quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Deus dos escritores

Será que Deus tem o poder de julgar uma narrativa em construção? Tem a capacidade de analisar os diálogos que se formam num romance? Tem a moral de invadir a mente de alguém e tirar Xerox dos nossos rascunhos? De enfiar o pendrive em nossas loucuras e ler página por página os nossos sonhos? Deus seria uma espécie de vírus que lê pensamentos? Fico pensando aqui como deve ser legal ser o primeiro a ler as coisas. Imagina a felicidade de Deus lendo “O processo” e “Crime e Castigo”. A pergunta é: será que deus interfere na vida de um escritor para que sua obra se torne prima? Será que deus é mesmo o sujeito onipotente que segura os astros ou é um sujeito simples e cínico como a gente que está sempre com uma aba pornô aberta na firma ou trancado num quarto escrevendo enquanto a chuva chia no asfalto lá fora? Apenas uma pergunta aos colegas de escrita: Deus é uma bactéria que consome literatura? Seria um Deus interessante. Diferente de outros piegas que estão abestalhando seguidores e causando guerras no mundo. Espero que exista um Deus que proteja os escritores. Um Deus que se divirta com as merdas que escrevemos.
Diego Moraes, in ursocongelado.tumblr.com

O aluno

São meus todos os versos já cantados:
A flor, a rua, as músicas da infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.

Intacto me revejo nos mil lados
De um só poema. Nas lâminas da estância,
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.

São meus também os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos.
Canta a doçura triste de Bandeira.

Drummond me empresta sempre o seu bigode.
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.
José Paulo Paes

Antônio de Pádua convida Joca Costa - De Volta pro Aconchego

Leitor atento

O leitor atento, verdadeiro ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por ele faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida.”
Machado de Assis, in Esaú e Jacó

Dom Quixote de La Mancha (Prólogo - trecho inicial)

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Desocupado leitor: podes crer, sem juramento, que eu gostaria que este livro, como filho da inteligência, fosse o mais formoso, o mais galhardo e o mais arguto que se pudesse imaginar. Mas não consegui contrariar a ordem da natureza, em que cada coisa gera seu semelhante. Então o que poderia criar meu árido e mal cultivado engenho a não ser a história de um filho seco, murcho, caprichoso e cheio de pensamentos desencontrados que não passaram pela imaginação de nenhum outro, exatamente como alguém que foi concebido num cárcere, onde todo incômodo tem seu assento e onde toda triste discórdia faz sua moradia? O sossego, o lugar agradável, a amenidade dos campos, a placidez dos céus, o murmúrio das fontes e a tranquilidade do espírito são de grande ajuda para que as musas mais estéreis se mostrem fecundas e ofereçam ao mundo partos que o encham de maravilha e alegria.
Acontece de um pai ter um filho feio e sem graça alguma, e o amor que tem por ele venda-lhe os olhos para que não veja seus defeitos, tomando-os antes por sagacidades e belezas, e fala deles aos amigos como de exemplos de espírito e elegância. Mas eu — que, embora pareça pai, sou padrasto de dom Quixote — não quero seguir a corrente costumeira, nem te suplicar quase em lágrimas, como outros fazem, caríssimo leitor, que me perdoes ou toleres os defeitos que vires neste meu filho, pois não és parente nem amigo dele, tens tua alma em teu corpo e teu livre-arbítrio como o melhor entre os melhores, e estás em tua casa, onde és senhor, como o rei de seus tributos, e sabes que cada um pensa o que bem quer, ou não se costuma dizer que “embaixo de meu manto, ao rei mato”? Tudo isso te isenta e te deixa livre de todo respeito e obrigação, de modo que podes dizer tudo aquilo que pensares da história, sem medo de que te caluniem pelo mal ou te premiem pelo bem que disseres dela.
Gostaria somente de te dar esta história nua e crua, sem o ornamento de um prólogo nem do inumerável catálogo dos habituais sonetos, epigramas e elogios que se costuma pôr no começo dos livros. Porque posso te garantir que, embora tenha me custado algum trabalho escrevê-la, nenhum foi maior do que fazer esta introdução que vais lendo. Muitas vezes peguei a pena para escrevê-la e muitas a deixei, por não saber o que escreveria; e estando numa delas empacado, com o papel na frente, a pena atrás da orelha, o cotovelo na mesa e a mão no queixo, pensando no que diria, lá pelas tantas entrou um amigo meu, espirituoso e inteligente, que, vendo-me tão meditativo, me perguntou a causa. Não a ocultando, eu disse que pensava no prólogo que tinha de fazer para a história de dom Quixote e me achava num estado em que nem queria fazê-lo, nem muito menos publicar as façanhas de tão nobre cavaleiro sem ele.
Pois como quereis vós que não me deixe confuso o que dirá o antigo legislador que chamam povo quando vir que, ao cabo de tantos anos como estes em que durmo no silêncio do esquecimento, saio agora, com o peso da idade nas costas, 2 com um livro seco como palha, longe da invenção, franzino de estilo, pobre de conceitos e carente de toda erudição e doutrina, sem notas nas margens e sem comentários no fim, como vejo em outros livros, ainda que sejam de ficção e profanos, tão cheios de frases de Aristóteles, de Platão e de um bando todo de filósofos, que deixam os leitores admirados e os levam a pensar que os autores são homens lidos, eruditos e eloquentes? E quando citam a Sagrada Escritura, meu caro? Dizem no mínimo que são uns Santos Tomases e outros tantos doutores da Igreja, adequando o estilo de modo tão engenhoso que numa linha pintam um amante devasso e em outra fazem um sermãozinho cristão, que é uma alegria e uma dádiva ouvi-lo ou lê-lo. Disso tudo há de carecer meu livro, porque não tenho o que anotar nas margens nem comentar no fim, muito menos sei que autores sigo nele para nomeá-los no começo, como fazem todos, na ordem do abc , começando em Aristóteles e acabando em Xenofonte e Zoilo ou Zêuxis, mesmo que um fosse maledicente e o outro, pintor. Meu livro também há de carecer de sonetos no princípio, pelo menos de sonetos cujos autores sejam duques, marqueses, condes, bispos, damas ou poetas célebres, embora, se eu os pedisse a dois ou três amigos do ofício, sei que seria atendido, e os fariam sem que os igualassem os versos daqueles que têm mais nome em nossa Espanha. Enfim, meu senhor e amigo — continuei —, resolvi que o senhor dom Quixote fique sepultado em seus arquivos na Mancha até que o céu apresente quem o adorne com todas essas coisas que lhe faltam, porque eu me acho incapaz de supri-las devido a minha insuficiência e poucas letras, e também porque sou acomodado e preguiçoso por natureza para andar procurando autores que digam o que eu sei dizer sem eles. Daí nasce o embaraço e a indecisão em que me achastes: causa suficiente para me pôr assim como vos falei.
Ao ouvir isso, meu amigo me disse, dando uma palmada na testa e disparando uma salva de risos:
Por Deus, meu irmão, acabo de perceber um engano em que acreditei há muito tempo, desde que vos conheço: sempre vos julguei inteligente e sensato em todas as ações. Mas agora vejo que estais tão longe disso como o céu da terra. Como é possível que coisas de tão pouca monta e tão fáceis de remediar possam ter forças para meter nesse embaraço e alheamento um engenho tão maduro como o vosso, sempre pronto a atropelar e demolir outras dificuldades maiores? Com certeza, isso não nasce por falta de habilidade, mas por excesso de preguiça e penúria mental. Quereis ver se é verdade o que digo? Prestai-me atenção e vereis como, num piscar de olhos, abato todas as vossas dificuldades e corrijo todas as deficiências que dizeis que vos embaraçam e acovardam, impedindo-vos de apresentar ao mundo a história do famoso dom Quixote, luz e espelho de toda a cavalaria andante.
Miguel de Cervantes, in Dom Quixote de La Mancha

terça-feira, 30 de agosto de 2016

União pela Devoção (Excerto)

13. Em verdade, te digo, que amo aquele
que não odeia a ninguém e a ninguém faz mal,
mas é amigo e amante de toda a Natureza, e aquele
que é bondoso, livre de vaidade, orgulho e egoísmo,
e conserva sempre a equanimidade, sendo paciente
na desventura.

14. Amo aquele que é sempre constante, afável
e piedoso, manso de coração e de firme vontade,
e sujos pensamentos em Mim se concentram.

15. Amo aquele que não tem cuidados mundanos,
não teme o mundo e não é tímido; quem
é livre de turbulência, da cólera, impaciência e
medo, e não se entrega à tristeza nem à alegria
excessiva.

16. Amo aquele que não tem preconceitos,
é justo e puro, imparcial, confidente, livre de toda
ânsia, e nunca se desespera.

17. Amo aquele que não se apaixona, nem
odeia, não se entristece nem cobiça, e desapega-se
das ações tanto boas como más.

18. Amo aquele que igualmente considera o
amigo e o inimigo, os honrados e os desprezados,
e com igual ânimo suporta o calor e o frio, o
prazer e a dor, a nada se apegando.

19. Amo aquele que não murmura contra o
destino, não se importa se o mundo o louva ou
censura, em todo lugar está contente e, firme em
seu propósito, em Espírito Me adora.

20. Porém, os mais amados Meus são aqueles
que praticam, qual indiquei, esta bendita e jamais
falível Yoga ou União, com fervor e amor
tal, que não vejam nenhum outro ideal superior.
In: BHAGAVAD-GÎTÂ: a mensagem do mestre. Tradução de Francisco Valdomiro Lorens

Não temer a morte

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Google Imagens 

Veem-se pessoas de idade oprimidas pelo medo da morte. Entre os jovens, tal sentimento é justificado, pois temendo com justa razão serem mortos na guerra têm o direito de se amargurarem, ao pensamento de frustração, diante de que a vida pode oferecer de melhor. Mas, no homem velho, que conheceu as alegrias e os sofrimentos humanos, e realizou sua obra de acordo com as próprias possibilidades, o medo da morte parece um tanto abjeto e ignóbil. A melhor maneira de superá-lo, ao menos pelo que me parece, consiste em alargar progressivamente seus centros de interesse, recuando aos poucos as fronteiras do eu, até confundir sua vida pessoal com a vida universal. Uma existência individual é como um rio, pequeno em sua nascente, a correr estreitamente entre as margens, precipitando-se nos rochedos, recaindo em cascatas. Devagar, o rio se alarga, as margens desaparecem, as águas se acalmam e, no fim, sem ruptura aparente, elas se confundem com o mar e perdem insensivelmente a existência própria. Aquele que, na velhice, pode encarar assim o seu destino, não temerá a morte, porquanto sua obra será continuada. E, ao aumentar sua fraqueza, o pensamento do repouso ser-lhe-á suave. Eu gostaria de morrer no trabalho, sabendo que outros tentarão alcançar o mesmo objetivo que busquei, satisfeito com a ideia de que foi realizado o que era humanamente possível.”
Berthand Russell, in A arte de envelhecer

Street Art, de Ernest Zacharevic


A origem de Saramago

Encontro muitas coisas nebulosas. As dificuldades começam com a história de meu nome. O sobrenome de meu pai era Sousa e não Saramago. Ele se chamava José de Sousa. Acontece que em Azinhaga, a aldeia onde nasci, as famílias não eram conhecidas pelos sobrenomes, mas por alcunhas. Minha família tinha a alcunha de Saramago, que é o nome de uma planta silvestre, que dá uma florzinha com quatro pétalas e cresce pelos cantos, quase sempre esquecida.
Quando nasci, meu pai se dirigiu ao cartório para me registrar e se limitou a dizer: “Vai se chamar José como o pai”. O empregado do registro civil, por sua conta e risco, acrescentou ao sobrenome verdadeiro, Sousa, a alcunha de Saramago. Tornei-me, então, José de Sousa Saramago. Meu pai só descobriu o engano quando eu já estava com sete anos. Para me matricular na escola primária, ele teve de apresentar a certidão de nascimento e só então se deu conta de que eu me chamava José Saramago! O mais grave é que ele não gostava nem um pouco dessa alcunha.
José Saramago, in As palavras de Saramago

De volta pra casa

Resultado de imagem para As vinhas da ira capa do livro

Um clarão vermelho cresceu, vindo do Oriente, e os passarinhos cantavam e chilreavam alegremente.
Olha — disse Joad. — Ali adiante, tá vendo? É o poço da casa do tio John. Ainda não posso ver o moinho de vento, mas aquele ali é o poço dele, na certa. — Ele acelerou o passo. — Será que estão todos lá?. — Podia-se ver a borda do poço no topo de uma elevação. Quase correndo, Joad levantou uma nuvem de poeira à altura dos joelhos. — Será que a minha mãe... — Eles viam, agora, a cegonha do poço tosco, e a casa, uma pequena construção, parecida com um caixote, sem pintura, e o celeiro de teto baixo, armado rudemente. Fumaça escapava da estreita chaminé da casa. No terreiro havia uma confusão de objetos: peças de mobiliário amontoadas, as hélices e o motor de um moinho de vento, estrados de camas, mesas, cadeiras. — Deus do céu, eles tão pra ir embora! — exclamou Joad.
Um caminhão estacionava também em frente à casa, um caminhão de bordas altas, porém muito estranho, porque a frente era de um sedã, cuja carroceria fora substituída por uma de caminhão. E assim que se aproximavam mais, os dois homens podiam ouvir marteladas vindas do terreiro, e quando o sol surgiu deslumbrante no horizonte, iluminando o caminhão, puderam ver um homem e um martelo que baixava e levantava em suas mãos. E o sol ofuscante batia agora nas janelas da casa, refletindo-se nos batentes. Duas galinhas ciscavam o chão e suas penas vermelhas refletiam os raios solares.
Não dê nenhum grito — disse Joad. — Vamos nos arrastar até lá.
E foi andando tão depressa que levantava poeira até a altura de sua cintura. Assim chegou à extremidade do algodoal. Encontravam-se agora à beira do terreiro, de chão duro, batido e brilhante, com alguns tocos de grama cobertos de pó. Joad afrouxou o passo, como se tivesse medo de avançar. O pregador, notando sua atitude, acertou o passo com ele. Joad continuou lentamente, e contornou o caminhão. Era um Hudson Super-Six, sedã, cujo topo fora cortado ao meio. O velho Tom Joad estava na carroceria do caminhão, batendo pregos do lado do veículo. Seu rosto coberto de barba grisalha estava debruçado sobre o trabalho e seus dentes apertavam um punhado de pregos. Tirou, agora, um prego da boca, fazendo o martelo trovejar sobre ele. Da casa vinha o som do bater da tampa do fogão e o choro de uma criança. Joad encostou-se no caminhão. E seu pai olhou-o e não o viu. Pegou outro prego e bateu-o na madeira. Um bando de pombos ergueu voo da borda do poço, esvoaçou e voltou a pousar no poço; pombos brancos, azuis e cinzentos, com asas da cor do arco-íris.
Joad segurou a borda do caminhão com os dedos convulsos; olhou o homem grisalho, agora envelhecendo, instalado na carroceria do caminhão. Passando a língua nos lábios ressequidos, balbuciou:
Meu pai.
Que é que ocê quer? — grunhiu o velho Tom Joad, por entre os dentes que seguravam os pregos. Usava um chapéu preto, sujo e amarrotado e uma camisa azul de trabalho, sem colarinho, sobre a qual ostentava um colete de botões ausentes; suas calças de algodão eram seguras por um largo cinto de couro, com uma enorme fivela de metal, tudo polido por longos anos de uso; e suas botinas estavam rachadas, de solas inchadas e deformadas por anos de sol, de umidade e de poeira. As mangas da camisa, ele as tinha arregaçadas até os antebraços, e mantinham-se presas pelos músculos salientes e poderosos. O ventre e as nádegas do velho eram magros, e as pernas curtas, grossas, fortes. Suas faces, emolduradas por uma barba pintada de preto e branco, angulavam-se em um queixo voluntarioso, um queixo proeminente, acentuado pela barba hirsuta, menos grisalha ali. Sobre os salientes ossos das faces, a pele era morena, queimada do sol, e coberta de vincos profundos ao redor dos olhos, de tanto que estes piscaram. Tinha os olhos castanhos, cor de café, e ele impelia a cabeça para a frente a cada vez que tinha que examinar bem alguma coisa, porquanto aqueles olhos escuros e brilhantes estavam enfraquecendo. Seus lábios, que mantinham seguros os pregos, eram delgados e vermelhos.
O velho levantou o martelo, pronto para outra pancada e deu uma olhadela a Tom, por cima do caminhão, uma olhadela aborrecida por ter sido interrompido. E depois seu queixo deslocou-se para a frente e seus olhos encararam o rosto de Tom e então, gradualmente, seu cérebro foi compreendendo aquilo que os olhos enxergavam. O martelo pousou devagar e os dedos da mão esquerda tiraram todos os pregos da boca. E o velho falou, admirado, hesitante, como se ainda não compreendesse tudo:
Mas é o Tommy...
E, logo, como que querendo assegurar uma coisa a si próprio:
O Tommy voltou!
A boca se lhe abriu novamente e um lampejo de temor surgiu em seus olhos.
Tommy — disse com suavidade —, cê não fugiu, não foi? Não tem que se esconder? — E ficou à espera da resposta, ansiosamente.
Não — disse Tom. — Eu fui perdoado. Liberdade condicional. Tô com papéis, tudo em ordem. — Agarrou a borda do caminhão e olhou para cima.
O velho Tom Joad depositou o martelo sobre o piso da carroceria e meteu os pregos no bolso. Passou as pernas pela borda do caminhão e deixou-se cair com agilidade no chão, mas, tão logo se viu ao lado do filho, ficou embaraçado. Tom seguiu-o.
Tommy — disse o velho —, nós vamo pra Califórnia. Mas a gente ia te escrever uma carta antes. — E falou, ainda incrédulo: — Cê voltou, Tommy. Então, cê pode ir com a gente. Cê pode vir!
O estampido de uma tampa de cafeteira surgiu da casa. O velho olhou por cima dos ombros.
Vamo fazer uma surpresa pra eles — disse, e seus olhos brilharam de excitação. — Tua mãe teve um pressentimento, ela diss’que não ia te ver mais. Ficou com aquele olhar parado dos mortos. Não quis ir pra Califórnia, porque diss’que aí não te ia ver nunca mais. — Uma tampa de cafeteira fez outro estrondo na casa. — Ela vai ter uma surpresa! — falou o velho. — Vamo entrar como se ocê nunca tivesse ido embora daqui. Vamo ver o que tua mãe vai dizer. — Finalmente tocou no ombro do filho, com timidez, retirando a mão em seguida. Olhou para Jim Casy.
O senhor se lembra do reverendo, não se lembra, pai? Ele veio comigo — disse Tom.
Teve na cadeia também?
Não. Encontrei ele na estrada. Tava andando sozinho por aí.
O velho apertou gravemente as mãos do pregador.
Seja bem-vindo, reverendo — disse.
Gostei muito de vir aqui — falou Casy. — É bom a gente ver quando um filho retorna à casa. É uma coisa boa.
À casa... — falou o velho.
Sim, isto é, junto à família — emendou o pregador rapidamente. — A gente esteve na outra casa a noite passada.
O queixo do velho avançou e ele olhou estrada afora por um instante. Depois virou-se para Tom.
Como é que a gente vai fazer? — começou, excitado... — Talvez seja melhor eu entrar primeiro e dizer assim: olha, aqui tem uns camaradas; pediram qualquer coisa pra comer. Ou então cê entra e fica lá até ela reconhecer ocê. Como é que vai ser melhor, hein? — E suas faces refletiam intensa emoção.
É melhor a gente evitar um choque — disse Tom. — Ela pode ficar mal.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Diz-me, bicho, quem és tu?

Um leão revestido de estanho
ou o sonho de Francisco de Quevedo?
Feliz metamorfose de um torpedo
ou gato astral miando para a sua gata?
Ainda que tua indumentária te delate
com seu brilho de aço de Toledo,
não és somente um robô, somente um arremedo;
tua ambiguidade é muito agradável.
Estranho ser, simpática montagem,
careces por completo de pelo
porém em teu porte há algo de felino,
de tigre camuflado e clandestino,
e não deixas de ser, mesmo que inventado,
um sem-vergonha feliz e enamorado.
Jesús Munárriz

Doçura da terra

Não sei se muitos fizeram essa descoberta – sei que eu fiz. Também sei que descobrir a terra é lugar-comum que há muito se separou do que exprime. Mas todo homem deveria em algum momento redescobrir a sensação que está sob descobrir a terra.
A mim aconteceu na Itália, durante uma viagem de trem. Não é necessário que seja a Itália. Poderia ser em Jacarepaguá. Mas era a Itália. O trem avançava e, depois de uma noite mal dormida em companhia de uma sueca que só falava sueco, depois de uma xícara de café ordinário com cheiro de estação ferroviária – eis a terra através das vidraças. A doçura da terra italiana. Era começo de primavera, mês de março. Também não precisaria ser primavera. Precisava ser apenas – terra. E quanto a esta, todos a têm sob os pés. Era tão estranho sentir-se viver sobre uma coisa viva. Os franceses, quando estão nervosos, dizem que estão sur le quivive. Nós estamos perpetuamente sobre o que viver.
E à terra retornaremos. Ah, por que não nos deixaram descobrir sozinhos que à terra retornaremos: fomos avisados antes de descobrir. Com grande esforço de recriação descobri que: à terra retornaremos. Não era triste, era excitante. Só em pensar, já me sentia rodeada desse silêncio da terra. Desse silêncio que a gente prevê e que procura antes do tempo concretizar.
De algum modo tudo é feito de terra. Um material precioso. Sua abundância não o torna menos raro de sentir – tão difícil é realmente sentir que tudo é feito de terra. Que unidade. E por que não o espírito também? Meu espírito é tecido pela terra mais fina. A flor não é feita de terra?
E pelo fato de tudo ser feito de terra – que grande futuro inesgotável nós temos. Um futuro impessoal que nos excede. Como a raça nos excede.
Que dom nos fez a terra separando-nos em pessoas – que dom nós lhe fazemos não sendo senão: terra. Nós somos imortais. E eu estou emocionada e cívica.
Clarice Lispector, in Aprendendo a viver

Anésia, a Sincera

ANESIA-POKEMON-GO-PARAS 
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Uma expressão (quase) intraduzível: l'esprit d'escalieré

Neste caso, a expressão não é intraduzível. Ao pé da letra, significa “o espírito da escada” ou “presença de espírito”. Mas o que será que os franceses querem dizer? Na real, l'esprit d'escalieré é aquilo que você provavelmente já sentiu depois de sair de uma discussão. Algo como “putz, mas bem que eu podia ter disparado aquele argumento infalível. Agora, já era!”. O nome deste sentimento foi cunhado pelo filósofo Denis Diderot no século 18 e a ideia também aparece nos idiomas iídiche (trepverter) e inglês (que pegam a expressão alemã treppenwitz emprestada).
Fonte: revista Superinteressante

O derradeiro eclipse

Justinho Salomão era ratazanado pela dúvida sem método. O homem sofria de ser marido, lhe pesavam as frias sombras da desconfiança. A mulher, Dona Acera, é linda de fazer crescer bocas, águas e noites. Devorado pelo ciúme, Justinho emagrecia a pontos de tutano. Lastimagro, cancromido, ele para se enxergar precisava procurar-se por todo o espelho. Justinho fazia comichão às pulgas. Um dia, o padre o avisou à saída da missa: — Seja prestável na atenção, Justinho: sua alma é como um fumo que não tem lugar onde caiba.
Raios picassem o padre que nunca falava direito. O que o sacerdote sabia era do domínio incomum: Acera era demasiado mulher para esposa. Justinho suspeitava mais dos argumentos que dos factos. Seria a esposa mais desleal que um segredo? A resposta era sombra sem luz nem objeto. Em véspera de viagem, a suspeição do marido se agravava. Desta vez, um longo serviço de visitações o vai obrigar a geográfica ausência. Acera recebe, tristonha, a notícia: — Quanto tempo você me vai sozinhar?”
Um mês. A mulher contorce o bâton, abana as mechas. Até uma lágrima lhe crocodileja a pálpebra. O marido ainda mais se aflige perante tanto inconsolo. Será verdade ou conveniência de fingimento? Quem, tão novo, guelra tão ensanguentada, pode se aguentar em guardos de fidelidade? Na véspera de partir, o marido se decidiu certificar em garantia de lealdade. Primeiro se dirigiu à Igreja e solicitou socorro do padre português. O religioso torce as mãos, reticente e, como era hábito, barateou filosofia:
Bem, não sei. Para cruzar as pernas é preciso que haja duas...
Duas quê?
Duas pernas, ora essa.
E prosseguiu divaguando, água em líquidos carreiros. Justinho esperava que o sacerdote o tranquilizasse. Lhe dissesse, por exemplo: vai em paz, você está bem casado, mais anelado que Saturno. Mas não, o padre ondulava a testa de suposições.
Não sei, não. Quem mais espreita não é o próprio sol?
Explique-se melhor, senhor padre.
Quer que seja mais claro? Me responda, então: onde o chão está mais limpo não é em casa de mortos?”
Justinho não respondeu. Voltou costas e saiu da igreja. Ainda se afastava e a voz irada do padre se faz ouvir: — Já sei para onde vais, criaturazita. Vais ter com o feiticeiro! Mas verás o que os meus poderes, aliás os poderes divinos, irão fazer com esse bruxo tropical!”
Um arrepio ainda atravessou Justinho. Mas ele não toldou passo no caminho para o feiticeiro e pediu que lhe assegurasse. Heresia bater nos ambos lados da porta? Se um mortal tem mais que um deus-pai não pode ter mais que uma crença?
Isso não posso. Vontade de mulher está acima dos meus poderes. Posso, sim, destinar castigo nos abusadores.
E como?
Hei-de tratar sua casa.
E foi executado o tratamento: uma pequena cabaça à entrada da residência de madeira e zinco. Desrespeitoso que entrasse haveria de sofrer muitas consequências. O marido ainda tem acanhamento na consciência:
Eles... eles irão morrer?”
O feiticeiro ri-se. O que iria suceder eram inchaços e gases, tudo inflando as entranhas do culposo intrometedor. No final dos serviços e depois de saldadas as contas, o feiticeiro hesita no momento da despedida:
Você, antes de mim, consultou o senhor padre? E ele o que disse de mim?”
Justinho subiu as omoplatas, fosse um assunto superior a suas competências. O feiticeiro virou costas e se afasta, enquanto comenta:
Esse padre ainda vai chorar como a galinha. Conhece a história da galinha que comeu o colar das missangas só para a outra galinha não usar?”
Passaram-se dias e Justinho lá partiu. A viagem demora mais que ele pretende. Quando regressa, a mulher está à espera dele, à entrada. Vestido do gosto dele, penteada a presente, corpo todo na conveniência do marido. Até o botão cimeiro está desempregado, distraído sobre o decote. Acera, toda ela, está às ordens da saudade dele. Se engolfinham, enredando pernas nos suspiros, confundindo lábios e suores, vidas e corpos.
Cumpridos os compridos amores Justinho se estira na cama, consolado. Fecha os olhos, menino após o seio. Depois, olha para cima e é fulminado por uma visão: dois homens flutuam de encontro ao tecto. Estão redondos, insuflados como balões.
Mulher quem é aquilo?
Que aquilo?”
Levanta-se em gesto de lâmina e se espanta ainda mais ao reconhecer os desditosos ditos. E quem eram? O padre e o feiticeiro. Esses mesmos a que Justinho confiara a guarda de sua esposa. Esses mesmos estavam ali perspregados no teto.
Vocês, logo vocês?
Marido, está falar com quem?”
Gaguejadiço o marido aponta o teto. A mulher acredita que ele está em ataque de religiosidade, aspirando proximidades com o céu. Justinho insanou-se, epilétrico?
Acera ainda correu atrás do tresloucado marido. Mas o homem, de venta peluda, se eclipsou pelo escuro. Nem demorou: voltou com testemunhas. Fez introduzir uns tantos no quarto e apontou os autores do flagrante. Os outros ficaram, parvos da cara, sem nada vislumbrarem. Só Justinho via os voáveis amantes de sua mulher. E lhe explicam o padre e o feiticeiro não são possíveis ali Eles se ausentaram em breve excursão à cidade. Todos os viram partir, todos lhes acenaram à saída do machimbombo.
Os vizinhos lhe asseguram os bons comportamentos de Acera. Despedem-se, cuidando de o seguir, doente que estava o viajante. Dava até azar ter um desvairado daqueles no lugar. Mesmo o enfermeiro reformado lhe trouxe uns comprimidos de arrefecer o sangue. Justinho aceitou ficar estendido, a apurar descansos. Dava forma à cabeça, ajustava o pensamento à existência.
E todos e tanto insistiram que ele deixou de ver gente suspensa no tecto. Aos poucos se libertou das visões, manufaturas de suas ciumeiras. Noites há em que, de sobressalto, se levanta. Escuta risos. O padre e o feiticeiro se divertem à sua custa? Escuta melhor: não é gargalhada, é um pranto, um pedido de socorro. Incapazes de descer, os homens aprisionados no tecto lhe pedem uma aguinha, migalha de entreteter fome e sede. Os pobres já são só ar e osso.
A voz de Acera o traz à realidade: venha marido, se deite. Se acalme. Não quer dormir comigo? Durma em mim, então. Não me quer atravessar? Me use de travesseiro. Isso, descanse, meu amor. E o tempo passava, compondo semana e mais semana. Justinho não melhora. Mais e mais escuta as lamentações dos dois que agonizam dentro das suas paredes.
Até que, uma noite, ele acordou estremunhado. Não eram já os gemidos dos moribundos mas uma estrangeira acalmia. Olhou por entre o escuro e viu Acera vagueando, o pé pedindo licença ao silêncio. O marido nem se mexeu, desejoso de decifrar a misteriosa deambulação da mulher. Então ele viu que Acera subia para um banco e, com um cordel, amarrava o padre e o feiticeiro pela cintura. E assim, atados como balões, ela os transportou para fora de casa. No quintal, Acera limpou no rosto do padre uma lágrima e beijou a face do feiticeiro. Depois, largou os cordéis e os dois insufláveis começaram a subir pelos ares, atravessando nuvens e extinguindo-se no céu e nas pupilas espantadas de Justinho Salomão.
Nessa noite, os habitantes da vila assistiram à lua se obscurecer naquilo que viria a ser um derradeiro e permanente eclipse.
Mia Couto, in Contos do nascer da Terra

domingo, 28 de agosto de 2016

Não procureis qualquer nexo naquilo

Não procureis qualquer nexo naquilo
que os poetas pronunciam acordados,
pois eles vivem no âmbito intranquilo
em que se agitam seres ignorados.

No meio de desertos habitados
só eles é que entendem o sigilo
dos que no mundo vivem sem asilo
parecendo com eles renegados.

Eles possuem, porém, milhões de antenas
distribuídas por todos os seus poros
aonde aportam do mundo suas penas.

São os que gritam quando tudo cala,
são os que vibram de si estranhos coros
para a fala de Deus que é sua fala.
Jorge de Lima

Sueldo Soares - Tulipa Negra

História de pescador

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O velho era eu; o mar, o nosso; mas a novela é bem menor que a de Hemingway.
Na véspera ouvíramos uma notícia espantosa: um marlin fora visto na Praia Azedinha. Não contarei onde fica a Azedinha; quem sabe, sabe, quem não sabe procure no mapa; não achará, e a nossa prainha continuará como é, pequena e doce, escondida do mundo. A notícia era absurda: os marlins costumam passar a muitas milhas da costa, assim mesmo só quando tem iate de gente bem lá, como o Sr. Raymundo Castro Maya, o Sr. Betty Faria, por exemplo. Pois uma senhora o viu no rasinho, junto da pedra. As senhoras veem muita coisa no mar e no ar, que não há; mas Manuel também viu, e Manuel é pescador de seu ofício, e quando lhe mostramos a fotografia de um marlin disse: “Era esse mesmo.”
Não acreditamos — mas passamos a manhã inteira no barco, para um lado e outro. Fomos até a Ilha d’Ancora; de lá inda botamos proa para leste muito tempo, até chegar à água azul, e nada. Matamos uma cavala, um bonito, dois flaminguetes, pescamos de fundo e de corrico, voltamos sem esperança, de repente vimos uma coisa preta no mar. Que monstro do mar seria? Era grande o bicho dono daquela nadadeira, talvez um enorme cação; chegamos lá, era um peixe imenso e estranho que eu nunca tinha visto, e Zé Carlos diagnosticou ser peixe-lua, com uma cabeça enorme e um corpo curto, e Manuel confirmou: “Lá fora, no Mar Novo, eles tratam de rolão.” O bicho rolava sobre si mesmo, na verdade, perto da laje da Emerência.
Na volta eu peguei o caniço menor com linha de 9 libras, quem sabe que naquela laje perto de terra eu não matava uma enchovinha distraída? Botei o menor corocoxô de penas, passamos rente à laje do Criminoso, senti um puxão forte. Dei linha. Zé Carlos me orientava aos berros, Manuel achava que o anzol tinha é pegado na pedra, eu no fundo do meu coração achei que era o marlin. Não era, como vereis. Só ficamos sabendo o que era no fim de meia hora, na primeira vez que o bicho consentiu em vir à tona: um olho-de-boi que tinha seus vinte e cinco quilos; no mínimo vinte, isso nem tem dúvida, na pior hipótese deixo por dezoito; mas sei que estou fazendo uma injustiça.
Era grande e forte; logo disparou para o fundo, eu rodava a carretilha para um lado, ele puxava a linha para o outro; no que ele cansava um pouco, eu fazia força, ele vinha vindo a contragosto como um burro empacado, depois ganhava distância outra vez.
Tinha uma marca amarela na linha, parecia que lá do fundo ele estava vendo aquela marca. Quando chegava nela, e a marca ia sendo enrolada, ele disparava novamente. Meu braço esquerdo já estava doído de aguentar a iba na cortiça, o polegar da mão direita ferido no molinete, eu suava litros.
Agora vem...” Eu sentia que ele tinha desistido no momento de se entocar numa pedra, estava mais perto da flor d’água, porém muito longe. “Está velando”, dizia o Manuel; mas afundava outra vez, eu travava a linha quase toda, baixava o caniço para folgar um instante, puxava, ele ganhava mais cinco, dez braças para o fundo. Duas vezes Manuel chegou a pegar o bicheiro para fincar no animal, que sumia novamente. Meu polegar estava em carne viva, eu tinha de pegar a manivela com os outros dedos contra a palma da mão; dava vontade de desistir, mais de uma hora e quinze de briga, meu braço tenso tremia, eu tinha de passar a mão na testa para afastar o suor que escorria para os olhos, estava praticamente exausto de músculos e de nervos, tive de apelar para o caráter — eu não podia ter menos caráter que aquele miserável olho-de-boi que no Rio eles chamam de pintagola e no Nordeste eles tratam de arabaiana!
Determinei que ele não havia de me partir a linha; aproveitava a mínima folga para puxá-lo. De uma vez que veio à tona ele entendeu de se meter debaixo do barco; agora ele surge à popa, dá uma súbita guinada para boreste, volta... Estou de pé, o cabo do caniço fincado na barriga, suando, fazendo força, Manuel ergue o bicheiro...
Acabou a novela: Zé Carlos fizera a hélice rodar, o arabaiana viu tudo, deu uma volta à ré, afundou, andou em roda, a hélice pegou a linha e partiu, adeus, olho-de-boi, meu recorde internacional de linha de 9 libras, para sempre adeus! Ficaste por esse mar de Deus com meu corocoxô de penas, meu anzol, uma quina amarela e umas braças de linha, adeus!
Rubem Alves, in Ai de ti, Copacabana