quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Sequazes

“Toda tolice, por mais grosseira que seja, sempre encontra sequazes.”
Erasmo de Rotterdam

Para ser Feliz

Reconhecimento do amor

Os caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suave
Onde se reclina a inquietação do forte
(Ou que forte se pensa ingenuamente).
Trazias nos olhos pensativos
A bruma da renúncia:
Não queiras a vida plena,
Tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,
Não pedias nada,
Não reclamavas teu quinhão de luz.
E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.

Descansei em ti meu feixe de desencontros
E de encontros funestos.
Queria talvez - sem o perceber, juro -
Sadicamente massacrar-se
Sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam
Desde a hora do nascimento,
Senão desde o instante da concepção em certo mês perdido
na História,
Ou mais longe, desde aquele momento intemporal
Em que os seres são apenas hipóteses não formuladas
No caos universal

Como nos enganamos fugindo ao amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
Sua espada coruscante, seu formidável
Poder de penetrar o sangue e nele imprimir
Uma orquídea de fogo e lágrimas.

Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
Em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
Que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
Ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
O Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
Quando - por esperteza do amor - senti que éramos um só.

Amiga, amada, amada amiga, assim o amor
Dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
Com o olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
E a pura essência em que nos transmutamos dispensa
Alegorias, circunstâncias, referências temporais,
Imaginações oníricas,
O voo do Pássaro Azul, a aurora boreal,
As chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
Todas as imposturas da razão e da experiência,
Para existir em si e por si,
À revelia de corpos amantes,
Pois já nem somos nós, somos o número perfeito: UM.

Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
E se confessasse jubilosamente vencido,
Até respirar o júbilo maior da integração.
Agora, amada minha para sempre,
Nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar
A melodia, a paisagem, a transparência da vida,
Perdidos que estamos na concha ultramarina de amar.
Carlos Drummond de Andrade

Luta eterna

“Deus, para a felicidade do homem, inventou a fé e o amor. O Diabo, invejoso, fez o homem confundir fé com religião e amor com casamento.”
  Machado de Assis  

Ano Novo

Fonte: brazilwonders.tumblr.com

Mais humildade, por favor!

“Geralmente o indivíduo de procedência humilde, sentindo-se colocado em um plano superior, fica pretensioso, torna-se fátuo e pedante. Comigo dá-se exatamente o contrário; sempre que alguém elogia qualquer coisa que eu faço, julgo estar aquém do juízo feito a meu respeito. E daí tornar-me acanhado, tímido, medroso. Consequência talvez da educação, defeito orgânico talvez.”
Graciliano Ramos 

Vida vasta e profunda

“A vida é tão imensamente vasta e profunda quanto este abismo estrelado acima de nós. Só se pode atirar um olhar a ele através desta minúscula abertura que é a nossa existência pessoal. E, por esta abertura, sentimos mais do que vemos. Por isso temos de nos certificar de que esta abertura está sempre limpa.”
Franz Kafka

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O solitário e a expressão

Viajante Acima de um mar de nuvens
Viajante acima de um mar de nuvens (1818), de Casper David Friedrich

“O solitário leva uma sociedade inteira dentro de si: o solitário é multidão. E daqui deriva a sua sociedade. Ninguém tem uma personalidade tão acusada como aquele que junta em si mais generalidade, aquele que leva no seu interior mais dos outros. O gênio, foi dito e convém repeti-lo frequentemente, é uma multidão. É a multidão individualizada, e é um povo feito pessoa. Aquele que tem mais de próprio é, no fundo, aquele que tem mais de todos, é aquele em quem melhor se une e concentra o que é dos outros.
(...) O que de melhor ocorre aos homens é o que lhes ocorre quando estão sozinhos, aquilo que não se atrevem a confessar, não já ao próximo mas nem sequer, muitas vezes, a si mesmos, aquilo de que fogem, aquilo que encerram em si quando estão em puro pensamento e antes de que possa florescer em palavras. E o solitário costuma atrever-se a expressá-lo, a deixar que isso floresça, e assim acaba por dizer o que todos pensam quando estão sozinhos, sem que ninguém se atreva a publicá-lo. O solitário pensa tudo em voz alta, e surpreende os outros dizendo-lhes o que eles pensam em voz baixa, enquanto querem enganar-se uns aos outros, pretendendo acreditar que pensam outra coisa, e sem conseguir que alguém acredite.”
Miguel de Unamuno, in Solidão

Crime moral

“Nenhum código, nenhuma instituição humana pode prevenir o crime moral que mata com uma palavra. Nisso consta a falha das justiças sociais; aí está a diferença que há entre os costumes da sociedade e os do povo; um é franco, outro é hipócrita; a um, a faca, à outra, o veneno da linguagem ou das ideias; a um a morte, à outra a impunidade.”
Honoré de Balzac, in O Contrato de Casamento

Imortalidade? Só para ricos

www.willtirando.com.br

O que restou?

“O que restou dos agonizantes do Camboja? Uma grande foto da atriz americana segurando nos braços uma criança amarela. O que restou de Tomás? Uma inscrição: Desejava o Reino de Deus sobre a Terra. O que restou de Beethoven? Um homem triste com uma incrível cabeleira, que enuncia com voz de soturna ‘Es muss sein!’. O que restou de Franz? Uma inscrição: Depois de um longo afastamento, o retorno. E assim por diante, e assim por diante. Antes de sermos esquecidos, seremos transformados em kitsch. O kitsch é a estação intermediária entre o ser e o esquecimento.”
Milan Kundera, in A insustentável leveza do ser

Outro tempo

Google Imagens

“Havia um tempo de cadeiras na calçada. Era um tempo em que havia mais estrelas. Tempo em que as crianças brincavam sob a claraboia da lua. E o cachorro da casa era um grande personagem. E também o relógio da parede! Ele não media o tempo simplesmente: ele meditava o tempo.”
Mário Quintana, in Caderno H

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Coisas do Brasil: Chapada dos Guimarães, Mato Grosso

Dormir para sonhar

"Ontem eu custei um pouco pra reconhecer o prédio. Foi necessário que a gente localizasse uma coluna, que está meio disfarçada, no meio de paredes. Só que quando nós achamos essa coluna, que ficava junto às salas de tortura, eu reconheci o prédio. Junto a essa coluna ficava um banco encostado. Como eram duas as salas de tortura, e nós éramos três, eles colocavam um em cada sala, pra tomar sessões de choque; uma das salas tinha o pau de arara, pra pendurar no pau de arara, e o outro ficava sentado, era bem do lado, quem sentasse nessa cadeira ouvia os que estavam sendo torturados. Era uma maneira que eles utilizavam para que aquele que estivesse esperando se autotorturasse, ficasse imaginando, ficasse configurando na sua cabeça o que aconteceria com ele. No momento em que eu fui colocado nesse banco, sempre algemado para trás, pensei: “Como é que eu posso me livrar dessa situação? Como é que eu posso amenizar isso?”. Decidi: “Só tem uma forma de fazer isso: dormir”. Então encostei nessa coluna e disse: “Bom, é sua obrigação revolucionária, obrigação moral de dormir”. Aí eu dormi. Depois disso, isso me ajudou enormemente, porque eu aprendi a dormir, nunca depois disso tive um problema de insônia, os poucos momentos que eu ficava na cela dormia esbragadamente. Quando vinham, jogavam a comida por baixo e eu empurrava com o pé de volta, e continuava dormindo. Porque, enquanto eu dormia, podia sonhar. Eu estava na praia, eu estava continuando a fazer as coisas, estava entrando em quartéis, tomando os quartéis, levando as armas que deveriam estar em poder do povo. Aprendi a dormir.”

Antônio Roberto Espinosa, depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em 24 de janeiro de 2014.

Um pouco de Beleza e Verdade

Para quê alcançar os astros?! Para quê?! Para os desfolhar, por exemplo, como grandes flores de luz! Vê-los, vê-os toda a gente. De que serve então ser poeta se se é igual à outra gente toda, ao rebanho?... Eu não peço à Vida nada que ela me não tivesse prometido, e detesto-a e desdenho-a porque não soube cumprir nem uma das suas promessas em que, ingenuamente, acreditei, porque me mentiu, porque me traiu sempre. Mas não choro, não, como os portugueses chorões, não tenho nada de Jere­mias, pareço-me antes com Jó, revoltado, gritando impreca­ções no seu monte de estrume. Não gosto de lágrimas, de fados nem de guitarras, gosto das belas coisas claras e sim­ples, das grandes ternuras perfeitas, das doces compreensões silenciosas, gosto de tudo, enfim, onde encontro um pouco de Beleza e de Verdade, de tudo menos do bípede humano, em geral, é claro, porque há ainda no mundo, graças a Deus, almas-astros onde eu gosto de me refletir, almas de sinceri­dade e de pureza sobre as quais adoro debruçar a minha.
Florbela Espanca, in Correspondência (1930)

Quase Nada 296

Quase Nada 296
www.10paezinhos.com.br

Não te arruínes, alma, enriquece

Centro da minha terra pecadora,
alma gasta da própria rebeldia,
porque tremes lá dentro se por fora
vais caiando as paredes de alegria?
Para quê tanto luxo na morada
arruinada, arrendada a curto prazo?
Herdam de ti os vermes? Na jornada
do corpo te consomes ao acaso?
Não te arruínes, alma, enriquece:
vende as horas de escória e desperdício
e compra a eternidade que mereces,
sem piedade do servo ao teu serviço.
Devora a Morte e o que de nós terá,
que morta a Morte nada morrerá.
William Shakespeare, tradução de Carlos de Oliveira

Desejo de ser infeliz


“Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.
Em suma – disse Mustafá Mond -, o senhor reclama o direito de ser infeliz.
- Pois bem, seja – retrucou o Selvagem em tom de desafio. – Eu reclamo o desejo de ser infeliz.”
Aldous Huxley, in Admirável mundo novo

Respostas

“O homem de maior espírito, não é o de uma única resposta, nem o da resposta mais constante, mas o de várias respostas ao mesmo tempo, e o mais mutável quanto à certeza delas.”
Lúcio Cardoso, in Diários

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Tributo a Antônio Carlos Jobim

Fonte

Não há autoridade do autor

“Não há verdadeiro sentido de um texto. Não há autoridade do autor. Quisesse dizer o que quisesse, escreveu o que escreveu. Uma vez publicado, um texto é como um aparelho de que cada um se pode servir à sua maneira e segundo os seus meios: não é certo que o construtor o use melhor do que outro qualquer.”
Paul Valéry, in A Propósito do Cemitério Marinho

Hagar, o Horrível

Escuta ao silêncio


“Escuta ao silêncio – disse Margarida, e a areia sussurrou debaixo de seus pés descalços. – Escuta e deleita-te com aquilo que nunca tiveste na vida: tranquilidade. Olha, além em frente, a tua casa eterna, que recebeste como recompensa. Já vejo a janela veneziana e a vinha virgem que trepa até o telhado. Eis a tua casa, a tua casa para a eternidade. Sei que à noite virão visitar-te aqueles que te amam, aqueles por quem te interessas e que não te inquietarão. Eles tocarão para ti, cantarão para ti, verás que luz haverá no quarto quando as velas estiverem acesas! Adormecerás com teu eterno barrete engordurado, adormecerás com um sorriso nos lábios. O sono dar-te-á forças começarás a raciocinar sabiamente. E nunca mais ousarás mandar-me embora. Eu velarei teu sono.”
Mikhail Bulgakov, in Mestre e Margarida

Princípio e fim

"As coisas não começam do princípio como se cuida, senão do fim. O fim porque as empreendemos, começamos e prosseguimos, esse é o seu primeiro princípio, por isso ainda que sejam indiferentes, o fim, segundo é bom ou mau, as faz boas ou más."
Padre Antônio Vieira, in Sermões

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Mariana Aydar e João Bosco - Incompatibilidade de Gênios

Comovo-me

Fonte: brazilwonders.tumblr.com

Este corpo não sou eu

Este corpo não sou eu; Eu não estou apegado a este corpo,
Eu sou vida sem limites,
Eu nunca cheguei a nascer e eu nunca cheguei a morrer.
Logo ali, o vasto oceano e o céu com muitas galáxias
Todas se manifestam a partir da consciência primordial.
Desde o tempo sem início eu sempre fui livre.
Nascimento e morte são apenas uma porta por onde nós entramos e saímos.
Nascimento e morte são apenas um jogo de esconde-esconde.
Então sorria para mim e pegue a minha mão e me dê adeus.
Amanhã devemos nos encontrar novamente, ou mesmo antes.
Nós devemos sempre nos encontrar novamente na verdadeira fonte,
Sempre nos reencontrando na miríade de caminhos da vida.
Thich Nhat Hanh

Aquário

Google Imagens

“As pessoas creem perseguir as estrelas e acabam como peixes-vermelhos num aquário. Fico pensando se não era mais simples ensinar desde o início às crianças que a vida é absurda. Isso privaria a infância de alguns bons momentos, mas faria o adulto ganhar um tempo considerável – sem falar que, pelo menos, seriámos poupados de um traumatismo, o do aquário.”
Muriel Barbery, in Elegância do ouriço

Olhos cor de céu (trecho)

“(…) confessou que andava farto das reuniões sempre iguais e sem graça da pretensa POESIA NOVA. a poesia continua sendo a maior picaretagem de esnobes no terreno das Artes, com panelinhas literárias lutando por  prestígio. ainda acho que o maior antro de pedantes inventado até hoje foi o velho grupo da MONTANHA NEGRA. e Creeley continua sendo temido, dentro e fora das universidades – temido e admirado -, mais que qualquer outro poeta. depois temos os acadêmicos, que, como Creeley, escrevem tudo certinho. no fundo, a poesia de maior aceitação hoje em dia ocupa uma redoma de vidro, vistosa e escorregadia, e aquecida pelo sol ali dentro existe uma junção de palavras formando um todo meio metálico e desumano ou um ângulo semiescondido. é uma poesia para milionários e gordos desocupados, e portanto sempre conta com mecenas e sobrevive, pois o segredo consiste em reunir um bando de eleitos e o resto que se foda. mas é uma poesia sem vida, chatérrima, a tal ponto que a sua insipidez é interpretada como possuindo um significado oculto – o significado está oculto, evidentemente, e de maneira tão perfeita que é o mesmo que se não existisse. mas se VOCÊ não consegue descobri-lo, é por falta de alma, sensibilidade e não sei mais o quê, portanto TRATE DE DESCOBRIR SENÃO VAI SE SENTIR HUMILHADO. e se por acaso não descobrir, então, BICO CALADO.
a todas essas, cada 2 ou 3 anos, algum acadêmico, querendo garantir seu lugar na hierarquia universitária (e se você pensa que o Vietnã é um inferno, precisa ver o que acontece entre essas chamadas sumidades em matéria de guerras de intriga e poder dentro de seus próprios cubículos), apresenta a mesma velha antologia de poemas sintéticos e sem culhões com o rótulo de A NOVA POESIA ou A NOVÍSSIMA POESIA, que sempre vem a dar no mesmo baralho de cartas marcadas.”
Charles Bukowski, in Fabulário geral do delírio cotidiano: ereções, ejaculações e exibicionismo: parte II

O Brasil possível de "Brincante"



Um dos mais lamentáveis subprodutos da polarização exacerbada das últimas eleições no Brasil foi o reavivamento de um odioso e burro preconceito contra o Nordeste e seu povo. Brincante, de Walter Carvalho, é o melhor antídoto a essa estupidez. Pois boa parte da riqueza e diversidade da cultura nordestina encontra-se ali, condensada e catalisada na figura de um artista ímpar, o músico, dançarino, coreógrafo, cantor, compositor, ator e malabarista pernambucano Antônio Nóbrega.
Não se trata propriamente de um documentário, no sentido convencional do termo, mas de uma viagem poética pelo universo de Nóbrega, tendo como eixo a trajetória de seu personagem mais emblemático, o picaresco Tonheta.
A narrativa, heterogênea e episódica, acompanha peripécias de Tonheta – quase sempre contracenando com Rosane Almeida, parceira artística e amorosa de Nóbrega – e, paralelamente, o deslocamento geográfico do casal, dos confins do sertão até a grande metrópole, São Paulo.
Fábula e documento
O tom de fábula, em que a linguagem dramatúrgica e visual é a do circo, ou antes a do tradicional teatro de mamulengo, alterna-se com o registro mais propriamente documental de ensaios e apresentações de rua dos espetáculos de Nóbrega. São vasos comunicantes, que se completam e se transfundem.
É nas ruas de São Paulo que o filme, a meu ver, ganha seu pleno sentido, diz a que veio, marca uma posição estética e política. Ao invadir com sua trupe lugares como o Minhocão, o vão livre do Masp, vagões e plataformas do metrô, o parque Trianon ou os fervilhantes calçadões do centro velho, Nóbrega efetua uma ressignificação dos espaços, fazendo imperar por um momento no reino do trabalho e do automóvel o homo ludens. (Não por acaso, o livro de Johan Huizinga com esse título aparece brevemente nas mãos do artista.)
Pois não se trata de “preservar manifestações folclóricas” como se fossem peças de museu ou de turismo, mas de captar sua potência e infundir sua vitalidade no presente e no futuro. Para isso é preciso criar, transformar, dialogar com outras referências. Com Nóbrega e seus parceiros-discípulos, o frevo, o maracatu, o samba de roda, a capoeira e o forró aparecem transfigurados e estilizados como dança moderna e universal. A raiz em comunicação com o cosmo, o regional com o planetário.
Contraste e estranhamento
Senhores absolutos do enquadramento e da luz, Walter Carvalho e seu diretor de fotografia Jacques Cheuiche usam sua arte para potencializar a arte de Antônio Nóbrega, sem sobrepor-se a ela, sem “perfumar a flor”, como diria João Cabral de Melo Neto. O mesmo se pode dizer da cenografia e dos figurinos.
As cores exuberantes, o forte contraste, a luz noturna irreal das cenas de Tonheta estão em perfeito acordo com o tom fabular da narrativa, bem como, no outro extremo, o monocromatismo da extraordinária sequência de dança em que homens nascem dramaticamente da terra sob os acordes pungentes da Bachiana nº 4 de Villa-Lobos. Se a arquitetura niemeyeriana do Auditório Ibirapuera é abstrata, asséptica e bicromática (branca e vermelha), os dançarinos que a invadem vestem-se com roupas prosaicas e cotidianas de texturas e cores diversas. Há sempre um elemento de contraste e estranhamento, uma faísca de inquietação.
Num filme repleto de momentos luminosos, em que a decupagem e a montagem realçam a vibração poética de Nóbrega, talvez o mais antológico e significativo seja aquele em que o artista, caminhando e dançando na contramão de um mar de gente numa rua do centro paulistano, canta os versos de sua canção “Chegança”, em que um índio, ao ser surpreendido em sua rede pelos homens armados de uma esquadra portuguesa, levanta-se de borduna na mão e diz: “O Brasil vai começar”. Está começando até agora.
José Geraldo Couto, in www.blogdoims.com.br

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Autoridade do mito


“O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um Mistério, porque as personagens do mito não são seres humanos: são Deuses ou heróis civilizadores, e por esta razão as suas gestas constituem Mistérios: o homem não poderia conhece-los se lhos não revelassem. O mito é pois a história que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os Deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do Tempo. ‘Dizer’ um mito é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez ‘dito’, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade apodítica: funda a verdade absoluta. ‘É assim, porque foi dito que é assim’, declaram os Eskimo netsilik a fim de justificarem a validade de sua história sagrada e de suas tradições religiosas. O mito proclama a aparição de uma nova ‘situação’ cósmica ou de um acontecimento primordial. Portanto, é sempre a narração de uma ‘criação’: conta-se como é que qualquer coisa foi efetuada, começou a ser.”
Mircea Eliade, in O sagrado e o profano – a essência das religiões

Rasgue

Fonte: paradoxos

Ler é saúde


“Para entreter curiosidades, o velho Alfredo oferecia livros ao menino e convencia-o de que ler seria fundamental para a saúde. Ensinava-lhe que era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer. Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente. O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito e dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, fique pois sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu funeral dentro de poucas semanas. O caixão fechava-se com um livro.”
Valter Hugo Mãe, in O filho de mil homens

Beleza no céu e na terra: Itacoatiara, Rio de Janeiro

Por @claramtorres

Visitas ao penhasco

“Em todo caso, eu não contaria sobre minhas visitas ao penhasco, porque os adultos não ouvem o que as crianças têm a dizer. Não de verdade. Se ouvissem, olhariam nos meus olhos quando eu falo, olhariam de verdade, sincera e profundamente, dispostos a escutar o que quer que saísse da minha boca, prontos para qualquer coisa. Não conheço nenhum adulto que já tenha olhado para mim desse jeito, nem mesmo meus pais. Por isso, as coisas boas, tudo de bom que já vi e presenciei, incluindo as idas ao penhasco, eu guardo para mim mesma. Minha família não faz parte disso.”
Crystal Chan, in Passarinho

domingo, 7 de dezembro de 2014

Pagando pra Ver, com o cantor mossoroense Everaldo Rodrigues

Amalfitano


“A primeira impressão que os críticos tiveram de Amalfitano foi mais para ruim, perfeitamente e acordo com a mediocridade do lugar, só que o lugar, a extensa cidade no deserto, podia ser visto como algo típico, algo cheio de cor local, mais uma prova da riqueza muitas vezes atroz da paisagem humana, enquanto Amalfitano só podia ser visto como um náufrago, um sujeito descuidado no vestir, um professor inexistente em uma universidade inexistente, o soldado raso de uma batalha perdida de antemão contra a barbárie.”
Roberto Bolaño, in 2666

Terra de gigantes

Foto: Terra de Gigantes
http://bit.ly/1yK8muZ

Beleza angelical

Cansado da sua beleza angélica, o Anjo vivia ensaiando caretas diante do espelho. Até que conseguiu a obra-prima do horror. Veio, assim, dar uma volta pela Terra. E Lili, a primeira meninazinha que o avistou, põe-se a gritar da porta para dentro de casa: “Mamãe! Mamãe! Vem ver como o Frankenstein está bonito hoje!”
Mário Quintana, in Caderno H

Mudanças

“Você tem que ser o espelho da mudança que está propondo. Se eu quero mudar o mundo, tenho que começar por mim.”
Mahatma Gandhi

Genético


Estávamos na praia tomando umas cervejinhas e, Arturzinho, meu filho mais novo, que na ocasião com apenas seis anos, pediu à sua mãe um guaraná e foi atendido prontamente. Passado alguns minutos ele pediu um outro e novamente foi atendido. Pouco tempo depois, ele pediu o terceiro guaraná e a sua mãe lhe disse: Tá bom, meu filho, você já tomou dois guaranás e ainda quer o terceiro? Aí ele saiu com essa: O que é que tem, vocês não tomaram vinte cervejas e ainda estão bebendo?
Alcides Andrade de Oliveira Júnior, in Causos do Pirata

Nas entrelinhas

“Aí está onde eu queria chegar: milhares de coisas estão subentendidas. Nas entrelinhas. O lado omisso. Quero a verdade, MN, meu amado, escuta, entenda isso, quero a verdade. E você sugere reticências. Omissões.”
Lygia Fagundes Telles, in As meninas

sábado, 6 de dezembro de 2014

Acreditar na beleza


“Chang achava que os sonhos continham previsões (terá sonhado com o que aconteceu? Nunca saberemos).
Lavínia lia o futuro nas estrelas (onde quer que esteja, sabe que hoje é dia de trânsito de Urano, o deus vagaroso).
E eu, no que acreditava? Difícil dizer.
Talvez na beleza, a única coisa que me pôs de joelhos do mundo. À minha maneira, eu seguia nesse tipo de religião.”
Marçal Aquino, in Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

Ponto do amor

eumechamoantonio.tumblr.com

Falta

“Falta-nos qualquer coisa, a nós todos; a única diferença é que uns sentem, outros não.”
Unamuno

Amuleto

www.ultimaquimera.com.br

Imaculada humanidade


“Aquela imaculada humanidade que sentimos dentro de nós, tão longe dentro de nós, que permanece intacta quando todo o bom nome exterior parece ter-se esvaído, sangra com a mais lancinante dor ao contemplar o indisfarçado espetáculo de um homem de bravura arruinada. Nem a própria piedade, ante uma visão tão vergonhosa, pode sufocar completamente suas censuras aos astros que permitiram isso. Mas essa augusta dignidade de que falo não é a dignidade de reis e mantos, mas aquela rica dignidade que empunha uma picareta ou prega um prego; aquela dignidade democrática que, sobre todos os trabalhadores, irradia infinitamente de Deus; do próprio Deus!”
Herman Melville, in Moby Dick

Complementar

“Tudo é complementar e tudo é dependente. Cada contrário é necessário à transformação.”
Xenófanes

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Cicero - Pelo Interfone

Verdades efêmeras

“E que em qualquer lugar em que estivessem se lembrassem sempre de que o passado era mentira, que a memória não tinha caminhos de regresso, que toda primavera antiga era irrecuperável e que o amor mais destinado e tenaz não passava de uma verdade efêmera.”
Gabriel Garcia Márquez, in Cem anos de solidão

Retrato

Foto

A virtude e a riqueza

“A virtude não provém da riqueza, mas sim que a virtude é que traz a riqueza ou qualquer outra coisa útil aos homens, quer na vida pública, quer na vida privada.”
Sócrates

Perder aquilo que não possui

“Não podes possuir um ser humano. Não podes perder aquilo que não possuis. Supõe que eras o dono dele. Poderias realmente amar alguém que não é absolutamente nada sem ti? Queres realmente alguém assim? Alguém que cai por terra mal sais pela porta? Não queres, pois não? E ele também não. Estás a virar toda a tua vida para ele. Toda a tua vida, jovem. E se isso significa tão pouco para ti que podes simplesmente jogá-la fora, entregar-lha, então porque é que isso significaria alguma coisa mais para ele? Ele não pode valorizar-te mais que o valor que te dás a ti própria.”
Toni Morrison, in Song of Solomon

Aquarela Brasileira: Favela da Rocinha, Rio de Janeiro

E por falar em ladrão de galinhas...


Pegaram o cara em flagrante roubando galinhas de um galinheiro e levaram para a delegacia.
- Que vida mansa, hein, vagabundo? Roubando galinha para ter o que comer sem precisar trabalhar. Vai para cadeia!
- Não era para mim não. Era para vender.
- Pior. Venda de artigo roubado. Concorrência desleal com o comércio estabelecido. Sem-vergonha!
- Mas eu vendia mais caro.
- Mais caro?
- Espalhei o boato que as galinhas do galinheiro eram bichadas e as minhas não. E que as do galinheiro botavam ovos brancos enquanto as minhas botavam ovos marrons.
- Mas eram as mesmas galinhas, safado.
- Os ovos das minhas eu pintava.
- Que grande pilantra... Mas já havia um certo respeito no tom do delegado.
- Ainda bem que tu vai preso. Se o dono do galinheiro te pega...
- Já me pegou. Fiz um acerto com ele. Me comprometi a não espalhar mais boato sobre as galinhas dele, e ele se comprometeu a aumentar os preços dos produtos dele para ficarem iguais aos meus. Convidamos outros donos de galinheiro a entrar no nosso esquema. Formamos um oligopólio. Ou, no caso, um ovigopólio.
- E o que você faz com o lucro do seu negócio?
- Especulo com dólar. Invisto alguma coisa no tráfico de drogas. Comprei alguns deputados. Dois ou três ministros. Consegui exclusividade no suprimento de galinhas e ovos para programas de alimentação do governo e superfaturo os preços.
O delegado mandou pedir um cafezinho para o preso e perguntou se a cadeira estava confortável, se ele não queria uma almofada. Depois perguntou:
- Doutor, não me leve a mal, mas com tudo isso, o senhor não está milionário?
- Trilionário. Sem contar o que eu sonego de Imposto de Renda e o que tenho depositado ilegalmente no exterior.
- E, com tudo isso, o senhor continua roubando galinhas?
- Às vezes. Sabe como é.
- Não sei não, excelência. Me explique.
- É que, em todas essas minhas atividades, eu sinto falta de uma coisa. Do risco, entende? Daquela sensação de perigo, de estar fazendo uma coisa proibida, da iminência do castigo. Só roubando galinhas eu me sinto realmente um ladrão, e isso é excitante. Como agora. Fui preso, finalmente. Vou para a cadeia. É uma experiência nova.
- O que e isso, excelência? O senhor não vai ser preso não.
- Mas fui pego em flagrante pulando a cerca do galinheiro!
- Sim. Mas primário, e com esses antecedentes...
Luís Fernando Veríssimo

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

O que o homem verdadeiramente ama

“Os homens não amam aquilo que cuidam que amam. Por quê? Ou porque o que amam não é o que cuidam; ou porque amam o que verdadeiramente não há. Quem estima vidros, cuidando que são diamantes, diamantes estima e não vidros; quem ama defeitos, cuidando que são perfeições, perfeições ama, e não defeitos. Cuidais que amais diamantes de firmeza, e amais vidros de fragilidade: cuidais que amais perfeições Angélicas, e amais imperfeições humanas. Logo os homens não amam o que cuidam que amam. Donde também se segue, que amam o que verdadeiramente não há; porque amam as coisas, não como são, senão como as imaginam, e o que se imagina, e não é, não o há no mundo.”
Padre Antônio Vieira, in Sermões

Revista Formas - 165

http://issuu.com/revistaformas/docs/formas_165_-_web/1

Manter-se firme

“Se não cessas de correr, marulhando no ar tépido com as tuas mãos como natatórios, olhando furtivamente tudo diante de que passas no meio-sono apressado, acontecer-te-á também um dia deixar passar diante de ti o carro. Se te mantiveres firme, pelo contrário, com o poder do teu olhar fazendo crescer as raízes em profundidade e em comprimento - nada então te poderá eliminar - em virtude não das raízes mas da força do teu olhar que escruta - será então que verás o longínquo imutavelmente obscuro de onde nada pode surgir a não ser precisamente uma vez este carro que rola para ti, que se aproxima, cada vez maior e que, no próprio instante em que entras em tua casa, enche o mundo enquanto mergulhas nele como uma criança no banco acolchoado de uma diligência que corre através da tempestade e da noite.”
Franz Kafka, in Meditações

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Encomendação

A Manoel de Barros

Deus é uma grande aranha, pensou
manoel de barros. E agarrou um dos
fios da sua teia para subir, com
todo o cuidado de um tecedor
de palavras, até ao infinito. “E
onde está o deus que fabricou
tudo isto?”, perguntou ao chegar
à floresta que nasce no cume
dos sonhos. E um dos pavões,
de sílabas coloridas com as tintas
vermelhas e roxas do crepúsculo,
respondeu: “Deus vive na rede
dos teus versos.” E abriu a sua
cauda onde as cores da madrugada
reflectiam, como num espelho
de ouro poliédrico, o rosto de deus.
Nuno Júdice

Amortecer o choque de todos os males

“Aquele que temer a morte não fará jamais obra de homem; mas aquele que disser a si mesmo que, desde o instante em que foi concebido, sua sorte foi decidida, governará sua vida em conformidade com esta decisão; e por prêmio terá a vantagem, graças a este mesmo vigor da alma, de jamais se deixar surpreender por qualquer acontecimento que surja. Considerando antecipadamente tudo o que pode acontecer, como o que irá realmente acontecer, ele amortecerá o choque de todos os males; pois, para quem está preparado e a espera, a violência de todas as desgraças se abranda; e somente acham seus golpes terríveis os que se julgavam em segurança e que não tinham diante de si senão perspectivas felizes.”
Sêneca

Dezembro-me

Fonte: Paradoxos

Crônica

“Ah, essas pequenas coisas, tão quotidianas, tão prosaicas de um poema... Talvez a poesia não passe de um gênero de crônica, apenas: uma espécie de crônica da eternidade.”
Mário Quintana, in Caderno H

Renunciar à propriedade

“Decisão de renunciar à propriedade – historicamente de há muito é fato decadente, e individualmente é do mesmo modo fato ultrapassado. Lembrar-me de Vito Pentagna, que possuía tantas casas e me dizia sempre: gastei em tê-las e gasto em conservá-las muito mais tempo do que o prazer que elas me fornecem. Uma casa única, que sirva de porto, de ancoradouro – e quanto ao resto, o mundo todo é nosso.”
Lúcio Cardoso, in Diários

Um minutinho...

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terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O livro e a América

Talhado para as grandezas, 
Pra crescer, criar, subir,
 
O Novo Mundo nos músculos
 
Sente a seiva do porvir.
 
— Estatuário de colossos —
 
Cansado doutros esboços
 
Disse um dia Jeová:
 
"Vai, Colombo, abre a cortina
 
"Da minha eterna oficina...
 
"Tira a América de lá".

Molhado inda do dilúvio, 
Qual Tritão descomunal,
 
O continente desperta
 
No concerto universal.
 
Dos oceanos em tropa
 
Um — traz-lhe as artes da Europa,
 
Outro — as bagas de Ceilão...
 
E os Andes petrificados,
 
Como braços levantados,
 
Lhe apontam para a amplidão.

Olhando em torno então brada: 
"Tudo marcha!... Ó grande Deus!
 
As cataratas — pra terra,
 
As estrelas — para os céus
 
Lá, do pólo sobre as plagas,
 
O seu rebanho de vagas
 
Vai o mar apascentar...
 
Eu quero marchar com os ventos,
 
Com os mundos... co'os
 firmamentos!!!" 
E Deus responde — "Marchar!" 

"Marchar! ... Mas como?...  Da Grécia
 
Nos dóricos Partenons
 
A mil deuses levantando
 
Mil marmóreos Panteon?...
 
Marchar co'a espada de Roma
 
— Leoa de ruiva coma
 
De presa enorme no chão,
 
Saciando o ódio profundo. . .
 
— Com as garras nas mãos do mundo,
— Com os dentes no coração?... 

"Marchar!... Mas como a Alemanha
 
Na tirania feudal,
 
Levantando uma montanha
 
Em cada uma catedral?...
 
Não!... Nem templos feitos de ossos,
 
Nem gládios a cavar fossos
 
São degraus do progredir...
 
Lá brada César morrendo:
 
"No pugilato tremendo
 
"Quem sempre vence é o porvir!"

Filhos do século das luzes! 
Filhos da Grande nação!
 
Quando ante Deus vos mostrardes,
 
Tereis um livro na mão:
 
O livro — esse audaz guerreiro
 
Que conquista o mundo inteiro
 
Sem nunca ter Waterloo...
 
Eólo de pensamentos,
 
Que abrira a gruta dos ventos
 
Donde a Igualdade vooul...

Por uma fatalidade 
Dessas que descem de além,
 
O século, que viu Colombo,
 
Viu Guttenberg também.
 
Quando no tosco estaleiro
 
Da Alemanha o velho obreiro
 
A ave da imprensa gerou...
 
O Genovês salta os mares...
 
Busca um ninho entre os palmares
 
E a pátria da imprensa achou...

Por isso na impaciência 
Desta sede de saber,
 
Como as aves do deserto
 
As almas buscam beber...
 
Oh! Bendito o que semeia
 
Livros... livros à mão cheia...
 
E manda o povo pensar!
 
O livro caindo n'alma
 
É germe — que faz a palma,
 
É chuva — que faz o mar.

Vós, que o templo das ideias 
Largo — abris às multidões,
 
Pra o batismo luminoso
 
Das grandes revoluções,
 
Agora que o trem de ferro
 
Acorda o tigre no cerro
 
E espanta os caboclos nus,
 
Fazei desse "rei dos ventos"
 
— Ginete dos pensamentos,
 
— Arauto da grande luz! ...

Bravo! a quem salva o futuro 
Fecundando a multidão! ...
 
Num poema amortalhada
 
Nunca morre uma nação.
 
Como Goethe moribundo
 
Brada "Luz!" o Novo Mundo
 
Num brado de Briaréu...
 
Luz! pois, no vale e na serra...
 
Que, se a luz rola na terra,
 
Deus colhe gênios no céu!...
Castro Alves