amigas mais bonitas, e estas esperam brilhar com maior intensidade em contraste com a feiura; para nós isso significa que nossa amizade é submetida a constantes provas. E fico muito orgulhoso por nunca deixarmos a sorte ou o espírito de competição decidir por nós. Entre nós a escolha é sempre uma questão de cortesia. Cada um oferece ao outro a moça mais bonita, e nisso parecemos dois senhores antiquados que não conseguem entrar numa sala, por não poderem admitir que um passe na frente do outro.
É — respondeu Martin comovido e enternecido. — Você é um amigo de verdade. Vamos sentar um pouco. Estou com dor nas pernas.
E fomos nos sentar, o corpo gostosamente inclinado para trás, com o sol batendo bem na cara, deixando, por alguns minutos, sem preocupação, o mundo seguir seu curso ao nosso redor.
Milan Kundera, in Risíveis Amores

O traço sarcástico do iraniano Mana Neyestani


Amanhã

Amanhã, ilusão doce e fagueira,
Linda rosa molhada pelo orvalho:
Amanhã, findarei o meu trabalho,
Amanhã, muito cedo, irei à feira.

Desta forma, na vida passageira,
Como aquele que vive do baralho,

Um espera a melhora no agasalho
E outro, a cura feliz de uma cegueira.

Com o belo amanhã que ilude a gente,
Cada qual anda alegre e sorridente,
Como quem vai atrás de um talismã.

Com o peito repleto de esperança,
Porém, nunca nós temos a lembrança

De que a morte também chega amanhã.
Patativa do Assaré

Capítulo 112 - A opinião

Mas estava escrito que esse dia devia ser o dos lances dúbios. Poucas horas depois, encontrava-me eu com o Lobo Neves, na rua do Ouvidor; e falamos da presidência e da política. Ele aproveitou o primeiro conhecido que nos passou à ilharga, e deixou-me, depois de muitos cumprimentos. Lembra-me que estava retraído, mas de um retraimento que forcejava por dissimular. Pareceu-me então (e peço perdão à critica, se este meu juízo for temerário!) pareceu-me que ele tinha medo - não medo de mim, nem de si, nem do código, nem da consciência; tinha medo da opinião. Supus que esse tribunal anônimo e invisível, em que cada membro acusa e julga, era o limite posto à vontade do Lobo Neves. Talvez que ele já não amasse a mulher; e, assim, pode ser que o coração fosse estranho à indulgência dos seus últimos atos. Cuido (e de novo insto pela boa vontade da crítica!) cuido que ele estaria pronto a separar-se da mulher, como o leitor se terá separado de muitas relações pessoais; mas a opinião, essa opinião que lhe arrastaria a vida por todas as ruas, que abriria minucioso inquérito acerca do caso, que coligiria uma a uma todas as circunstâncias, antecedências, induções, provas, que as relataria na palestra das chácaras desocupadas, essa terrível opinião, tão curiosa das alcovas, obstou à dispersão da família. Ao mesmo tempo tornou impossível o desforço que seria a divulgação. Ele não podia mostrar-se ressentido comigo, sem igualmente buscar a separação conjugal; e teve então de simular a mesma ignorância de outrora, e, por dedução, iguais sentimentos.
Que lhe custasse creio; naqueles dias, principalmente, vi-o de modo que devia custar-lhe muito. Mas o tempo (e é outro ponto em que eu espero a indulgência dos homens pensadores!), o tempo caleja a sensibilidade, e oblitera a memória das coisas; era de supor que os anos lhe despontassem os espinhos, que a distância dos fatos apagasse os respectivos contornos, que uma sombra de dúvida retrospectiva cobrisse a nudez da realidade; enfim, que a opinião se ocupasse um pouco com outras aventuras. O filho, crescendo, buscaria satisfazer as ambições do pai; seria o herdeiro de todos os seus afetos.
Isso, e a atividade externa, e o prestígio público, e a velhice depois, a doença, o declínio, a morte, um responso, uma notícia biográfica, e estava fechado o livro da vida, sem nenhuma página de sangue.
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

Hagar, o Horrível


sábado, 29 de junho de 2019

O vento

O único da casa que enxerga o vento é o cachorro.
Detém-se à porta da cozinha, rosnando para o pátio ventado, cheio de latas inquietas e papéis decididamente malucos.
E nos seus olhos fixos e rancorosos vê-se o desvario do vento, a incurabilidade do vento, os seus cabelos em corrupio, os seus braços que parecem mil, os seus trapos flutuantes de espantalho, toda aquela agitação sem causa e que é ainda menos instável, no entretanto, que a terrível desordem da sua cabeça: pois o vento nunca pode assentar as ideias…
Mário Quintana, in Sapato florido

Da mentira e da verdade

Muito tempo há que a mentira se tem posto em pés de verdade, ficando a verdade sem pés e com dobradas forças a mentira; e é força que, sustentando-se em pés alheios, ande no mundo a mentira muito de cavalo; e se houve filósofo que com uma tocha numa mão buscava na luz do meio-dia um sábio, hoje, por mais que se multipliquem luzes às do Sol, não se descobrirá um afeto verdadeiro. Buscava-se então a ciência com uma vela, hoje pode-se buscar a verdade com a candeia na mão, que apenas se acha nos últimos paroxismos da vida.”
Padre Antônio Vieira, in As sete propriedades da alma

Sanguinho novo no vestido amarelo

Cedo, uma manhã, Leslie e Winifred vieram buscar Nando na camioneta que haviam alugado.
É indispensável — disse Leslie — que você venha visitar conosco o Engenho de Nossa Senhora do O. É uma coisa que você não conhece. Vocês, aliás, aí no mosteiro. Não sei como d. Anselmo pode despender tanta e tão boa energia desobstruindo túneis quando nos campos em torno nasce um mundo inteiro sem qualquer intervenção da Santa Madre Igreja.
A Igreja, em primeiro lugar, se empenha no seu parto permanente — disse Nando.
Era difícil conversar na camioneta em marcha. Os bárbaros, foi pensando Nando, pensam que fazem, fazem e pronto. As ideias em aventura pela história crescem lentas. Tranquilas batatas grelando na terra escura e fresca. Primeiro, maior nação latina. Segundo, maior nação católica. Terceiro, única nação que ainda possui inocentes recriados sine labe originale. Imperium Sine Fine aqui. Augusto-Montoya e Cristo. Batata.
Vamos conversar com os foreiros
disse Leslie ao chegarem. — Eu vou à casa da mocinha, a Maria do Egito — disse Winifred. — Vê se não sermoniza o Nando demais.
Leslie despediu Winifred com um gesto impaciente.
Venha comigo, Nando — disse ele. — O desamparo não é apenas social. É religioso também. Você não encontra um padre aqui, preocupado com essa gente. Os doentes em geral morrem sem extrema-unção. Ou morrem de sair da cama para irem em busca de padre que lhes dê a extrema-unção.
Mas o engenho tem sua capela — disse Nando apontando-a. — Há três anos sem padre — disse Leslie.
E sem nenhuma lei. Essa gente, a quem nem o Estado nem a Igreja jamais deram coisa alguma, está sendo trabalhada pela Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores, que é em grande parte obra de Januário. A Sociedade os arregimentou para apoiarem com um desfile a candidatura de um prefeito que promete socorrer os camponeses. Pois os camponeses desceram e foram dispersos aos trancos e coronhadas pela polícia. Voltaram para suas casas, meio tontos de medo e de pancada, mas a polícia insistiu na perseguição, veio mais tarde varejar as choupanas, prendendo os mais valentes, os mais dignos. Prendendo e de novo batendo. Os jornais deram três linhas ao caso.
Leslie acenou para um camponês.
Lázaro, venha cá.
Sim, seu Lelo — disse Lázaro.
Conta aqui ao padre Nando, lá do mosteiro, como é que te trataram na polícia.
Ah, eu guardei a cara do sargento que me cuspiu em cima. Aquele eu corto de peixeira um dia. Os que me bateram ainda vai. Mas foi por nada, seu padre. Eu sou homem temente a Deus e nunca tinha tido conhecimento de polícia. Mas o sargento me cuspiu. Feito eu fosse uma poça d’água na rua que a gente cospe assim de desafogo, pra ver se acerta. Eu corto ele, seu padre.
Você não deve lutar com as mesmas armas — disse Nando. — Lute pelos seus direitos mas perdoe quem lhe ofendeu pessoalmente.
Impaciente, vermelho, pronunciando os nomes de qualquer jeito Leslie demonstrava conhecimento íntimo da situação.
Conta aqui ao padre Nando, Nequinho — disse Leslie —, a história da desonra de tua filha pelo capataz.
Eu conto mas Jesus Cristo já me falou. Já me esclareceu para corrigir os malfeitos. Bença, padre.
Deus te abençoe — disse Nando. — Desgraçaram tua menina?
Quase na cara da gente. Aquele porco. Não tinha dez braças da casa de farinha. Houve até quem escutou um grito da menina antes dele tapar a boca dela. Grito pertinho. E depois a gente ainda ouvia o galope do cavalo dele quando Maria do Egito já estava na porta de casa toda molhada de lágrima e com o sanguinho ainda quente no vestido dela.
Nando fez o sinal da cruz, num momento de genuíno horror.
Que Deus perdoe este monstro. Você deu parte dele, Nequinho?
Deu — disse Leslie — mas ainda não aconteceu coisa nenhuma. O capataz é o braço direito do senhor de engenho, que deve ter achado a história compreensível, até corriqueira. E são os dois que chamam a polícia para prender os que se filiaram à Sociedade dos Plantadores e quiseram prestigiar com sua passeata o candidato esquerdista. E só prestigiar, porque votar não podem, pela lei brasileira. Você sabe ler e escrever, Nequinho?
Sei não senhor — disse Nequinho. — Mas sei ouvir. E o Senhor me falou.
É preciso estudar os meios, Nando, de efetivamente informar o Estado e o país do que acontece nesses engenhos.
Sem dúvida — disse Nando — e tenho certeza de que as reportagens que você e Winifred vão fazer terão a maior repercussão.
Mas vocês, brasileiros, é que precisam fazer alguma coisa a respeito — disse Leslie. — Que é que vocês vão fazer?
Que chatos, Senhor, esses estrangeiros com sua eterna pergunta! Fazer o quê? Primeiro as bases espirituais, a correção de erros históricos. Fazer, fazer! Objetividade. Índio-minério. Y en toda la villa de San Pablo no habrá más de uno a dos que no vayan a cautivar índios con tanta libertad como se fuera minas de oro y plata. Haciendo vidas de brutos sin acordarse de sus casas y de sus mujeres legítimas.
É essa a moça? — disse Nando ao chegar com Leslie à choupana de Nequinho.
Sim — disse Winifred. — Pobrezinha.
Só mesmo a morte desse homem poderia consolar uma família humilhada e ofendida assim — disse Leslie. — É incrível que isto aconteça em nossos dias.
O pior — disse Winifred — é que o Nequinho parece que ficou meio doido. Diz coisas terríveis à filha.
Cada uma sentada no seu banco ao pé da mesa tosca, mãe e filha estavam mudas. As outras crianças de Nequinho brincavam pelos cantos, mas mãe e filha tinham sido visitadas pela tragédia. Estavam de nojo.
Deus que ajude a gente, seu padre — disse a mãe a Nando. — Só mesmo Deus Nosso Senhor. O pai de Maria do Egito não fala mais com sua filha.
Não fala com a moça por quê? — disse Leslie.
Vai aguardar até a lua trazer o sangue natural de Maria do Egito — disse a velha. — Falou que se a semente do capataz Belmiro tiver barrado o sangue dela ele mata Maria do Egito e o capataz Belmiro.
Eu vou conversar com seu pai, minha filha — disse Nando a Maria do Egito.
A menina meneou afirmativamente a cabeça. Abúlica. Teria uns dezesseis anos, pensou Nando. Negro cabelo espichado de índia. Em pouco estaria desbotada, baia como as caboclas mais velhas. Como estava agora ainda podia ter sido mãe de heróis nos Povos de João Batista, Nicolau, Luís Gonzaga, Lourenço, Miguel, Borja e Ângelo.
Nequinho assomou à porta. Nando travou do braço dele e o foi levando para fora, seguido de Leslie.
Você sabe, Nequinho, que nem em todo o resto da vida dela tua filha Maria vai precisar mais de você do que agora? — disse Nando.
Deus já me falou o que é que eu tenho que obrar no caso de Maria do Egito — disse Nequinho. — Ele me falou na noite do estupro dela.
E o que foi que Deus te disse?
Ele falou: se a sustância que o Belmiro deixou no ventre da Maria começar a virar gente tu sacrifica o Belmiro e a sucessão do Belmiro no ventre da Maria. Tenho que matar a filha e o genro que o diabo me mandou.
Deus não pode ter dado um conselho criminoso a você — disse Nando. — Foi sua própria e justa cólera contra Belmiro que falou, Deus já sabe se Maria do Egito vai ou não vai ficar grávida de Belmiro. E se ela ficar, cumpra-se a vontade de Deus.
Deus não pode ter essa vontade não senhor, com seu perdão e sua bênção — disse Nequinho. — E foi a voz dele que me falou.
Pois Deus me mandou aqui hoje — disse Nando — para desfazer essa medonha intriga do demônio. Se Maria do Egito tiver filho, o filho será do mosteiro. Nós mesmos criamos a criança se for menino e daremos a criança às freiras se for menina.
Nequinho abaixou a cabeça.
Não tinha dez braças da casa de farinha — disse Nequinho. — Pra todo o mundo conhecer o fato. Sanguinho novo no vestido amarelo. Mais dois, três dias a gente sabe se Deus perdoou. É tempo do outro sangue.
Pois então você não está vendo — disse Nando — que Deus não ia querer que você matasse sua própria filha, e filha que está sofrendo tanto?
Então por que é que ele me falou? — disse Nequinho.
Deus não manda matar, manda amar, manda perdoar. Você não vê que não pode ter sido a voz de Deus? Deus mandou Abraão sacrificar o filho dele, mas susteve o braço de Abraão. Deus queria apenas experimentar a fé de Abraão — disse Nando.
Se o Senhor travar do meu braço eu também não sacrifico Maria do Egito — disse Nequinho. — Até antes disso eu posso ter o sinal. Se Deus derramar o sangue do ventre dela na lua certa está falado comigo.
Nando ficou um instante atônito.
Nequinho, eu compreendo teu sofrimento de pai e esta loucura que o sofrimento te dá. Mas Deus disse “Não matarás!”. Se matares tem prisão dos homens e tem inferno de Deus.
Nequinho olhou Nando longamente.
Com sua bênção e com sua permissão — disse Nequinho. — É a primeira vez que seu padre vem por estas bandas, não é?
Sim — disse Nando.
Nequinho virou as costas e foi andando. Leslie botou a mão no ombro de Nando.
Eles se habituaram a falar diretamente com Deus — disse Leslie. — Sem intermediários.
Winifred se acercou. Vinha com ela, e parou ao seu lado, um camponês cabisbaixo, chapéu de palha de carnaúba enterrado até os sobrolhos.
Vamos embora, minha gente. Estou cansada. Quedê a chave da camioneta?
Leslie não gostou da interrupção.
Calma — disse. — Cansados estamos todos. O que é que deu em você, Winifred?
Mas ao fitar a mulher que se limitou a mover os olhos na direção do camponês, Leslie compreendeu.
Bem, é melhor a gente ir mesmo. Basta a cada dia o mal que nele se contém. O cabra aí quer carona, não quer?
Quer sim. E ele está bem no nosso caminho.
Foram andando na direção do carro e Nando disse:
Antes de mais nada vamos à polícia. Esse tal Belmiro precisa ser preso sem perda de tempo. Se houver um mínimo de justiça é provável que Nequinho abandone sua terrível obstinação.
Em voz baixa, que só mesmo as pessoas ao seu redor podiam ouvir, mas carregada de paixão, o camponês que chegara com Winifred falou:
À polícia já fui. Levei o advogado da nossa Sociedade. Já tentei até prender com minhas próprias mãos esse monstro, Belmiro, mas o dr. Beltrão deu “férias” ao capataz. Diz que não sabe para onde ele foi. O caso parou na estaca zero.
Nando tinha começado a se voltar com assombro para o camponês mas Leslie lhe apertou o braço. Olhando melhor, Nando reconheceu Januário sob o disfarce. Entraram na camioneta, Nando e Januário no banco de trás, Leslie e Winifred na frente. Quando o carro deu a partida Januário disse:
Belmiro eles não prendem, mas a mim prendem por “agitação” se me encontram no Senhora do O. Os canalhas! A gente tem de acabar derrubando tudo isto na marra, como quer o Levindo.
Januário tirou o chapéu de palha. Seu rosto pequeno mas de traços bem acentuados parecia cortado em pedra. Amassada pelo chapéu, até a cabeleira de Januário, em geral esvoaçante, achatara-se contra a cabeça em cachos metálicos, feito um capacete. As costeletas do cabelo vinham morrer em cima de masseteres tão contraídos que tornavam quadrada a cara. Nando se lembrou com um arrepio da arma de Hosana. Januário parecia prestes a detonar a qualquer momento.
Há outros meios — disse Nando.
O engraçado é que quando se fala em violência no Brasil é como se a gente pudesse decidir contra ou a favor da violência quando a verdade é como diz o Levindo: eles escolheram a violência há muito tempo. A violência de Belmiro não é dele só. A violência contra mim é do sistema inteiro.
O mal da violência — disse Leslie — é que depois há tudo a refazer. E a gente corre o risco de vencer sem convencer. Aliás, quem mais pode ajudar uma reforma não violenta no campo brasileiro é a Igreja.
Ah, isto é um fato — disse Januário. — Eu já estive com o arcebispo, com d. Anselmo, com d. Ambrósio. Se ao menos a Igreja nos benzesse as armas!
Para disfarçar a violência? — disse Nando.
Para ajuizar quando a violência se torna justa — disse Januário —, inevitável.
A palavra dos Evangelhos é outra — disse Nando.
Ah, isto não — disse Januário.
E a espada que Cristo trouxe?
Ai, gemeu Nando consigo mesmo, lá vem São Mateus, 10,34. Das 36.450 palavras de Jesus registradas no Evangelho nenhumas são talvez citadas com mais frequência e mais em falso. Jesus podia pensar apenas no Reino do seu divino Pai porque o Reino deste mundo, imperfeito como sempre será, chegava no seu tempo de vida à perfeição augusta. Seu Pai celeste preparara Roma como quem arruma um régio berço. O mundo mundano vivia à sombra da águia que um dia se colocaria à sombra sobrenatural da pomba do Espírito Santo. Virgílio ouvira o som dos passos que começavam a palmilhar o solo da história e estava assinalado para levar um dia o poeta de Deus à presença de Matilde, Lúcia, Beatriz.
Antonio Callado, in Quarup

Emicida - AmarElo (Sample: Belchior - Sujeito de Sorte) part. Majur e Pabllo Vittar

Wilson, enfim

Wilson Bueno escreveu ficções – arriscadas ficções – que não eram bem suas. Eram suas: mas sempre narradas em línguas alheias. Com sua alma de experimentalista, Wilson se escondia a cada novo livro à sombra de narradores imprevisíveis. Mais ainda: era como se a própria noção de autoria, em sua escrita, entrasse em pane. E o próprio Autor, ele, Wilson Bueno, se transfigurasse – se matasse. Sempre procurei, aflito, pedaços de sua voz em seus relatos. Nunca os encontrei.
Tivemos, é verdade, uma amizade instável, que terminou em um grande desencontro. Mas não era o que me afligia – embora afligisse também. A cada novo livro, por mais que eu me entusiasmasse, sentia-me obrigado a lhe perguntar: “Gostei, gostei muito, Wilson, mas onde está você?”. Estive, até sua morte brutal, em maio de 2010, à espera de uma ficção que o trouxesse de corpo inteiro; dono (ainda que aos pedaços) de seu próprio estilo; em plena (ainda que precária) posse de si.
Em sua novela mais festejada, Mar paraguayo (Iluminuras, 1992), Wilson Bueno incorpora um portunhol forte, temperado com essências do guarani, estranha língua retalhada que, nele, caía como um manto impecável. Em Amar-te a ti nem sei se com carícias (Planeta, 2004), simula um manuscrito do século XIX, com sua linguagem pedante, timbre antigo, pose solene. Como um médium que incorporasse vozes alheias emprestando-lhes o corpo para uma falsa ressurreição, Wilson tornou-se um inspirado inventor. Estranho inventor, porém, que parecia sempre ausente de suas invenções.
Agora que está morto, e em um doloroso movimento inverso no qual, já afastada de seu corpo físico, sua voz enfim se ergue, ele nos deixa o livro que dele sempre esperei. Um romance em que não se oferece como porta-voz ou representante, mas no qual, mesmo se reinventando, Wilson se desnuda. E dessa forma, como ele mesmo escreve, “sobrevive a si mesmo”. Em Mano, a noite está velha (Planeta), ouvimos, enfim, sua voz verdadeira ainda que inventada – porque a ficção, como portunhol, é também uma experiência de fronteira. Era essa segunda margem, essa banda “paraguaia” que agora se apresenta, o pedaço que nos faltava para vê-lo melhor. Ela ressoa agora entre a náusea e a alegria, entre a agonia e o prazer, ali onde se esconde o Wilson inteiro.
Não posso omitir a ideia repugnante: Wilson precisou morrer, brutalmente assassinado, para que agora, desprovido de um corpo, possa abandonar a posição de “cavalo”, ou de embaixador, para falar, enfim, em seu próprio nome. Para sustentar, finalmente, a voz única que ressoa, comovente, naquele que, afora todas as corajosas aventuras experimentais do passado, é de longe seu livro mais importante.
O romance guarda, além disso, um incômodo tom premonitório – anúncio da morte hedionda que o esperou, pelas mãos de um indiferente assassino, na noite de 31 de maio de 2010. Trata-se de uma longa conversa com o Além, representado pelo irmão morto. O escritor teve, de fato, um irmão, só um, que faleceu antes dele. As informações que esse narrador, Frederico, nos dá a respeito de si não nos convencem. Não passam de um disfarce mal-ajambrado que, só a muito custo, encobre a face do escritor.
Ali está um corpo – um narrador, um Autor? – que fala com alguém que já não está ali. Mais uma vez, o jogo entre presença e ausência, entre vida e morte; a existência por um fio em cujo deserto Wilson, um homem dado a emoções fortes e amores fulminantes, mas também dono de um humor ferino e de uma elegância nobre, apreciava se instalar.
Só agora, morto, enfim ele nos fala. Há uma referência insistente a certo Bolaño – que só pode ser Roberto Bolaño, o escritor chileno, falecido em julho de 2003; o autor de 2666, outro romance póstumo, editado em 2004. Bolaño nele trabalhou durante seus cinco últimos anos de vida, enquanto esperava um transplante de fígado. Sem saber que fazia isto (ou, de alguma forma secreta, sabendo?), Wilson meses a fio o imitou, debruçado sobre seu Mano, na mesma posição de espera e despedida. Há, também, certa Hilda – que só pode ser Hilda Hilst, a escritora falecida em 2004 (mesmo ano em que 2666, com Bolaño já morto, o traz de volta); e de quem Wilson foi caloroso amigo e com quem, pela via do precário, sentia grande afinidade.
Preciso deixar de lado as referências pessoais, refrear-me para voltar ao livro, que leio entre a dor e a alegria. É, sem dúvida, um livro de despedida – e aqui o caráter premonitório se torna assustador. Em Frederico, narrador de pensamento vacilante, persiste a sombra de Wilson: a solidão insistente e intransponível; o culto religioso da Mãe (assim mesmo, com maiúscula), cuja morte atravessa – com a força de uma faca – todo o relato. Há, ainda, um garoto morto, Maicon, cuja beleza se perde em visões confusas, que deságuam em um cemitério de província. E sobram cães desdentados, gatos obesos, pássaros atordoados, muitos bichos; sempre, os bichos (mas aqui estou eu de volta ao horror do real!) que – com sua miséria silenciosa – tanto fizeram Wilson sofrer.
E persiste, mais que tudo, a imagem viril (ainda que às vezes feminina) do sobrevivente, que ultrapassou a juventude, que sobreviveu a tempos de chumbo e que sobrevivia, como um herói esquivo e problemático, ao presente. Sobrevivente, sobretudo, de sonhos futuros que nunca (e isso da morte não se pode cobrar) se realizaram. “Estou aqui, sim, eu sou o sobrevivente”, Wilson diz, pela voz de Frederico, com todas as letras, com toda a clareza. “Antes de mais nada, sobrevivente de mim mesmo”, ele insiste.
A poucos passos do fecho, o retrato assombroso que Frederico apresenta de si evoca, ainda, um Wilson exposto, horas depois de sua morte brutal, não nas elegantes páginas literárias, mas no sangue das seções de polícia. Wilson anteviu Wilson? “Cato meus restos pela sala. É assim como se eu fosse um boneco de pano do qual se retirou todo o enchimento. Sobraram braços e pernas desengonçados, a cara já sem forma, só uns olhinhos de botão, e o sorriso, rasgado, meia-lua de feltro vermelho.” Haverá antecipação mais arrepiante de seu injusto destino?
José Castello, in Sábados inquietos

sexta-feira, 28 de junho de 2019

A verdade impossível

Quando pode começar nossa felicidade? Assim que nós tivermos conquistado a certeza de que a verdade não pode existir. Todas as modalidades de salvação são possíveis à partir disto, mesmo a salvação pelo nada. Àquele que não crê na impossibilidade da verdade, ou que não se alegra com ela, resta apenas uma via de salvação - uma via que ele jamais encontrará!
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

Ignorâncias paternas

Altas horas,
já secos cuspos e copos,
meu pai dizia:
vou reparar o teto.

E saía, para além da noite,
por interditos caminhos.

Minha mãe
retorcia a alma
nas magras mãos.

No peito, não no ventre,
a mãe vai gerando filhos.

Por trás dos cortinados,
seu olhar se desfiava
no longo rosário da espera.

Cegos para as suas fadigas
nós, os filhos,
pedíamos que nos alonjasse o medo.

E a voz dela acontecia
como inundação do rio:
lavando águas e tristezas.

Pobre do vosso pai, suspirava.
Que pena ela dele sentia
que, no escuro, em vão procurava.

A nossa casa, de tão alta,
não poderia nunca ter telhado.

Filhos deitados,
medos dormindo:
antes do meu pai regressar
já minha mãe
tinha reparado
as telhas todas do mundo.
Mia Couto

O traço sarcástico do polonês Pawel Kuczynski


La Suzanita

O Peugeot parou na esquina do posto de gasolina. Ali acabava o asfalto e começava a rua de terra. Era como a fronteira do mundo com outro mundo. Dali em diante, seria a pé. Precaución, compaiero, havia dito El Gitano na noite anterior, enquanto terminávamos o café.
O chofer gordo e queimado de sol puxou um lenço do bolso e sem tirar o cigarro da boca secou a testa, o queixo e o nariz. Depois olhou o taxímetro, que marcava dezoito e quarenta, e disse: Veinte. Estendi duas notas de dez e uma de cinco e disse: Gracias. Ele resmungou alguma coisa que não entendi. Desci do carro.
Fiquei parado na estrada, bem ali, na fronteira entre o asfalto e a estrada de terra batida, vendo como ele manobrava sem nenhuma perícia e levàva o Peugeot amarelo de volta para o asfalto e desaparecia logo depois. Cruzar a fronteira entre os dois mundos pelo lado direito do posto de gasolina, entrar na primeira ruela à direita, caminhar quatro quarteirões, parar, acender um cigarro, continuar, agora à esquerda por outra ruela de terra, seguir até encontrar um bar chamado La Suzanita, assim mesmo, com z. Alguém estará lá, disse El Gitano, que era de pouco falar. — Ele vai estar lá? — Quizá. Es posible. Todo es posible. — Quero saber. Devo saber. — Quizá.
El Gitano esvaziou a xícara de café, tocou a ponta do bigode com o dedo, acendeu um cigarro e não disse nada. Era mesmo de pouco falar. Muito pouco. Na verdade, eu não gostava dele. Ficou me olhando um tempinho, eu me sentia meio ridículo e um pouco irritado, e enfim ele disse: Una y cuarto. E depois completou: Más vale que no te retrases. Eu tinha chegado cinco minutos atrasado ao encontro daquela noite. Olhei para ele e disse em voz baixa: Vete a la mierda.
Eu pensava no homem que iria encontrar e na última vez em que havíamos estado juntos, uns dois meses antes, quando as coisas eram diferentes e todos repartiam promessas nas quais acreditavam. Não levava relógio, mas o chofer do Peugeot garantira que faltavam quinze para a uma quando me deixara logo ali atrás, na fronteira entre o asfalto e o chão de terra, no posto de gasolina.
O sol de outubro começou a arder em minha cara quando virei à direita e continuou ardendo nas duas quadras seguintes, e ainda quando parei e acendi o cigarro fora de hora. Olhei para trás, um menino vinha pela rua, e nada mais. O menino passou por mim olhando minhas calças desbotadas. Essa gente nunca diz nada: são pobres e calados. As janelas estavam fechadas e vi que logo adiante havia um pequeno Fiat 600 debaixo de uma árvore. A rua estava morta, como todo o resto.
Na esquina seguinte virei à esquerda, continuei andando, o sol ardia na nuca, uma, três, cinco quadras, será que vou chegar na hora?, e apertei o passo, o bar deveria estar perto, mas tenho tempo, pensei, tenho tempo, se ele estiver lá e eu chegar atrasado vai ser desagradável, e andei mais rápido ainda e vi, na outra esquina, a placa da Coca-Cola anunciando enfim o La Suzanita.
Eram duas portas abertas para a calçada de cimento coberta de poeira da rua de terra, e uma camionete empoeirada na esquina seguinte e eu adivinhava gente escondida, na vigia, nas redondezas.
Duas portas abertas e lá dentro, ninguém: três mesas de ferro, um balcão, prateleiras com latas e garrafas, cartaz de cigarros. Fiquei esperando.
De repente, atrás do balcão surgiu um garoto de uns quinze anos. Eu disse buenas tentando arrastar cada letra para dar um ar de preguiçosa familiaridade e serenidade, mas ele não respondeu.
Um rádio velho chiava o noticiário da uma, e o garoto olhou para uma mesa no canto. Acompanhei seu olhar: na mesa, uma garrafa solitária de cerveja Corona entre dois copos vazios, como à minha espera e de mais alguém, e só. Sentei, enchi um copo.
Enquanto eu bebia a cerveja o garoto sumiu por uma portinha estreita entre as prateleiras e fiquei sozinho. O rádio continuava chiando os resultados do regional de futebol e anunciou que era uma e meia. Pensei: “Não vai vir”. As ruas de terra continuavam num silêncio de noite alta debaixo de um sol sem piedade. Fiquei pensando em como fazer para retomar o contato, agora que o sindicato tinha sido fechado e a vida era outra. Eu havia vindo de muito longe, e precisava levar de volta informações que só ele poderia me dar, em troca de informações que só eu poderia dar a ele. Era um encontro crucial, tinha sido cuidadosamente combinado, com todas as precauções e mais algumas. Quinze minutos de atraso, e ele não atrasava nunca. Quinze minutos era o tempo que teríamos para o nosso encontro.
De repente, atrás do balcão, surgiu o ruído de pés leves que se arrastavam. Olhei, havia uma moça de uns vinte anos, misteriosamente bela e serena. Eu murmurei buenas outra vez, e outra vez foi em vão. Ela olhou para a rua e desapareceu pela portinha entre as prateleiras, para surgir de novo em seguida e fazer um gesto aflito para que eu me aproximasse. Olhei para a rua, tudo continuava igual. Contornei o balcão, entrei pela mesma portinha entre as prateleiras. Ela me olhava com olhos assustados. Vi um minúsculo colar de gotículas sobre seus lábios. Era uma menina sombria e bonita. Havia uma certa fúria em seus olhos. Fiquei olhando para ela, esperando alguma palavra, algum sinal. Ela me olhava com uma agonia juvenil enquanto buscava palavras. O silêncio pareceu durar meia-vida, até que ela disse, com voz serena: — Sucedió algo.
O resto veio num jorro: não ia haver encontro, eu tinha de voltar para o hotel da cidade e esperar até às dez da manhã do dia seguinte. Se ninguém me procurasse, deveria voltar imediatamente para a capital e buscar abrigo até que tudo tornasse a se acalmar. Depois, indicou-me uma porta que dava para o quintal, dizendo que além do quintal havia outra ruela, e que eu deveria caminhar rápido até o posto de gasolina, onde um táxi estava à minha espera para me levar de volta para a cidade.
Ela era esguia, tinha uma aflição nos gestos que contrariava a serenidade da voz e o brilho parado dos olhos. Tocou levemente minha mão, como numa despedida; depois, num arrebato sem explicação, me abraçou, antes de me empurrar na direção da porta.
Havia outro Peugeot no posto de gasolina. O motorista era um jovem de pele curtida de sol. Não disse nada quando entrei, apenas arrancou numa velocidade de relâmpago, e assim prosseguiu por quilômetros até a cidade. Parou a três quarteirões do hotel. Não perguntei quanto devia. Desci o mais rápido que pude. Ele apenas sussurrou: Suerte. Cuidado.
Cheguei ao hotel pouco antes das três e quinze da tarde, me estendi na cama e dormi.
Quando acordei era noite. Persegui na televisão o noticiário das oito, e fiquei sabendo: ele tinha sido pego pouco depois das duas, naquele mesmo subúrbio operário, muito perto de onde eu estivera. Com ele, na mesma casa, havia mais três homens e uma moça. Um dos homens era El Gitano: reconheci seu rosto numa velha foto sem nome do arquivo policial. O noticiário dizia que tentaram resistir e que foram todos mortos no tiroteio, inclusive a moça. Dizia que ela era filha dele. Dizia também que no meio da tarde a polícia havia localizado um bar que servia de ponto de reunião, e que no bar estava um garoto. O garoto fora levado preso. Dizia tudo isso o noticiário das oito.
No dia seguinte, depois de uma noite sem sono e atravessada de memória, fúria e medo, desci logo cedo e comprei os jornais. A notícia estava em todos, com mais estardalhaço que informação.
Um dos jornais trazia uma foto da moça. Era realmente bonita. Tinha dezenove anos.
Às dez e meia paguei o hotel e fui para o aeroporto. Enquanto esperava o voo joguei fora os jornais. Antes, e sem que nunca tenha tido tempo de entender por que, rasguei cuidadosamente da página a foto da moça, dobrei-a pela metade e guardei na carteira. O nome dela era Suzanita, e nunca entendi o que me levou a querer levar a foto comigo.
Eu sabia que era um dos próximos de uma lista sem fim. Queria apenas chegar de volta à capital, avisar os companheiros, buscar abrigo e pensar no que poderia ser feito.
Uma semana depois, quando fui preso, a fotografia continuava na minha carteira.
Eu consegui me manter à tona até o momento em que um deles resolveu examinar de novo minha carteira. Até ali, eu estava indo bem — até perguntarem se eu sabia quem era a moça. Um deles fez a pergunta com toda calma, enquanto os outros sorriam.
Eu disse apenas que era uma moça que tinha conhecido numa cidade do interior. Foi então que o inferno começou.
Eric Nepomuceno, in Os cem melhores contos brasileiros do século

Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon

Lulu Bergantim veio de longe, fez dois discursos, explicou por que não atravessou o Rubicon, coisa que ninguém entendeu, expediu dois socos na Tomada da Bastilha, o que também ninguém entendeu, entrou na política e foi eleito na ponta dos votos de Curralzinho Novo. No dia da posse, depois dos dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos atirados no rosto de Lulu Bergantim pela professora Andrelina Tupinambá, o novo prefeito de Curralzinho sacou do paletó na vista de todo mundo, arregaçou as mangas e disse:
Já falaram, já comeram biscoitinhos de araruta e licor de jenipapo. Agora é trabalhar!
E sem mais aquela, atravessou a sala da posse, ganhou a porta e caiu de enxada nos matos que infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca aberta, não lembrava em cem anos de ter acontecido um prefeito desse porte. Cajuca Viana, presidente da Câmara de Vereadores, para não ficar por baixo, pegou também no instrumento e foi concorrer com Lulu Bergantim nos trabalhos de limpeza. Com pouco mais, toda a cidade de Curralzinho estava no pau da enxada. Era um enxadar de possessos! Até a professora Andrelina Tupinambá, de óculos, entrou no serviço de faxina. E assim, de limpeza em limpeza, as ruas de Curralzinho ficaram novinhas em folha, saltando na ponta das pedras. E uma tarde, de brocha na mão, Lulu caiu em trabalho de caiação. Era assobiando “O teu-cabelo-não-nega, mulata, porque-és-mulata-na-cor” que o ilustre sujeito público comandava as brochas de sua jurisdição. Lambuzada de cal, Curralzinho pulava nos sapatos, branquinha mais que asa de anjo. E de melhoria em melhoria, a cidade foi andando na frente dos safanões de Lulu Bergantim. Às vezes, na sacada do casarão da prefeitura, Lulu ameaçava: Ou vai ou racha!
E uma noite, trepado no coreto da Praça das Acácias, gritou:
Agora a gente vai fazer serviço de tatu!
O povo todo, uma picareta só, começou a esburacar ruas e becos de modo a deixar passar encanamento de água. Em um quarto de ano Curralzinho já gozava, como dizia cheio de vírgulas e crases o Sentinela Municipal do “salutar benefício do chamado precioso líquido”. Por força de uma proposta de Cazuza Militão, dentista prático e grão-mestre da Loja Maçônica José Bonifácio, fizeram correr o pires da subscrição de modo a montar Lulu Bergantim em forma de estátua, na Praça das Acácias. E andava o bronze no meio do trabalho de fundição, quando Lulu Bergantim, de repente, resolveu deixar o ofício de prefeito. Correu todo mundo com pedidos e apelações. O promotor público Belinho Santos fez discurso. E discurso fez, com a faixa de provedor-mor da Santa Casa no peito, o Major Penelão de Aguiar. E Lulu firme:
Não abro mão! Vou embora para Ponte Nova. Já remeti telegrama avisativo de minha chegada.
Em verdade Lulu Bergantim não foi por conta própria. Vieram buscar Lulu em viagem especial, uma vez que era fugido do Hospício Santa Isabel de Inhangapi de Lavras. Na despedida de Lulu Bergantim pingava tristeza dos olhos e dos telhados de Curralzinho Novo. E ao dobrar a última rua da cidade, estendeu o braço e afirmou:
Por essas e por outras é que não atravessei o Rubicon!
Lulu foi embora embarcado em nunca-mais. Sua estátua ficou no melhor pedestal da Praça das Acácias. Lulu em mangas de camisa, de enxada na mão. Para sempre, Lulu Bergantim!
José Cândido de Carvalho, in Os cem melhores contos brasileiros do século

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Especial de São João - Jessier Quirino, com Antonio Barros e Cecéu

Herói juvenil

Que fim levou o Roger Vadim? Não é uma preocupação trivial. É que aquela geração que ficou adulta, ou coisa parecida, no mesmo momento em que Brigitte Bardot revelava o seu popô ao mundo, viveu, desde então, uma certa confusão intelectual. Sabíamos que alguma coisa importante tinha nos acontecido no novo cinema francês, mas sempre imaginamos que fosse algo sério, uma proposta de engajamento pela arte, a idéia de que a segunda sessão do Ópera era não uma perda de tempo, mas um aprendizado para a luta possível. Resnais, Godard, talvez Chabrol, mas jamais Vadim, um juvenil e um inconseqüente. E hoje, mais velhos e safados, descobrimos que o que estava nos acontecendo de importante era mesmo o popô da Brigitte. Vadim é que era o cara. Levamos muitos anos para reconhecer esta admiração secreta. E hoje nos perguntamos, com remorso acumulado: que fim levou o nosso herói?
A Brigitte era virgem quando casou com o Vadim. Dado histórico. E Vadim transformou a sua esguia virgem provinciana no símbolo mundial do sexo sem culpa. Brigitte foi a primeira magrinha. Com ela, Vadim deflorou todas as convenções do erotismo no cinema. A tradição literária de Candide, da ingenuidade solta num mundo pecaminoso, Vadim substituiu pelo ideal juvenil da sensualidade sem pecado e sem castigo. Com Brigitte, ao contrário de Candide, a inocência vencia porque atacava primeiro. A inocência predatória, com o popô de fora, irresistível. Nenhum filme político teve tanta influência nos costumes do mundo, ou foi mais divertido.
Jane Fonda também era virgem quando encontrou Vadim, pelo menos simbolicamente. Jovem americana, poucas ideias, mas grandes pernas, tentando a Europa. Saiu do casamento com Vadim com uma filha e uma consciência social, mas aposto que ele, hoje, quando pensa nela, deve se lembrar só das pernas. Quem mais? Meu Deus, Catherine Deneuve. A que, segundo o José Onofre, está sempre com ar de gripada, mas que mesmo assim nenhum intelectual de esquerda jogaria fora. Ele a teve também. E a Annette Stroyberg. E — ouço a plateia do Ópera exultando no escuro, lá se vão muitos anos de respeito e inveja — nenhuma jamais se queixou!
Que fim levou esse cara? Retirou-se para a vida contemplativa, o campo, alguns cachorros e suas memórias? Ficou impotente e agora só tem prazer flagelando velhas camponesas? Trabalha para a televisão? Ou nós estamos só mal informados e ele continua fazendo filmes que nunca chegam ao Brasil? Vadim nunca foi um grande diretor. É um herói cultural reabilitado porque sabia, muito antes do que qualquer um de nós, que para ser um intelectual, hoje em dia, basta parecer um intelectual. Duas ou três ideias e uma gola rulê, se tanto. Ninguém vai checar as suas credenciais. Todas as veleidades intelectuais de Vadim ele satisfez em alguns filmes profundos na superfície e, no fundo, superficiais, mas redimidos pelo seu vigor juvenil, pelo seu gosto em fazer cinema. Tinham a aparência de algo muito importante, não era preciso mais nada. Na época nós exigíamos mais do cinema do que uma superfície atraente. Hoje sabemos que o cinema de Vadim era só um pretexto para dormir com a atriz, e isso nos parece uma grande conquista cultural, e um consolo. Pois se não mudamos o mundo nem com luta nem com arte — pois se nem saímos de Porto Alegre — podemos dizer que não queríamos mudar nada mesmo. Queríamos é dormir com a Brigitte. Vadim nos realizou a todos.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquetes com os deuses

Quebrar armadilhas (trecho)

Eu sou um poeta e sinto-me feliz pelo fato de a poesia atuar como estrela inspiradora para um encontro desta natureza. A poesia prova assim não ser apenas um gênero literário, mas um olhar revelador de mistérios e uma sabedoria resgatadora da nossa profunda humanidade. A poesia é um modo de ler o mundo e escrever nele um outro mundo. Buscar iluminação na voz de um poeta já é um primeiro quebrar de armadilhas. Este Congresso da COLE está começando bem antes mesmo de iniciar os seus trabalhos.
Compete-nos desarmadilhar o mundo para que ele seja mais nosso e mais solidário. Todos queremos um mundo novo, um mundo que tenha tudo de novo e muito pouco de mundo. A isso chamaram de utopia. Sabendo que esta palavra contém já uma cilada. A palavra “utopia”, que vem do grego, quer dizer o “não-lugar” (em contraponto com o lugar concreto que é o nosso mundo real). Mas eu não estaria fazendo poesia se dissesse que, nas condições de hoje, aconteceu uma curiosa inversão: o chamado mundo real é aquele que se apresenta como um verdadeiro não-lugar, um lugar vazio onde cabemos apenas como ilusão virtual. Não sei se poderemos chamar de lugar ao território onde vivemos uma vida que nunca chega a ser nossa e que, cada vez mais, nos surge como uma vida pouco viva.
Como primeira reação, o mote deste congresso sugeriu-me realidades quotidianas muito concretas e transportou-me para o meu próprio país, onde subsistem milhares de minas deixadas pela guerra civil. Sou biólogo, trabalho nas zonas rurais e não há vez nenhuma que não seja assaltado pelo receio de pisar o chão. As minas antipessoais são produzidas por países que se reclamam da civilização e dos direitos humanos. Algumas destas nações proclamam-se mesmo campeãs na luta contra o terrorismo e as armas de destruição em massa. Mas recusaram-se sempre a assinar o acordo para o banimento desta insidiosa forma de terrorismo que todos os dias mutila e mata mulheres, crianças e homens inocentes nos países pobres.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

Snoopy


Menina

Oh, ela sabia cada vez mais.”
Sentar-se, concentrada, contar até um número, por exemplo dez, ou doze, e esperar agudamente um acontecimento importante, era seu exercício mais impreciso, mais despido de maldade, porque ela não escolhia o que ia acontecer, só fazia acontecer.
Havia outros, menos intensos: gritar “aaaa” de olhos fechados e, abrindo-os, esperar que tudo houvesse desaparecido; colocar a mão molhada na testa e acompanhar aquele sangue mais frio passeando no seu corpo; imóvel e muda, obrigar a fruteira de cristal brilhante a estilhaçar-se no chão com a força do pensamento; passar sem comer um dia inteiro para preocupar a mãe e ouvir deliciada: “Ana Lúcia, você me mata!”
Entretanto, era o esperar que algo importante acontecesse quando contasse até doze ou dez que lhe dava aquele segundo de vida intenso do qual ela saía sempre um pouco mais velha, e apressava a sua respiração, como um cansaço ou um beijo de Guilherme em Nilsa. Horas depois, ou nos dias seguintes, quando ouvia as pessoas grandes conversarem segredos ou comentarem graves um fato recente, dizia-se, plena de poder, ela mesma perplexa ante suas possibilidades: “Fui eu. Fui eu que fiz.”
Achava péssimo ir à escola, a professora era horrível. As coisas de que mais gostava: pensar sem ninguém perto porque aí podia ir avançando até se perder, brincar de santa, dormir, comer doce. Bom mesmo era fazer nada, nem pensar, mas isso só às vezes conseguia, e era impossível gozar o momento, sempre passado. Pois quando o sentia, ele já acabara: ela começara a pensar. Ter aquilo na mesma hora seria morrer? — perturbava-se ela com o pensamento, cada vez sabendo mais.
Sim, cada vez sabendo mais. Sempre sentira esse mistério: não ter pai. Ela, que podia tanta coisa, afinava-se embaraçada de não conseguir dizer “papai” do modo de Tita ou Nina. Era a única coisa que faziam melhor do que ela, dizer “papai”. A diferença talvez só ela percebesse, sutil. Sentia que pai era uma coisa que se tem sempre, como mãe, ou roupas. Tita e Nina sabiam que aquela era uma vantagem:
Quede seu pai, Ana Lúcia?
Está viajando.
Disseram-lhe isso, já tinha escutado ou inventara? Ah, cada vez sabia mais, sempre mais.
Guilherme e Nilsa não se beijavam perto da mãe. Se ela chegava, as mãos ficavam quietas nas mãos, a respiração ficava mansinha e não havia mais nada interessante para olhar da janela do quarto. Beijar devia ser proibido. Ou pecado. (Sabia mais, sempre mais.)
Ana Lúcia, seu pai ainda está viajando?
Está.
Mentirosa! Sua mãe é desquitada.
Ficou impotente diante da palavra desconhecida. Uma coisa nova, ainda não se podia saber de que lado olhar para possuí-la toda. Desquitada. Desquitada. Jamais perguntaria a Tita, era uma alegria que não lhe daria. Ficou uns instantes sem saber como sair ilesa dessa armadilha. Tita corada e brilhante de prazer na sua frente. — E o que é que tem isso?
Tita desmontou como um quebra-cabeça, Ana Lúcia balançara o tabuleiro. Jamais teria medo de Tita, ela sempre dependia demais das coisas fora dela, de um gesto, de uma palavra como desquitada ou parto. Desquitada. Passou dias tentando solucionar sozinha. Seria uma coisa como burra, feia? Não, não parecia. Flor? Flor parecia, mas não explicava nada: orquídeas, rosas, sempre-vivas, desquitadas... Parecia. “Mentirosa! Sua mãe é desquitada.” Tita dissera como quem diz o quê? o quê? o quê? sem-vergonha. Sim!, como quem diz sem-vergonha: olhando de frente e esperando um tapa.
Nesses dias amou a mãe com muita força, amou-a até sentir lágrimas, defendendo-a contra a palavra que poderia feri-la: desquitada, sem-vergonha. Pensava a palavra de leve, com receio de ferir a mãe. Experimentava, baixinho, torná-la mais suave, molhando-a de lágrimas e amor: desquitadinha, sem-vergonhinha. Mas a palavra sempre agredia, sempre feria. Sentada no chão, picando retalhinhos de pano com a tesoura, amava a mãe intensamente, enquanto ela costurava rápida, bonita mesmo, com aqueles alfinetes na boca. Chegava alguém para provar vestidos, a mãe mandava-a sair. Era feio ver gente grande mudar de roupa, a mãe dizia. Saía contrariada por deixá-la exposta à palavra, em perigo. Abria-se a porta, ela entrava de novo, amando, amando.
Estava cansada dessa obrigação e só por isso duvidou de si, subitamente um dia ao tomar leite para dormir: desquitada podia não ser como sem-vergonha! Podia até ser pior, e quem sabe podia ser melhor. Respirando fundo e observando-se, ela seguia pronta para novas descobertas. Refugiou-se no sono.
No dia seguinte recomeçou. Mais uma vez preocupava-se com a palavra, agora não nova, mas mistério, sombra. Não se arriscava a dar um palpite, havia o perigo de outro engano.
A professora feia! pergunta no fim da manhã, recolhendo os cadernos, se alguém tem alguma dúvida. Ana Lúcia acende-se emocionada. Por que não a professora? Talvez ela fosse boa, talvez dissesse logo o que é desquitada, talvez dissesse na mesma hora, sem muitas perguntas como por que você quer saber uma coisa dessas. Levanta-se tímida, insegura. Já de pé, desiste, e não sabe se senta ou chora.
O que é, Ana Lúcia?
A voz da professora, mansa, mas não ajudando. Não pergunto, não pergunto — teima Ana Lúcia, ganhando tempo.
O que é? — a voz insiste.
As meninas riem, insuportáveis. Helenice e seus dentes enormes impossibilitando tudo. Ana Lúcia sente que vai chorar. Estar perto da mãe é o que mais deseja.
Sente-se — ordena a professora irritada.
A máquina de costura avançava decidida sobre o pano. Que bonita que a mãe era, com os alfinetes na boca. Gostava de olhá-la calada, estudando seus gestos, enquanto recortava retalhos de pano com a tesoura. Interrompia às vezes seu trabalho, era quando a mãe precisava da tesoura. Admirava o jeito decidido da mãe ao cortar pano, não hesitava nunca, nem errava. A mãe sabia tanto! Tita chamava-a de ( ) como quem diz ( ). Tentava não pensar as palavras, mas sabia que na mesma hora da tentativa tinha-as pensado. Oh, tudo era tão difícil. A mãe saberia o que ela queria perguntar-lhe intensamente agora quase com fome depressa depressa antes de morrer, tanto que não se conteve e
Mamãe, o que é desquitada? — atirou rápida com uma voz sem timbre.
Tudo ficou suspenso, se alguém gritasse o mundo acabava ou Deus aparecia — sentia Ana Lúcia. Era muito forte aquele instante, forte demais para uma menina, a mãe parada com a tesoura no ar, tudo sem solução podendo desabar a qualquer pensamento, a máquina avançando desgovernada sobre o vestido de seda brilhante espalhando luz luz luz.
A mãe reconstruiu o mundo com uma voz maravilhosa e um riso: — Eu precisava mesmo explicar para você a situação. Mas você é tão pequena!
Olhou a filha com carinho, procurando o jeito mais hábil. Pouco mais de sete anos, o que poderia entrar naquela cabecinha?
Desquitada é quando o marido vai embora e a mãe fica cuidando dos filhos.
Pronto, estou livre — sentiu Ana Lúcia. Desquitada, desquitada, desquitada — repetia sem medo. Sentia-se completa e nova. Alegrou-se por não precisar amar a mãe com aquela força de antes. Sendo apenas uma menina poderia cansar-se e então o que seria da mãe? Bom, que desquitada não fosse um insulto. Bom mesmo. Deixava-a livre para pensar e não pensar, coisa tão difícil que
Marido é o pai? — ela quis confirmar, conquistando áreas que as outras crianças tinham naturalmente. A mãe sorriu e confirmou. Tita sabia dizer “papai” porque a mãe não era desquitada — ia Ana Lúcia aprendendo, descobrindo. Havia muita coisa em que pensar naquela conversa. Por exemplo: o que ela chama de marido é o que eu chamo de pai. Essa é uma diferença entre mãe e filha. Ela sabia cada vez mais.
Ivan Ângelo, in Os cem melhores contos brasileiros do século