sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Live | João Bosco e Orquestra Ouro Preto

Para cantar com o saltério

Te espero desde o acre-mel de marimbondos da minha juventude.
Desde quando falei, vou ser cruzado, acompanhar bandeiras,
ser Maria Bonita no bando de Lampião, Anita ou Joana,
desde as brutalidades da minha fé sem dúvidas.
Te espero e não me canso, desde, até agora e para sempre,
amado que virá para pôr sua mão na minha testa
e inventar com sua boca de verdade
o meu nome para mim.

Adélia Prado

Aprendendo a viver

Thoreau era um filósofo americano que, entre coisas mais difíceis de se assimilar assim de repente, numa leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos angustiado.
Thoreau, por exemplo, desolava-se vendo seus vizinhos só pouparem e economizarem para um futuro longínquo. Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas “melhore o momento presente”, exclamava. E acrescentava: “Estamos vivos agora.” E comentava com desgosto: “Eles ficam juntando tesouros que as traças e a ferrugem irão roer e os ladrões roubar.”
A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras é que você existe.
Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.
Ele queria que fizéssemos agora o que queremos fazer. A vida inteira Thoreau pregou e praticou a necessidade de fazer agora o que é mais importante para cada um de nós.
Por exemplo: para os jovens que queriam tornar-se escritores, mas que contemporizavam – ou esperando uma inspiração ou se dizendo que não tinham tempo por causa de estudos ou trabalhos – ele mandava ir agora para o quarto e começar a escrever.
Impacientava-se também com os que gastam tanto tempo estudando a vida que nunca chegam a viver. “É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que começamos a saber.”
E dizia esta coisa forte que nos enche de coragem: “Por que não deixamos penetrar a torrente, abrimos os portões e pomos em movimento toda a nossa engrenagem?” Só em pensar em seguir o seu conselho, sinto uma corrente de vitalidade percorrer-me o sangue. Agora, meus amigos, está sendo neste próprio instante.
Thoreau achava que o medo era a causa da ruína dos nossos momentos presentes. E também as assustadoras opiniões que nós temos de nós mesmos. Dizia ele: “A opinião pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de nós mesmos.” É verdade: mesmo as pessoas cheias de segurança aparente julgam-se tão mal que no fundo estão alarmadas. E isso, na opinião de Thoreau, é grave, pois “o que um homem pensa a respeito de si mesmo determina, ou melhor, revela seu destino”.
E, por mais inesperado que isso seja, ele dizia: tenha pena de si mesmo. Isso quando se levava uma vida de desespero passivo. Ele então aconselhava um pouco menos de dureza para com eles próprios. O medo faz, segundo ele, ter-se uma covardia desnecessária. Nesse caso devia-se abrandar o julgamento de si próprio. “Creio”, escreveu, “que podemos confiar em nós mesmos muito mais do que confiamos. A natureza adapta-se tão bem à nossa fraqueza quanto à nossa força.” E repetia mil vezes aos que complicavam inutilmente as coisas – e quem de nós não faz isso? –, como eu ia dizendo, ele quase gritava com quem complicava as coisas: simplifique! simplifique!
E um dia desses, abrindo um jornal e lendo um artigo de um nome de homem que infelizmente esqueci, deparei com citações de Bernanos que na verdade vêm complementar Thoreau, mesmo que aquele jamais tenha lido este.
Em determinado ponto do artigo (só recortei esse trecho), o autor fala que a marca de Bernanos estava na veemência com que nunca cessou de denunciar a impostura do “mundo livre”. Além disso, procurava a salvação pelo risco – sem o qual a vida para ele não valia a pena – “e não pelo encolhimento senil, que não é só dos velhos, é de todos os que defendem as suas posições, inclusive ideológicas, inclusive religiosas” (o grifo é meu).
Para Bernanos, dizia o artigo, o maior pecado sobre a terra era a avareza, sob todas as formas. “A avareza e o tédio danam o mundo.” “Dois ramos, enfim, do egoísmo”, acrescenta o autor do artigo.
Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!
Feliz Ano-Novo.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Calvin

 

Te esperei a vida toda

E então ele disse:
Hoje eu entendo. Tudo o que eu vivi, tudo o que eu passei. Talvez tenham sido só caminhos. Porque na verdade eu sonhei com você a vida toda. Seu jeito de falar, sua risada, suas fragilidades e chatices, seu jeito desastrado. Com o seu rosto, eu não sonhei. Não saberia te imaginar porque nunca vi nada nem parecido. E as sardas nunca estariam nos planos. Foram muitos anos, muitas mulheres, muitos erros e alguns acertos. E então você apareceu. Não tenho nem idade nem tempo para fazer jogos ou para te dizer meias palavras, deixar coisas no ar. Não. Eu te esperei a vida toda. E agora eu estou aqui, você está aqui. E estou, enfim, segurando a mão que durante anos me contentei em observar nos sonhos. E só poder tocar em você já fez a vida valer a pena. Não me ache perigoso, nem um babaca. É que eu sei que ninguém encontra a pessoa que idealizou sem nenhum limite do concreto. Imagine então a sorte do cara que encontrou ainda mais. Não estou dizendo tudo isso por você nem por mim. Estou dizendo porque seria uma sacanagem com a vida não dizer. Eu enchi essa mulher de requisitos impossíveis, que nunca conviveriam juntos. E aí está você, num conjunto descombinado de qualidades encantadoras. Eu não espero nada. Te encontrar e te dizer tudo isso já foi tanto… Estou aqui, princesa. Vou sempre estar.
Ela continua procurando as palavras até hoje.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

O banho de música das 18 horas | Capítulo 9

Na manhã seguinte, o presidente Miruki e a secretária Asari tomavam o café da manhã juntos.
Embora a secretária estivesse vestindo um pijama, o presidente estava com roupas normais.
Vossa Excelência, eu tenho o conhecimento de que você deu uma escapada tarde da noite. Você não pode ter segredos comigo. Onde você foi?
Não, eu apenas, bem…
Não adianta tentar esconder coisas de mim. Um dos meus homens me disse que te avistou perto do setor Alishia.
Você está dizendo que alguém me viu lá? — o presidente falou, seus olhos se abrindo.
O que foi capaz de fazer você se levantar da cama, no meio da noite, e ter todo esse trabalho?
O quê? Oh, não era nada de especial… Parece que você está confundindo as coisas, e eu não gosto nada disso. Ontem nós descobrimos algo no setor Alishia, não foi mesmo?
Descobrimos o quê?
Bem, foi mais ou menos… Hum, o que foi mesmo?… Ontem nós fomos checar o setor Alishia, mas só pudemos ver até a nona sala. Teve toda aquela confusão quando você tentou forçosamente abrir a porta da décima sala, mais um pouco e tudo explodiria. Mas não ser capaz de entrar nessas salas era uma evidência desagradável de que existem lugares nesta nação onde meu poder absoluto não se estende. Com esse fato incômodo em mente, fui investigar se não havia mesmo nenhuma forma de abrir a porta.
Nossa, você tem estado tão corajoso, não é? Então você conseguiu entrar na décima sala, como esperava?
Não, eu falhei.
Você deveria ter previsto que isso aconteceria. De todo modo, por que você ficou no setor Alishia até o amanhecer?
O que você está insinuando? Eu estava apenas dando o meu melhor para abrir a porta.
Sim, aposto que sim. Apenas não sei qual porta você estava tentando abrir.
Madame Asari virou-se em direção ao papagaio azul, em um poleiro de metal, e segurou um pedaço de carne em seu garfo.
Com uma velocidade cegante, o pássaro faminto abriu seu bico e abocanhou a carne. Mas um instante depois pôde-se ouvir o som de algo caindo no chão. O papagaio esfomeado deixou cair o precioso pedaço de carne no piso, sem hesitar.
Ei, Pinto — o presidente chamou o pássaro pelo seu nome. — Você não está se sentindo bem?
Madame Asari respondeu no lugar do papagaio. — Pinto está plenamente saudável. Ele está apenas dizendo que a carne nojenta dos androides não é de seu agrado.
Você disse carne de androide?
O presidente Miruki saltou de sua cadeira, atordoado. Ele voltou seu olhar para os pés de madame Asari, onde estava uma grande pilha de pedaços amontoados de carne vermelha, em um grande prato de metal. O homem revelou um olhar perturbado ao notar uma trilha de gotas de sangue, que iam do prato até algum lugar atrás das cortinas internas.
Não posso acreditar! Você foi mesmo capaz?!
Miruki correu freneticamente até as cortinas e, no lado mais distante, descobriu uma pilha de máquinas complexas desmanteladas. Na beira da pilha havia o lindo rosto de uma mulher. Apesar de estar um pouco sem cor, ainda mantinha um sorriso brilhante, como se nada houvesse acontecido. Vendo isso, o presidente logo irrompeu em raiva, como um vulcão em erupção.
P-por que você a matou? Por que matou Annette? Ah, sim, você devia estar com inveja da beleza dela, sua vadia! Eu lhe dei a mais estrita ordem de não matar androides, e você desobedeceu sem hesitar. Secretária ou não, você nunca será perdoada por isso!
Madame Asari permaneceu sentada, tranquila, bebendo de seu copo. E então falou:
Você pode sossegar? Eu fiz isso visando os interesses da nação. Pode imaginar que caos seria se a população descobrisse que o seu presidente estava obcecado por um androide, ainda mais em um momento tão importante quanto este? Como eu disse antes, agora é a hora de tomar medidas emergenciais. Estou certa de que Vossa Sábia-Excelência entende isso.
O presidente não refutou os argumentos da madame Asari. Ele apenas se virou e resmungou em voz baixa para si mesmo.
Eu sou apenas um prisioneiro; em uma cela sem grades, mas ainda assim um prisioneiro. Agora estou condenado a eternidade sem uma bela mulher…
Madame Asari fingiu não ouvir os resmungos do presidente. Casualmente ela o fez se sentar à mesa mais uma vez, como antes, e com paciência começou a discutir estratégias nacionais.
A partir de hoje, presidente Miruki, nossa nação começará a realizar manobras de emergência.
Manobras de emergência, de fato. E o que você sugere?
Existe um suprimento ilimitado de ouro enterrado debaixo da nossa nação. Nós iremos minerar aquilo tudo em uma semana.
Quem vai minerar? Minerar tudo aquilo em apenas uma semana… Para começar, nós não temos pessoas suficientes, nem mesmo a quantia necessária de máquinas.
Isso não é desculpa. Apenas deixe comigo.
Deixar com você? — o presidente fungou com desdém. — É óbvio que o seu plano irá falhar. Se o professor Kohak ainda estivesse vivo, estou certo de que ele conseguiria realizá-lo de um jeito magnífico. Você pode ser uma política, mas não é nenhuma cientista.
Cientistas só são necessários no começo. Quando as coisas já se desenvolveram até certo ponto, a execução é o que se torna importante. E executar uma grande empreitada como essa exige ninguém menos do que políticos. A ciência nunca poderá governar, sempre será governada.
Eu costumava pensar da mesma maneira, até ontem. Depois de encontrar Annette, a androide, comecei a duvidar se era verdade. Oh, linda Annette… Nas profundezas da décima sala do setor Alishia, talvez haja centenas, milhares de androides ainda mais belas do que ela. O poder da ciência é incomparável!
Ouro reina sobre a ciência. Irei desenterrar o ouro abaixo de nós em uma semana e reconstruir esta nação com ele: estradas de ouro, salas de ouro, tetos de ouro, paredes de ouro; tudo de ouro. Que plano fantástico, você não acha? Nossa nação irá dominar o mundo com o ouro!
Dominar o mundo? Para isso é preciso de ferro, não de ouro. Ouro não pode vencer uma guerra.
Eu discordo, com ouro suficiente haverá inúmeros países se oferecendo para defender nossa nação com ferro. Tudo o que é preciso é convidar o primeiro-ministro de um país a tentar começar uma guerra conosco e prometer-lhe um quarto construído com ouro puro, e então guerras se tornarão coisas do passado.
Duvido que seja tão simples. Estou longe de ser tão otimista quanto você.
No meio da conversa, eles ouviram um som delicado à distância — a melodia que já ouviram muitas vezes. O banho de música havia começado.
Banho de música? É o banho de música das 18 horas — o presidente Miruki disse e piscou seus olhos, surpreso. — Espere um minuto. Ainda são 8 horas. O banho de música começou no horário errado. O que o responsável por isso está fazendo?
Madame Asari, sem medo, falou com o presidente como se estivesse dando bronca em uma criança pequena.
Sim, é o banho de música. Eu mudei suas regras, e começarão a valer a partir de hoje. A partir de agora, ocorrerá a qualquer hora, doze vezes ao dia. Com isso, a eficiência das pessoas será multiplicada por doze. Dormir e comer não é mais necessário. Após o banho de música, as pessoas estarão dispostas o suficiente para trabalhar por uma hora e meia sem descanso, assim como cavalos de tração. Depois disso, nós simplesmente lhes daremos um outro banho de música.
Isso é muito imprudente. O professor Kohak nunca tentaria fazer algo assim.
O professor Kohak era ardiloso por natureza, e foi por isso que ele, de propósito, limitou o banho de música para apenas uma vez ao dia. Caso contrário, ele seria forçado a trabalhar o dia inteiro. Eu já havia notado isso há um bom tempo. Apenas um verdadeiro político pode aumentar a produtividade em qualquer sentido real. É necessário políticos no controle para trazer à tona o verdadeiro poder da ciência.
Naquele momento, o presidente Miruki ouviu claramente seus cidadãos arfarem em angústia, o som aumentava cada vez mais conforme o banho de música progredia.

Juza Unno, in A última transmissão

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Maria Gadú | Ne me quitte pas

Coisas de graça

O anúncio dizia: “Amanhã você não vai pagar o seu cafezinho”.
Certamente era um café que se inaugurava, procurando cativar o público. Depois do famigerado Petit Prince de Saint-Exupéry, cativar tornou-se palavra de consumo geral. Como o cafezinho.
Pois não era. A casa fechava-se e, a título de despedida sentimental, não cobraria o cafezinho que fora objeto do seu comércio durante trinta anos.
O frequentador suspirou:
Há vinte anos que tomo café nesta casa, e logo quando ela vai acabar é que institui o fornecimento gratuito.
Acrescentou:
Não é pelo preço do cafezinho, que eu sempre paguei sem sacrifício, e continuaria a pagar, se a casa continuasse. É pela espécie de sonho acordado que isso me provoca, sonho que dura um momento, e se esfarela: as coisas de graça. Elas só ficam sendo de graça na hora em que deixam de ser coisas.
Mas vem cá, você queria que tudo fosse de graça a vida inteira? — perguntou o amigo.
Queria. Por que não? Se este cafezinho me é servido de graça neste instante, e se eu voltar daqui a cinco minutos será servido outra vez de graça, e mais cinco minutos depois, e mais cinco e mais cinco… até eu ficar entupido de café e bradar: chega, não quero mais! por que não posso pensar que uma sociedade bem organizada serviria tudo a todos, a troco de sorriso?
O outro ia retrucar com as leis da economia, as lições do dr. Gudin, o bom senso etc., mas o rêveur éveillé não lhe deu folga:
Saio daqui mal-acostumado, vou ao Nino’s, janto uns camarões, retiro-me despreocupado, pois já não se pagam camarões no Brasil. Nisso corre o garçom ao meu encalço: “Doutor, o senhor se esqueceu da nota!”. “Que nota?”, respondo. “Eu sorri para você e para o restaurante, não é esse o pagamento?” Ele abana a cabeça, desolado: “Continuamos cobrando em cruzeiros, doutor. E olhe que nos hotéis do seu Tjurs já se calcula em dólar”. Veja no que dá a ilusão do cafezinho grátis. No entanto, ao ler o anúncio, eu já estava inclinado a não cobrar de ninguém os meus serviços.
E mudar-se para o hospício.
Todos se mudariam para o hospício, isto é, não haveria hospício, pois ninguém mais ia enlouquecer por falta ou excesso de dinheiro. Você chama a isso de sociedade utópica, eu chamo simplesmente de sociedade, nome que anda falsificadíssimo. Societas generis humani, para gastar o meu Cícero, que nem de graça cai mais no vestibular. Repare que não estou pedindo nada de graça no sentido comum, de alguém dar a outrem um par de sapatos para sentir-se superior e tirar diploma de generoso. O que eu proponho (proponho é modo de dizer, ninguém me escutaria se eu propusesse isso ao Ministério do Planejamento ou aos fabricantes de geleia) é dar de graça as coisas, retirando valor às coisas, e valorizando o ato de se desfazer delas. Todos passariam a oferecer serviços e bens, de que todos se utilizariam sem recorrer a financiamento, pé-de-meia, desfalque, insônia, úlcera duodenal, enfarte, assalto, homicídio etc. O trabalho deixaria de ser motivo de injustiça, e a produção deixaria de ser causa de guerra. No começo, a gente faria cara feia, depois se acostumava com esse esporte de oferecer sem cobrar, já que a outra parte, de receber sem pagar, não causaria a menor dificuldade. Como isto não é possível agora, e suspeito que não o será nos anos que possivelmente ainda terei de vida, que é que vou fazer com este cafezinho grátis de última hora?
Beber, uai.
Solução de mineiro, está se vendo. Nada disso. Trouxe esta garrafinha e vou derramar nela o cafezinho, para guardar como lembrança. É o sinal de um mundo como poderia ser e não é. Pode beber o seu, que o meu ficará guardado no aparador lá de casa. Levei trinta anos para conquistar este troféu. O mundo não é de graça porque não quer. Ou por burrice.
Disse, derramou, e saiu, portando com unção a garrafinha de café gratuito.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

Alerta de sobrevivência

Arte: autor desconhecido

Darandina

De manhã, todos os gatos nítidos nas pelagens, e eu em serviço formal, mas, contra o devido, cá fora do portão, à espera do menino com os jornais, e eis que, saindo, passa, por mim e duas ou três pessoas que perto e ali mais ou menos ocasionais se achavam, aquele senhor, exato, rápido, podendo-se dizer que provisoriamente impoluto. E, pronto, refez-se no mundo o mito, dito que desataram a dar-se, para nós, urbanos, os portentosos fatos, enchendo explodidamente o dia: de chinfrim, afã e lufa-lufa.
— “Ô, seô!...” — foi o grito; senão se, de guerra: — “Ugh, sioux!...” — também cabendo ser, por meu testemunho, já que com concentrada ou distraída mente me encontrava, a repassar os próprios, íntimos quiproquós, que a matéria da vida são. Mas: — “Oooh...” — e o senhor tão bem passante algum quieto transeunte apunhalara?! Isso em relance e instante visvi — vislumbrou-se-me. Não. Que só o que tinha sido — vice-vi mais —: pouco certeiro e indiscreto no golpe, um afanador de carteiras. Desde o qual, porém, irremediável, ia-se o vagar interior da gente, roto, de imediato, para durante contínuos episódios.
— “Sujeito de trato, tão trajado...” — estranhava, surgindo do carro, dentr’onde até então cochilara, o chofer do dr. Bilôlo. — “A caneta-tinteiro foi que ele abafou, do outro, da lapela...” — depunha o menino dos jornais, só no vivo da ocasião aparecendo. Perseguido, entretanto, o homem corria que luzia, no diante do pé, varava pela praça, dava que dava. — “Pega!” Ora, quase no meio da praça, instalava-se uma das palmeiras-reais, talvez a maior, mesmo majestosa. Ora, ora, o homem, vestido correto como estava, nela não esbarrou, mas, sem nem se livrar dos sapatos, atirou-se-lhe abraçado, e grimpava-a, voraz, expedito arriba, ao incrível, ascensionalíssimo. — Uma palmeira é uma palmeira ou uma palmeira ou uma palmeira? — inquiriria um filósofo. Nosso homem, ignaro, escalara dela já o fim, e fino. Susteve-se.
Esta! — me mexi, repiscados os olhos, em tento por me readquirir. Pois o nosso homem se fora, a prumo, a pino, com donaires de pica-pau e nenhum deslize, e ao topo se encarapitava, safado, sabiá, no páramo empíreo. Paravam os de seu perséquito, não menos que eu surpresos, detidos, aqui em nível térreo, ante a infinita palmeira — muralhavaz. O céu só safira. No chão, já nem se contando o crescer do ajuntamento, dado que, de toda a circunferência, acudiam pessoas e povo, que na praça se emagotava. Tanto nunca pensei que uma multidão se gerasse, de graça, assim e instantânea.
Nosso homem, diga-se que ostentoso, em sua altura inopinada, floria e frutificava: nosso não era o nosso homem. — “Tem arte...” — e quem o julgava já não sendo o jornaleiro, mas o capelão da Casa, quase que com regozijo. Os outros, acolá, de infra a supra, empinavam insultos, clamando do demo e aqui-da-polícia, até se perguntava por arma de fogo. Além, porém, muito a seu grado, ele imitativamente aleluiasse, garrida a voz, tonifluente; porque mirável era que tanto se fizesse ouvir, tudo apesar-de. Discursava sobre canetas-tinteiro? Um camelô, portanto, atrevido na propaganda das ditas e estilógrafos. Em local de má escolha, contudo, pensei; se é que, por descaridosa, não me escandalizasse ainda a ideia de vir alguém produzir acrobacias e dislativas peloticas, dessas, justo em frente de nosso Instituto. Extremamente de arrojo era o sucesso, em todo o caso, e eu humano; andei ver o reclamista.
Chamavam-me, porém, nesse entremenos, e apenas o Adalgiso, sisudo ele, o de sempre, só que me pegando pelo braço. Puxado e puxando, corre que apressei-me, mesmo assim, pela praça, para o foco do sumo, central transtornamento. Com estarmos ambos de avental, davam-nos alguma irregular passagem. — “Como foi que fugiu?” — todo o mundo perguntando, do populacho, que nunca é muito tolo por muito tempo. Tive então enfim de entender, ai-me, mísero. — “Como o recapturar?” Pois éramos, o Adalgiso e eu, os internos de plantão, no dia infausto’ fantástico.
Vindo o que o Adalgiso, com de-curtas, não urgira em cochichar-me: nosso homem não era nosso hóspede. Instantes antes, espontâneo, só, dera ali o ar de sua desgraça. — “Aspecto e facies nada anormais, mesmo a forma e conteúdo da elocução a princípio denotando fundo mental razoável...” Grave, grave, o caso. Premia-nos a multidão, e estava-se na área de baixa pressão do ciclone. — “Disse que era são, mas que, vendo a humanidade já enlouquecida, e em véspera de mais tresloucar-se, inventara a decisão de se internar, voluntário: assim, quando a coisa se varresse de infernal a pior, estaria já garantido ali, com lugar, tratamento e defesa, que, à maioria, cá fora, viriam a fazer falta...” — e o Adalgiso, a seguir, nem se culpava de venial descuido, quando no ir querer preencher-lhe a ficha.
— “Você se espanta?” — esquivei-me. De fato, o homem exagerara somente uma teoria antiga: a do professor Dartanhã, que, mesmo a nós, seus alunos, declarava-nos em quarenta-por-cento casos típicos, larvados; e, ainda, dos restantes, outra boa parte, apenas de mais puxado diagnóstico... Mas o Adalgiso, mas ao meu estarrecido ouvido: — “Sabe quem é? Deu nome e cargo. Sandoval o reconheceu. É o Secretário das Finanças Públicas...” — assim baixinho, e choco, o Adalgiso.
Ao que, quase de propósito, a turba calou-se e enervou-nos, à estupefatura. Desolávamo-nos de mais acima olhar, aonde evidentemente o céu era um desprezo de alto, o azul antepassado. De qualquer modo, porém, o homem, aquém, em torre de marfim, entre as verdes, hirtas palmas, e ao cabo de sua diligência de veloz como um foguete, realizava-se, comensurado com o absurdo. Sei-me atreito a vertigens. E quem não, então, sob e perante aquilo, para nós um deu-nos-sacuda, de arrepiar perucas, semelhante e rigorosa coisa? Mas um super-humano ato pessoal, transe hiperbólico, incidente hercúleo. — “Sandoval vai chamar o dr. Diretor, a Polícia, o Palácio de Governo...” — assegurou o Adalgiso.
Uma palmeira não é uma mangueira, em sua frondosura, sequer uma aroeira, quanto a condições de fixibilidade e conforto, acontece-que. Que modo e como, então, aguentava de reter-se tanto ali, estadista ou não, são ou doente? Ele lá não estava desequilibrado; ao contrário. O repimpado, no apogeu, e rematado velhaco, além de dar em doido, sem fazer por quando. A única coisa que fazia era sombra. Pois, no justo momento, gritou, introduziu-se a delirar, ele mais em si, satisfatível: — “Eu nunca me entendi por gente!...” — de nós desdenhava. Pausou e repetiu. Daí e mais: — “Vocês me sabem é de mentira!” Respondendo-me? Riu, ri, riu-se, rimo-nos. O povo ria.
Adalgiso, não: — “Ia adivinhar? Não entendo de política.” — inconcluía. — “Excitação maníaca, estado demencial... Mania aguda, delirante... E o contraste não é tudo, para se acertarem os sintomas?” — ele, contra si consigo, opunha. Psiu, porém, quem, assado e assim, a mundos e resmungos, sua total presença anunciava? Vê-se que o dr. Diretor: que, chegando, sobrechegado. Para arredar caminho, por império, os da Polícia — tiras, beleguins, guardas, delegado, comissário — para prevenir desordem. Também, cândidos, com o dr. Diretor, os enfermeiros, padioleiros, Sandoval, o Capelão, o dr. Enéias e o dr. Bilôlo. Traziam a camisa-de-força. Fitava-se o nosso homem empalmeirado. E o dr. Diretor, dono: — “Há de ser nada!”
Contestando-o, diametral, o professor Dartanhã, de contrária banda aportado: — “Psicose paranóide hebefrênica, dementia praecox, se vejo claro!” —; e não só especulativo-teorético, mas por picuinha, tanto o outro e ele se ojerizavam; além de que rivais, coincidentemente, se bem que calvo e não calvo. Toante que o dr. Diretor ripostou, incientífico, em atitude de autoridade: — “Sabe quem aquele cavalheiro é?” — e o título declinou, voz vedada; ouvindo-o, do povo, mesmo assim, alguns, os adjacentes sagazes. Emendou o mote o professor Dartanhã: — “... mas transitória perturbação, a qual, a capacidade civil, em nada lhe deixará afetada...” — versando o de intoxicação-ou-infecção, a ponto falara. Mesmo um sábio se engana quanto ao em que crê —; cremos, nós outros, que nossos límpidos óculos limpávamos. Assim cada qual um asno prepalatino, ou, melhor, apud o vulgo: pessoa bestificada. E, pois que há razões e rasões, os padioleiros não depunham no chão a padiola.
Porque, o nosso, o excelso homem, regritou: — “Viver é impossível!...” — um slogan; e, sempre que ele se prometia para falar, conseguia-se, cá, o multitudinal silêncio — das pessoas de milhares. Nem esquecera-lhe o elemento mímico: fez gesto — de que empunhasse um guarda-chuva. Ameaçava o quê a quem, com seu estro catastrófico? — “Viver é impossível!” — o dito declarado assim, tão empírico e anermenêutico, só através do egoísmo da lógica. Mas, menos como um galhofeiro estapafúrdio, ou alucinado burlão, pendo a ouvir, antes em leal tom e generoso. E era um revelar em favor de todos, instruía-nos de verdadeira verdade. A nós — substantes seres sub-aéreos — de cujo meio ele a si mesmo se raptara. Fato, fato, a vida se dizia, em si, impossível. Já assim me pareceu. Então, ingente, universalmente, era preciso, sem cessar, um milagre; que é o que sempre há, a fundo, de fato. De mim, não pude negar-lhe, incerta, a simpatia intelectual, a ele, abstrato — vitorioso ao anular-se — chegado ao píncaro de um axioma.
Sete peritos, oficiais pares de olhos, do espaço inferior o estudavam. — “Que ver: que fazer?” — agora. Pois o dr. Diretor comandava-nos em conselho, aqui, onde, prestimosa para nós, dilatava a Polícia, a proêmios de casse-têtes e blasfemos rogos, uma clareira precária. Para embaraços nossos, entretanto, portava-se árduo o ilustre homem, que ora encarnava a alma de tudo: inacessível. E — portanto — imedicável. Havia e haja que reduzi-lo a baixar, valha que por condigno meio desguindá-lo. Apenas, não estando à mão de colher, nem sendo de se atrair com afagos e morangos. — “Fazer o quê?” — unânimes, ora tardávamos em atinar. Com o que o dr. Diretor, como quem saca e desfecha, prometeu: — “Vêm aí os bombeiros!” Ponto. Depunham os padioleiros no chão a padiola.
O que vinha, era a vaia. Que não em nós, bem felizmente, mas no nosso guardião do erário. Ele estava na ponta. Conforme quanto, rápida, no chacoalhar da massa, difundira-se a identificação do herói. Donde, de início, de bufos avulsos gritos, daqui, aqui, um que outro, comicamente, a atoarda pronta borbotava. E bradou aos céus, formidável, una, a versão voxpopular: — “Demagogo! Demagogo!...” — avessa ressonância. —
Demagôoogo!...” — a belo e bom, safa, santos meus, que corrimaça. O ultravociferado halali, a extrair-se de imensidão: apinhada, em pé, impiedosa — aferventada ao calor do dia de março. Tenho que mesmo uns de nós, e eu, no conjunto conclamávamos. Sandoval, certo, sim; ele, na vida, pela primeira vez, ainda que em esboço, a revoltar-se. Reprovando-nos o professor Dartanhã: — “Não tem um político direito às suas moléstias mentais?” — magistralmente enfadado. Tão certo que até o dr. Diretor em seus créditos e respeitos vacilasse — psiquiatrista. Vendo-se, via-se que o nosso pobre homem perdia a partida, agora, desde que não conseguindo juntar o prestígio ao fastígio. Demagogo...
Conseguiu-o — de truz, tredo. Em suave e súbito, deu-se que deu que se mexera, a marombar, e por causas. Daí, deixando cair... um sapato! Perfeito, um pé de sapato — não mais — e tão condescendentemente. Mas o que era o teatral golpe, menos amedrontador que de efeito burlesco vasto. Claro que no vivo popular houve refluxos e fluxos, quando a mera peça demitiu-se de lá, vindo ao chão, e gravitacional se exibiu no ar. Aquele homem: — “É um gênio!” — positivou o dr. Bilôlo. Porque o povo o sentia e aplaudia, danado de redobrado: — “Viva! Viva!...” — vibraram, reviraram. — “Um gênio!” — notando-se, elegiam-no, ofertavam-lhe oceânicas palmas. Por São Simeão! E sem dúvida o era, personagente, em sua sicofância, conforme confere e confirmava: com extraordinária acuidade de percepção e alto senso de oportunidade. Porque houve também o outro pé, que não menos se desabou, após pausa. Só que, para variar, este, reto, presto, se riscou — não parabolava. Eram uns sapatos amarelados. O nosso homem, em festival — autor, alcandorado, alvo: desta e elétrica aclamação, adequada.
Estragou-a a sirene dos bombeiros: que eis que vencendo a custo o acesso e despontando, com esses tintinábulos sons e estardalho. E ancoravam, isto é — rubro de lagosta ou arrebol — cujo carro. Para eles se ampliava lugar, estricto espaço de manobra; com sua forte nota belígera, colheram sobeja sobra dos aplausos. Aí já seu Comandante se entendendo com a Polícia e pois conosco, ora. Tinham seu segundo, comprido caminhão, que se fazia base da escada: andante apetrecho, para o empreendimento, desdobrável altaneiramente, essencial, muito máquina. Ia-se já agir. Manejando-se marciais tempos e movimentos, à corneta e apito dados. Começou-se. Ante tanto, que diria o nosso paciente — exposto cínico insigne?
Disse. — “O feio está ficando coisa...” — entendendo de nossos planos, vivaldamente constatava; e nisso indocilizava-se, com mímica defensiva, arguto além de alienado. A solução parecendo inconvir-lhe. — “Nada de cavalo-de-pau!” — vendo-se que de fresco humor e troiano, suspeitoso de Palas Atenéia. E: — “Querem comer-me ainda verde?!” — o que, por mero mimético e sintomático, apenas, não destoava nem jubilava. À arte que, mesmo escada à parte, os bons bombeiros, muito homens seriam para de assalto tomar a palmeira-real e superá-la: o uso avulso de um deles, tão bem em técnicas, sabe-se lá, quanto um antilhano ou canaca. A poder de cordas, ganchos, espeques, pedais postiços e poiais fincáveis. Houve nem mais, das grandes expectações, a conversa entrecortada. O silêncio timbrava-se.
Isto é, o homem, o prócer, protestou. — “Pára!...” Gesticulou que ia protestar mais. — “Só morto me arriam, me apeiam!” — e não à-toa, augural, tinha ele o verbo bem adestrado. Hesitou-se, de cá para cá, hesitávamos. — “Se vierem, me vou, eu... Eu me vomito daqui!...” — pronunciou. Declamara em demorado, quase quite eufórico, enquanto que nas viçosas palmas se retouçando, desvárias vezes a menear-se, oscilante por um fio. À coaxa acrescentou: — “Cão que ladra, não é mudo...” — e já que só faltava mesmo o triz, para passar-se do aviso à lástima. Parecia prender-se apenas pelos joelhos, a qualquer simples e insuportável finura: sua palma, sua alma. Ah... e quase, quasinho... quasezinho, quase... Era de horrir-me o pêlo. Nanja. — “É de circo...” — alguém sus sussurrou-me, o dr. Enéias ou Sandoval. O homem tudo podia, a gente sem certeza disso. Seja se com simulagens e fictâncias? Seja se capaz de elidir-se, largar-se e se levar do diabo. No finório, descabelado propósito, perpendurou-se um pouco mais, resoluto rematado. A morte tocando, paralela conosco — seu tênue tambor taquigráfico. Deu-nos a tensão pânica: gelou-se-me. Já aí, ferozes, em favor do homem: — “Não! Não!” — a gritamulta — “Não! Não! Não!” — tumultroada. A praça reclamava, clamava. Tinha-se de protelar. Ou produzir um suicídio reflexivo — e o desmoronamento do problema? O dr. Diretor citava Empedocles. Foi o em que os chefes terrestres concordaram: apertava a urgência de não se fazer nada. Das operações de salvamento, interrompeu-se o primeiro ensaio. O homem parara de balançar-se — irrealmente na ponta da situação. Ele dependia dele, ele, dele, ele, sujeito. Ou de outro qualquer evento, o qual, imediatamente, e muito aliás, seguiu-se.
De um — dois. Despontando, com o Chefe-de-Polícia, o Chefe-de-Gabinete do Secretário. Passou-se-lhe um binóculo e ele enfiava olho, palmeira-real avante-acima, detendo-se, no titular. Para com respeito humano renegá-lo: — “Não o estou bem reconhecendo...” Entre, porém, o que com mais decoro lhe conviesse, optava pela solicitude, pálido. Tomava o ar um ar de antecâmara, tudo ali aumentava de grave. A família já fora avisada? Não, e melhor, nada: família vexa e vencilha. Querendo-se conquanto as verticais providências, o que ficava por nossa má-arte. Tinha-se de parlamentar com o demente, em não havendo outro meio nem termo. Falar para fazer momento; era o caso. E, em menos desniveladas relações, como entrosar-se, físico, o diálogo?
Se era preciso um palanque? — disse-se. Com que, então sem mais, já aparecia — o cônico cartucho ou cumbuca — um alto-falante dos bombeiros. O dr. Diretor ia razoar a causa: penetrar em o labirinto de um espírito, e — a marretadas do intelecto — baqueá-lo, com doutoridade. Toques, crebros, curtos, de sirene, o incerto silêncio geraram. O dr. Diretor, mestre do urso e da dança empunhava o preto cornetão, embocava-o. Visava-o para o alto, circense, e nele trombeteiro soprava. — “Excelência!...” — começou, sutil, persuasivo; mal. — “Excelência...” — e tenha-se, mesmo, que com tresincondigna mesura. Sua calva foi que se luziu, de metalóide ou metal; o dr. Diretor gordo e baixo. Infundado, o povo o apupou: — “Vergonha, velho!” — e — “larga, larga!...” Deste modo, só estorva, a leiga opinião, quaisquer clérigas ardilidades.
Todo abdicativo, o dr. Diretor, perdido o comando do tom, cuspiu e se enxaguava de suor, soltado da boca o instrumento. Mas não passou o megafone ao professor Dartanhã, o que claro. Nem a Sandoval, prestante, nem ao Adalgiso, a cujos lábios. Nem ao dr. Bilôlo, que o querendo, nem ao dr. Enéias, sem voz usual. A quem, então pois? A mim, mi, me, se vos parece; mas só enfim. Temi quando obedeci, e muito siso havia mister. Já o dr. Diretor me ditava:
— “Amigo, vamos fazer-lhe um favor, queremos cordialmente ajudá-lo...” — produzi, pelo conduto; e houve eco. — “Favor? De baixo para cima?...” — veio a resposta, assaz sonora. Estava ele em fase de aguda agulha. Havia que o questionar. E, a novo mando do dr. Diretor, chamei-o, minha boca, com intimativa: — “Psiu! Ei! Escute! Olhe!...” — altiloqüei. — “Vou falir de bens?” — ele altitonava. Deixava que eu prosseguisse; a sua devendo de ser uma compreensão entediada. Se lhe de deveres e afetos falei! — “O amor é uma estupefação...” — respondeu-me. (Aplausos.) Para tanto tinha poder: de fazer, vezes, um oah-oa-oah! — mão na boca — cavernoso. Intimou ainda: — “Tenha-se paciência!...”
E: — “Hem? Quem? Hem?” — fez, pessoalmente, o dr. Diretor, que o aparelho, sôfrego, me arrebatara. — “Você, eu, e os neutros...” — retrucou o homem; naquele elevado incongruir, sua imaginação não se entorpecia. De nada, esse ineficaz paralaparacaparlar, razões de quiquiriqui, a boa nossa verbosia; a não ser a atiçar-lhe mais a mioleira, para uma verve endiabrada. Desistiu-se, vem que bem ou mal, do que era querer-se amimar a murros um porco-espinho. Do qual, de tão de cima, ainda se ouviu, a final, pérfida pergunta: — “Foram às últimas hipóteses?”
Não. Restava o que se inesperava, dando-se como sucesso de ipso-facto. Chegava... O quê? O que crer? O próprio! O vero e são, existente, Secretário das Finanças Públicas — ipso. Posto que bem de terra surgia, e desembarafustadamente. Opresso. Opaco. Abraçava-nos, a cada um de nós se dava, e aliás o adulávamos, reconhecentemente, como ao Pródigo o pai ou o cão a Ulisses. Quis falar, voz inarmônica; apontou causas; temia um sósia? Subiam-no ao carro dos bombeiros, e, aprumado, primeiro perfez um giro sobre si, em tablado, completo, adequando-se à expositura. O público lhe devia. — “Concidadãos!” — ponta dos pés. — “Eu estou aqui, vós me vêdes. Eu não sou aquele! Suspeito exploração, calúnia, embuste, de inimigos e adversários...” De rouco, à força, calou-se, não se sabe se mais com bens ou que males. O outro, já agora ex-pseudo, destituído, escutou-o com ociosidade. De seu conquistado poleiro, não parava de dizer que “sim”, acenado.
Era meio-dia em mármore. Em que curiosamente não se tinha fome nem sede, de demais coisas qual que me lembrava. Súbita voz: — “Vi a Quimera!” — bradou o homem, importuno, impolido; irara-se. E quem e que era? Por ora, agora, ninguém, nulo, joão, nada, sacripante, qüídam. Desconsiderando a moral elementar, como a conceito relativo: o que provou, por sinais muito claros. Desadorava. Todavia, ao jeito jocoso, fazia-se de castelo-no-ar. Ou era pelo épico epidérmico? Mostrou — o que havia entre a pele e a camisa.
Pois, de repente, sem espera, enquanto o outro perorava, ele se despia. Deu-se à luz, o fato sendo, pingo por pingo. Sobre nós, sucessivos, esvoaçantes — paletó, cueca, calças — tudo a bandeiras despregadas. Retombando-lhe a camisa, por fim, panda, aérea, aeriforme, alva. E feito o forró! — foi — balbúrdias. Na multidão havia mulheres, velhas, moças, gritos, mouxe-trouxe, e trouxe-mouxe, desmaios. Era, no levantar os olhos, e o desrespeitável público assistia — a ele in puris naturalibus. De quase alvura enxuta de aipim, na verde coma e fronde da palmeira, um lídimo desenroupado. Sabia que estava a transparecer, apalpava seus membros corporais. — “O síndrome...” — o Adalgiso observou; de novo nos confusionávamos. — “Síndrome exofrênico de Bleuler...” — pausado, exarou o Adalgiso. Simplificava-se o homem em escândalo e emblema, e franciscano magnifício, à força de sumo contraste. Mas se repousava, já de humor benigno, em condições de primitividade.
Com o que — e tanta folia — em meio ao acrisolado calor, suavam e zangavam-se as autoridades. Não se podendo com o desordeiro, tão subversor e anônimo? Que havia que iterar, decidiram, confabulados: arcar com os cornos do caso. Tudo se pôs em movimento, troada a ordem outra vez, breve e bélica, à fanfarra — para o cometimento dos bombeiros. Nosso rancho e adro, agora de uma largura, rodeado de cordas e polícias; já ali se mexendo os jornalistas, repórteres e fotógrafos, um punhado; e filmavam.
O homem, porém, atento, além de persistir em seus altos intentos, guisava-se também em trabalho muito ativo. Contara, decerto, com isso, de maquinar-se-lhe outra esparrela. Tomou cautela. Contra-atacava. Atirou-se acima, mal e mais arriba, desde que tendo início o salvatério: contra a vontade, não o salvavam! Até; se até. A erguer-se das palmas movediças, até ao sumo vértice; ia já atingir o espique, ver e ver que com grande risco de precipitar-se. O exato era ter de falhar — com uma evidência de cachoeira. — “É hora!” — foi nossa interjeição golpeada; que, agora, o que se sentia é que era o contrário do sono. Irrespirava-se. Naquela porção de silêncios, avançavam os bombeiros, bravos? Solerte, o homem, ao último ponto, sacudiu-se, se balançava, eis: misantropóide gracioso, em artificioso equilíbrio, mas em seu eixo extraordinário. Disparatou mais: — “Minha natureza não pode dar saltos?...” — e, à pompa, ele primava.
Tanto é certo que também divertia-nos. Como se ainda carecendo de patentear otimismo, mostrava-nos insuspeitado estilo. Dandinava. Recomplicou-se, piorou, a pausa. Sua queda e morte, incertas, sobre nós pairando, altanadas. Mas, nem caindo e morrendo, dele ninguém nada entenderia. Estacavam, os bombeiros. Os bombeiros recuavam. E a alta escada desandou, desarquitetou-se, encaixava-se. Derrotadas as autoridades, de novo, diligentes, a repartir-se entre cuidados. Descobri, o que nos faltava. Ali, uma forte banda-de-música, briosa, à dobrada. Do alto daquela palmeira, um ser, só, nos contemplava.
Dizendo sorrindo o Capelão: — “Endemoninhado...”
Endemoninhados, sim, os estudantes, legião, que do sul da praça arrancavam? — de onde se haviam concentrado. Dado que roda-viveu um rebuliço, de estrépito, de assaltada. Em torrente, agora, empurravam passagem. Ideavam ser o homem um dos seus, errado ou certo, pelo que juravam resgatá-lo. Era um custo, a duro, contê-los, à estudantada. Traziam invisa bandeira, além de fervor hereditário. Embestavam. Entrariam em ato os cavalarianos, esquadrões rompentes, para a luta com o nobre e jovem povo. Carregavam? Pois, depois. Maior a atrapalhação. Tudo tentava evoluir, em tempo mais vertiginoso e revelado. Virou a ser que se pediam reforços, com vistas a pôr-se a praça esvaziada; o que vinha a ponto. Porém, também entoavam-se inacionais hinos, contagiando a multaturba. E paz?
De ás e roque e rei, atendeu a isso, trepado no carro dos bombeiros, o Secretário da Segurança e Justiça. Canoro, grosso, não gracejou: —“Rapazes! Sei que gostam de me ouvir. Prometo, tudo...” — e verdade. Do que, aplaudiram-no, em sarabando, de seus antecedentes se fiavam. Deu-se logo uma remissão, e alguma calma. Na confusão, pelo sim pelo não, escapou-se, aí, o das-Finanças-Públicas Secretário. Em fato, meio quebrado de emoções, ia-se para a vida privada.
Outra coisa nenhuma aconteceu. O homem, entre o que, entreaparecendo, se ajeitara, em berço, em seus palmares. Dormindo ou afrouxando de se segurar, se ele desse de torpefazer-se, e enfim, à espatifação, malhar abaixo? De como podendo manter-se rijo incontável tempo assim, aos circunstantes o professor Dartanhã explicava. Abusava de nossa paciência — um catatônico-hebefrênico — em estereotipia de atitude. — “A frechadas logo o depunham, entre os parecis e nhambiquaras...” — inteirou o dr. Bilôlo; contente de que a civilização prospere a solidariedade humana. Porque, sinceros, sensatos, por essa altura, também o dr. Diretor e o professor Dartanhã congraçavam-se.
Sugeriu-se nova expediência, da velha necessidade. Se, por treslouco, não condescendesse, a apelo de algum argumento próximo e discreto? Ele não ia ressabiar; conforme concordou, consultado. E a ação armou-se e alou-se: a escada exploradora — que nem que canguru, um, ou louva-a-deus enorme vermelho — se desdobrou, em engenhingonça, até a mais de meio caminho no vácuo. Subia-a o dr. Diretor, impertérrito ousadamente, ele que naturalizava-se heróico. Após, subia eu descendo, feito Dante atrás de Virgílio. Ajudavam-nos os bombeiros. Ao outro, lá, no galarim, dirigíamo-nos, sem a própria orientação no espaço. A de nós ainda muitos metros, atendia-nos, e ao nosso latim perdido. Por que, brusco, então, bradou por: –“Socorro!...” —?
Tão então outro tresbulício — e o mundo inferior estalava. Em fúria, arruaça e frenesis, ali a população, que a insanar-se e insanir-se, comandando-a seus mil motivos, numa alucinação de manicomiáveis. Depreque-se! — não fossem derrubar caminhão e escada. E tudo por causa do sobredito-cujo: como se tivesse ele instilado veneno nos reservatórios da cidade.
Reaparecendo o humano e estranho. O homem. Vejo que ele se vê, tive de notá-lo. E algo de terrível de repente se passava. Ele queria falar, mas a voz esmorecida; e embrulhou-se-lhe a fala. Estava em equilíbrio de razão: isto é, lúcido, nu, pendurado. Pior que lúcido, relucidado; com a cabeça comportada. Acordava! Seu acesso, pois, tivera termo, e, da idéia delirante, via-se dessonambulizado. Desintuído, desinfluído — se não se quando — soprado. Em doente consciência, apenas, detumescera-se, recuando ao real e autônomo, a seu mau pedaço de espaço e tempo, ao sem-fim do comedido. Aquele pobre homem descoroçoava. E tinha medo e tinha horror — de tão novamente humano. Teria o susto reminiscente — do que, recém, até ali, pudera fazer, com perigo e preço, em descompasso, sua inteligência em calmaria. Sendo agora para desempenhar-se, de um momento para nenhum outro. Tremi, eu, comiserável. Vertia-se, caía? Tiritávamos. E era o impasse da mágica. É que ele estava em si; e pensava. Penava — de vexame e acrofobia. Lá, ínfima, louca, em mar, a multidão: infernal, ululava.
Daí, como sair-se, do lance, desmanchado o firme burgo? Entendi-o. Não tinha rosto com que aparecer, nem roupas — bufão, truão, tranca — para enfrentar as razões finais. Ele hesitava, electrochocado. Preferiria, então, não salvar-se? Ao drama no catafalco, emborcava-se a taça da altura. Um homem é, antes de tudo, irreversível. Todo pontilhado na esfera de dúvida, propunha-se em outra e imensurável distância, de milhões e trilhões de palmeiras. Desprojetava-se, coitado, e tentava agarrar-se, inapto, à Razão Absoluta? Adivinhava isso o desvairar da multidão espaventosa — enlouquecida. Contra ele, que, de algum modo, de alguma maravilhosa continuação, de repente nos frustrava. Portanto, em baixo, alto bramiam. Feros, ferozes. Ele estava são. Vesânicos, queriam linchá-lo.
Aquele homem apiedava diferentemente — de fora da província humana. A precisão de viver vencia-o. Agora, de gambá num atordoamento, requeria nossa ajuda. Em fácil pressa atuavam os bombeiros, atirando-se a reaparecê-lo e retrazê-lo — prestidigitavam-no. Rebaixavam-no, com tábuas, cordas e peças, e, com seus outros meios apocatastáticos. Mas estava salvo. Já, pois. Isto e assim. Iria o povo destruí-lo?
Ainda não concluindo. Antes, ainda na escada, no descendimento, ele mirou, melhor, a multidão, deogenésica, diogenista. Vindo o quê, de qual cabeça, o caso que já não se esperava. Deu-nos outra cor. Pois, tornavam a endoidá-lo? Apenas proclamou: — “Viva a luta! Viva a Liberdade!” — nu, adão, nado, psiquiartista. Frenéticos, o ovacionaram, às dezenas de milhares se abalavam. Acenou, e chegou em baixo, incólume. Apanhou então a alma de entre os pés, botou-se outro. Aprumou o corpo, desnudo, definitivo.
Fez-se o monumental desfecho. Pegaram-no, a ombros, em esplêndido, levaram-no carregado. Sorria, e, decerto, alguma coisa ou nenhuma proferia. Ninguém poderia deter ninguém, naquela desordem do povo pelo povo. Tudo se desmanchou em andamento, espraiando-se para trivialidades. Vivera-se o dia. Só restava imundada, irreal, a palmeira.
Concluindo. Dando-se que, em pós, desafogueados, trocavam-se pelos paletós os aventais. Modulavam drásticas futuras providências, com o professor Dartanhã, ex-professo, o dr. Diretor e o dr. Enéias — alienistas. — “Vejo que ainda não vi bem o que vi...” — referia Sandoval, cheio de cepticismo histórico. — “A vida é constante, progressivo desconhecimento...” — definiu o dr. Bilôlo, sério, entendo que, pela primeira vez. Pondo o chapéu, elegantemente, já que de nada se sentia seguro. A vida era à hora.
Apenas nada disse o Adalgiso, que, sem aparente algum motivo, agora e sempre súbito assustava-nos. Ajuizado, correto, circunspecto demais: e terrível, ele, não em si, insatisfatório. Visto que, no sonho geral, permanecera insolúvel. Dava-me um frio animal, retrospectado. Disse nada. Ou talvez disse, na pauta, e eis tudo. E foi para a cidade, comer camarões.

Guimarães Rosa, in Primeiras estórias

A brasilidade no traço de Portinari

Laçando o Boi (1958), de Cândido Portinari

Quando acabar esta adolescência

Quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre-docência
vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.

Paulo Leminski

Abraço ou beijo?

Muita gente idealiza a vida de escritor. Acha que a grana é fácil e a rotina, sem estresse e com glamour. Basta ficar em casa, com os pés para o alto, e jogar com as palavras e ideias? Vai nessa...
Estela com ‘e’ e dois ‘eles’?”, pergunto com a caneta na mão e a boca seca.
Com ‘esse’ e dois ‘eles’”, ela responde.
Assino “Stella, um beijo, Marcelo”, entrego o livro e sorrio. Porque vem a foto. Agora, noites de autógrafos são também sessões de fotos. Um amigo do autografado sempre tem em mãos um celular com câmera. Não bastam as dedicatórias. Não basta a assinatura. Desejam a prova visual.
Mas ele não sabe tirar, ou não consegue focar, ou ligar o flash, ou não gosta da foto e pede para repetir. E novamente preparo o disfarce da felicidade para um sujeito que nunca vi na vida, ao lado de uma leitora empolgada, que me agarra pelo pescoço e me beija, deixando uma marca de batom, enquanto a fila está grande. E penso: vou passar a noite nessa, preciso sorrir, com uma marca de batom ridícula na bochecha, são meus leitores, vivo disso. É o preço, é o preço...
Bebo em noites de autógrafos. É de graça. Vinho, uísque, caipirinha, o que tiver. Nessa, parti pro uísque. E o garçom sumiu. Chama-se Jango. Tem a cara do Mr. Bean. O mais importante é ganhar a simpatia de um garçom. Para ele manter o copo cheio, e a água em estado sólido. Peço para Stella, com ‘esse’ e dois ‘eles’, procurar Jango, o garçom com a cara do Mr. Bean, e pedir mais uísque com gelo.
Um abraço, Marilorde”, escrevo. Sim, estou no Nordeste, onde a composição de nomes é criativa. Maria com Lorde. No interior de São Paulo, o uso e abuso do ‘dáblio’ e ‘ipsilone’ não têm limites: Wellyngton, Wladyr... Na capital, pedem a dedicatória com nome e sobrenome. No Rio, os autógrafos são para apelidos infantilizados: Baby, Cunca, Birunda.
Elizabeth com ‘zê’ e ‘tê-agá’ no final?”
É. Puxa. Que bom que você perguntou, todo mundo erra”, diz Elizabeth.
São 24 anos de estrada, nega, mais de oito livros, sem contar autógrafos em ruas, bares, cadeias. Rodei. Sempre busco a soletração. Não posso errar o nome de um leitor. Ficará registrado na sua estante. Para os netos confrontarem: “Vô, este escritor é analfabeto, nem sabe escrever seu nome.” E existem Raquel e Rachel, Bete e Beth, Luiz e Luis, Teresa e Tereza…
Chega Mr. Bean com meu uísque. Tomo um gole. Vou ficar alegrinho no final, já sei. Minha letra estará desleixada. Comecei tão bem. A caneta é boa, desliza, não é daquelas que falham e deixam Suely com o ‘ipsilone’ final apagado.
Elizabeth pede para alguém tirar uma foto. Tenho certeza de que ela faz chifrinhos, paranoia que começou quando Pânico na TV lançou a campanha Faça Um Chifrinho na Celebridade. Todos que me fotografavam, presumi, colocavam chifrinhos.
Um cara se aproxima. Já fazendo pose pra foto. Não fala nada. De birra, também não falo. Me encara. Aproveito a pausa e bebo. Tem leitor que fica parado, mudo. Como se eu soubesse seu nome. Confundiu a noite de autógrafos: acha que sou Chico Xavier. Então, quebro o gelo.
O autógrafo é para você?”
É.”
E continua o silêncio.
E como é o seu nome?”
Põe aí qualquer coisa.”
Já fiz isso, já escrevi “Ao qualquer coisa, um abraço, Marcelo”.
Não prefere que eu coloque o seu nome?”
Põe aí... Para Hélio, com afeto.”
Tem cara que é assim, que especifica a dedicatória.
Hélio com ‘agá’ e acento?”
Então, medito sobre a minha incapacidade de criar boas dedicatórias. Para as mulheres, um beijo. Para os homens, um abraço. Eventualmente, alguém pede um autógrafo especial, e dedico: “Um beijo especial.” Outra diz que quer algo diferente do da amiga, para quem escrevi “Um beijo especial”. Escrevo: “Um beijo diferente.”
Já não me angustia a falta de criatividade. São pessoas que nunca vi na vida. No passado, eu jogava com os nomes: “Para Rosa do sorriso colorido...” Nem sei por que querem um rabisco no livro. Logo logo o venderão para um sebo. Como fez minha avó Olga. Na verdade, fizeram. Quando a levaram para a casa de repouso, venderam tudo o que era seu. Encontrei num sebo meu segundo livro, Blecaute, primeira edição, rara, autografado “para a minha avó querida...”
Surge aquele amigo, e dá um branco. Surpreendentemente esqueci o nome, apesar do rosto familiar. Ele sorri esperando, como um sádico. Você já foi a um lançamento. As vendedoras escrevem seu nome num papelzinho, porque brancos acontecem. Tem gente que se irrita com as vendedoras: “Ele sabe meu nome!” Não pega o papelzinho. São justamente os que a gente esquece. Eu tenho um truque infalível: “Como é mesmo o seu nome completo?”
Cadê o Jango, fugiu pro Uruguai? Estou ficando alto. A letra cresce. Acho incrível rabiscar na primeira folha de um livro novinho em folha, uma pretensão escrever meu nome com letras grandes, rabiscos exagerados. Quem sou eu, afinal? Eles pagam, me entregam, e estrago com tinta. E ficam felizes com isso. Estou bêbado. Tenho que tomar cuidado, pois é quando mando abraços para as leitoras e beijos para os leitores: “Maurão, beijo, Marcelo.” Ou quando começo a autografar com a minha assinatura pessoal. Podem me passar a perna, um contrato em branco, tomarem meus bens. Cadê Jango?
Quando a fila diminui, engato uma conversa com o leitor. Para a fila voltar a crescer. Tática velha. Não vou dar chances para um cara entrar na livraria e ver um escritor numa mesinha com pilhas de livros e três gatos-pingados na fila.
Jânio me serve outra. Aproxima-se a parte enfadonha (por isso, bebo). Porque a galera da intimidade fica pro final. Aquela que fala de meus personagens como se fossem seus melhores amigos. Que conhece de cor meus livros. Que pergunta detalhes da trama e quer me levar pro barzinho. Odeio a palavra barzinho. Eles falam assim: “E aí, já tá doidão, vamos pro barzinho com a gente, aqui só tem careta...” Mas quero mais ir pro meu hotel, jantar e dormir. Sou um careta. Meus personagens que são doidões.
Depois da galera da intimidade, tem a turma da organização, com pilhas de livros e a lista de nomes dos que não puderam comparecer e dos que trabalharam nos bastidores. Graças ao Jânio, a letra sai fácil, o pulso nem dói. E enrolo, pra galera do barzinho, que está na porta, desistir. É fácil ser escritor?

Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Mariana Froes e Phill Veras | A Porta

A paneira

Fonte da imagem: MFRural

Depois da janta os homens se reuniam para contar estórias e lorotas enquanto pitavam. A meninada se misturava. Era debaixo de uma paineira enorme, barriguda, com um oco no tronco. Eu imaginava que naquele oco deveriam viver criaturas encantadas que só apareciam depois da meia-noite. Meia-noite era hora do medo, sinistra. Por isso, à meia-noite, todo mundo tem de estar em casa, com portas e janelas trancadas, na cama. Um menino afirmava, categórico: “À meia-noite eles soltam a bicharada...” . Nunca perguntei quem eram “eles”. Essas entidades noturnas foram também objeto do pensamento de Jorge Luis Borges. Dedicou um dos seus ensaios a uma dessas bestas que, em inglês, se chama “nightmare”, palavra que traduzida literalmente é “égua da noite”, uma égua que galopa durante a noite. Galopa onde? Nos sonhos. São os pesadelos. Pesadelo é uma égua desembestada no sono.
A paineira ficava ao lado dos trilhos do trem cujos marimbondos de fogo saíam da chaminé da maria-fumaça e chamuscavam suas folhas e flores. Quando a paineira florescia e suas flores caíam, nós, crianças, as transformávamos em exércitos de soldados com penachos na cabeça.
Os serões masculinos eram um festival de mentiras. E todo mundo sabia que era lorota. Mas ninguém desmentia. Era falta de educação. O corpo, mesmo sabendo que é mentira, fica todo arrepiado. Eu gostava de estar na roda dos mentirosos que acreditavam nas mentiras. Só muito mais tarde compreendi que não se tratava de um festival de lorotas. Tratava-se de uma oficina de literatura. Porque literatura se faz com coisas que não existem. “O que não existe é mais bonito.”

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

Acerca das leis

Quando os homens são puros, as leis são inúteis; quando os homens são corruptos, as leis são quebradas.”

Benjamin Disraeli, in 1001 frases de grandes pensadores

Interlúdio

A noite se estende ao rés do chão como um lençol, que os cachorros puxam, do horizonte. Puxam, esticam, sem rasgar.
Porque a lua vai saltar.
E ficará pulando, ao centro, para cima, para baixo, para cima, para baixo, como Sancho Pança no capítulo XLV do Dom Quixote.

Mário Quintana, in Sapato florido

Orçamento do governo

 
Arte: autor desconhecido

A arte do tempo

O tempo…

Sempre vivo e indeciso,
ora corre, ora voa,
consegue curar feridas,
no mesmo instante as magoa.
Ninguém escapa do tempo
invisível feito o vento
que toca qualquer pessoa.

O tempo me modelou,
me arrancou do meu ninho,
clareou os meus cabelos,
me bateu, me fez carinho.
O tempo me fez voar,
me ensinou a caminhar,
mas não mostrou o caminho.

Por tanto tempo o tempo
fez papel de diretor,
um roteirista confuso,
ora ódio, ora amor,
gritando silencioso,
tão claro e misterioso
feito o mar pro pescador.

O tempo me fez poeta,
artista, palco e cenário,
me fez imaginação,
aí, encontrou um páreo,
pois, para o tempo, o artista
sempre foi um adversário.

Só o artista segura
e faz parar o ponteiro
que faz o dia ser noite
e último ser primeiro,
e que tem a ousadia
de determinar o dia
que será o derradeiro.

A liberdade da arte
deixa o tempo aprisionado,
faz o relógio da vida
adiantado, atrasado,
e num segundo de paz
toda guerra se desfaz
se o relógio for parado.

Já que o tempo é infinito
e o artista o domina,
ser eterno e ser mortal
talvez seja minha sina,
atuar num espetáculo
que nunca fecha a cortina.

A única previsão
que é certa sobre o tempo
é que ele vai passar.
Por isso cada momento
deve ser aproveitado,
vivido e depois guardado
na caixa do pensamento.

O tempo está sempre vivo
num grande desassossego,
inquieto, inconstante,
é pancada e é chamego,
é solução e problema.
O tempo é só um poema
dizendo: já fui, já chego.

Bráulio Bessa