Muita gente idealiza a vida de escritor.
Acha que a grana é fácil e a rotina, sem estresse e com glamour.
Basta ficar em casa, com os pés para o alto, e jogar com as palavras
e ideias? Vai nessa...
“Estela com ‘e’ e dois ‘eles’?”,
pergunto com a caneta na mão e a boca seca.
“Com ‘esse’ e dois ‘eles’”,
ela responde.
Assino “Stella, um beijo, Marcelo”,
entrego o livro e sorrio. Porque vem a foto. Agora, noites de
autógrafos são também sessões de fotos. Um amigo do autografado
sempre tem em mãos um celular com câmera. Não bastam as
dedicatórias. Não basta a assinatura. Desejam a prova visual.
Mas ele não sabe tirar, ou não consegue
focar, ou ligar o flash, ou não gosta da foto e pede para repetir. E
novamente preparo o disfarce da felicidade para um sujeito que nunca
vi na vida, ao lado de uma leitora empolgada, que me agarra pelo
pescoço e me beija, deixando uma marca de batom, enquanto a fila
está grande. E penso: vou passar a noite nessa, preciso sorrir, com
uma marca de batom ridícula na bochecha, são meus leitores, vivo
disso. É o preço, é o preço...
Bebo em noites de autógrafos. É de
graça. Vinho, uísque, caipirinha, o que tiver. Nessa, parti pro
uísque. E o garçom sumiu. Chama-se Jango. Tem a cara do Mr. Bean. O
mais importante é ganhar a simpatia de um garçom. Para ele manter o
copo cheio, e a água em estado sólido. Peço para Stella, com
‘esse’ e dois ‘eles’, procurar Jango, o garçom com a cara do
Mr. Bean, e pedir mais uísque com gelo.
“Um abraço, Marilorde”, escrevo.
Sim, estou no Nordeste, onde a composição de nomes é criativa.
Maria com Lorde. No interior de São Paulo, o uso e abuso do ‘dáblio’
e ‘ipsilone’ não têm limites: Wellyngton, Wladyr... Na capital,
pedem a dedicatória com nome e sobrenome. No Rio, os autógrafos são
para apelidos infantilizados: Baby, Cunca, Birunda.
“Elizabeth com ‘zê’ e ‘tê-agá’
no final?”
“É. Puxa. Que bom que você perguntou,
todo mundo erra”, diz Elizabeth.
São 24 anos de estrada, nega, mais de
oito livros, sem contar autógrafos em ruas, bares, cadeias. Rodei.
Sempre busco a soletração. Não posso errar o nome de um leitor.
Ficará registrado na sua estante. Para os netos confrontarem: “Vô,
este escritor é analfabeto, nem sabe escrever seu nome.” E existem
Raquel e Rachel, Bete e Beth, Luiz e Luis, Teresa e Tereza…
Chega Mr. Bean com meu uísque. Tomo um
gole. Vou ficar alegrinho no final, já sei. Minha letra estará
desleixada. Comecei tão bem. A caneta é boa, desliza, não é
daquelas que falham e deixam Suely com o ‘ipsilone’ final
apagado.
Elizabeth pede para alguém tirar uma
foto. Tenho certeza de que ela faz chifrinhos, paranoia que começou
quando Pânico na TV lançou a campanha Faça Um Chifrinho na
Celebridade. Todos que me fotografavam, presumi, colocavam
chifrinhos.
Um cara se aproxima. Já fazendo pose pra
foto. Não fala nada. De birra, também não falo. Me encara.
Aproveito a pausa e bebo. Tem leitor que fica parado, mudo. Como se
eu soubesse seu nome. Confundiu a noite de autógrafos: acha que sou
Chico Xavier. Então, quebro o gelo.
“O autógrafo é para você?”
“É.”
E continua o silêncio.
“E como é o seu nome?”
“Põe aí qualquer coisa.”
Já fiz isso, já escrevi “Ao qualquer
coisa, um abraço, Marcelo”.
“Não prefere que eu coloque o seu
nome?”
“Põe aí... Para Hélio, com afeto.”
Tem cara que é assim, que especifica a
dedicatória.
“Hélio com ‘agá’ e acento?”
Então, medito sobre a minha incapacidade
de criar boas dedicatórias. Para as mulheres, um beijo. Para os
homens, um abraço. Eventualmente, alguém pede um autógrafo
especial, e dedico: “Um beijo especial.” Outra diz que quer algo
diferente do da amiga, para quem escrevi “Um beijo especial”.
Escrevo: “Um beijo diferente.”
Já não me angustia a falta de
criatividade. São pessoas que nunca vi na vida. No passado, eu
jogava com os nomes: “Para Rosa do sorriso colorido...” Nem sei
por que querem um rabisco no livro. Logo logo o venderão para um
sebo. Como fez minha avó Olga. Na verdade, fizeram. Quando a levaram
para a casa de repouso, venderam tudo o que era seu. Encontrei num
sebo meu segundo livro, Blecaute, primeira edição, rara,
autografado “para a minha avó querida...”
Surge aquele amigo, e dá um branco.
Surpreendentemente esqueci o nome, apesar do rosto familiar. Ele
sorri esperando, como um sádico. Você já foi a um lançamento. As
vendedoras escrevem seu nome num papelzinho, porque brancos
acontecem. Tem gente que se irrita com as vendedoras: “Ele sabe meu
nome!” Não pega o papelzinho. São justamente os que a gente
esquece. Eu tenho um truque infalível: “Como é mesmo o seu nome
completo?”
Cadê o Jango, fugiu pro Uruguai? Estou
ficando alto. A letra cresce. Acho incrível rabiscar na primeira
folha de um livro novinho em folha, uma pretensão escrever meu nome
com letras grandes, rabiscos exagerados. Quem sou eu, afinal? Eles
pagam, me entregam, e estrago com tinta. E ficam felizes com isso.
Estou bêbado. Tenho que tomar cuidado, pois é quando mando abraços
para as leitoras e beijos para os leitores: “Maurão, beijo,
Marcelo.” Ou quando começo a autografar com a minha assinatura
pessoal. Podem me passar a perna, um contrato em branco, tomarem meus
bens. Cadê Jango?
Quando a fila diminui, engato uma
conversa com o leitor. Para a fila voltar a crescer. Tática velha.
Não vou dar chances para um cara entrar na livraria e ver um
escritor numa mesinha com pilhas de livros e três gatos-pingados na
fila.
Jânio me serve outra. Aproxima-se a
parte enfadonha (por isso, bebo). Porque a galera da intimidade fica
pro final. Aquela que fala de meus personagens como se fossem seus
melhores amigos. Que conhece de cor meus livros. Que pergunta
detalhes da trama e quer me levar pro barzinho. Odeio a palavra
barzinho. Eles falam assim: “E aí, já tá doidão, vamos pro
barzinho com a gente, aqui só tem careta...” Mas quero mais ir pro
meu hotel, jantar e dormir. Sou um careta. Meus personagens que são
doidões.
Depois da galera da intimidade, tem a
turma da organização, com pilhas de livros e a lista de nomes dos
que não puderam comparecer e dos que trabalharam nos bastidores.
Graças ao Jânio, a letra sai fácil, o pulso nem dói. E enrolo,
pra galera do barzinho, que está na porta, desistir. É fácil ser
escritor?
Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola
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