quinta-feira, 31 de maio de 2012

Obras de Clarice Lispector ganham tradução em inglês

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É o momento Clarice Lispector - quinta-feira, as livrarias dos Estados Unidos começam a receber quatro livros ("Perto do Coração Selvagem", "Água Viva", "A Paixão Segundo G. H." e "Um Sopro de Vida") da grande escritora traduzidos para o inglês, todos pela editora New Directions, que já lançou no ano passado "A Hora da Estrela". O fato repercutiu na imprensa, com o jornal "Los Angeles Times" citando a frase de um antigo tradutor de Clarice (1920-1977), Gregory Rabassa, que comparava a autora brasileira a Marlene Dietrich (no traço físico) e a Virginia Woolf (no traço estilístico).
"A maneira chocante com que fala dos grandes temas é a característica de sua prosa que mais desperta atenção do leitor americano", acredita Benjamin Moser, organizador dos lançamentos e grande divulgador da prosa clariciana entre seus conterrâneos, especialmente depois de publicada a tradução em inglês de sua biografia Clarice, lançada em 2009 pela Cosac Naify. "São assuntos que, no nosso dia a dia, não temos coragem de enfrentar - a vida, a morte, o Deus - e que são os grandes temas universais, independentemente de detalhes superficiais, como a nacionalidade do leitor."
Os quatro volumes chegam com um delicado projeto gráfico: juntas, as capas reproduzem uma foto de Clarice jovem. E, em um canto, são reproduzidos elogios de personalidades literárias como Jonathan Franzen ("Uma escritora verdadeiramente notável"), Orhan Pamuk ("Uma das mais misteriosas autoras do século 20") e Colm Toíbín ("Um dos gênios ocultos do século 20"), além de uma citação do jornal "The New York Times" ("A principal escritora latino-americana de prosa do século").
Moser, que descobriu a escrita de Clarice na universidade, durante um curso sobre literatura brasileira em que se estudou "A Hora da Estrela", enriqueceu ainda a nova fornada de volumes com prólogos diversos, como o assinado por Caetano Veloso para "Perto do Coração Selvagem" e um surpreendente texto de cineasta Pedro Almodóvar que, ao recusar o convite de Moser para escrever sobre "Um Sopro de Vida", acaba tecendo vários elogios à autora.
Apesar do enorme sucesso, Benjamin Moser considera tardia a chegada da obra de Clarice ao mercado americano. E o que a mantinha tão afastada? "A resposta é simples: uma má tradução", acredita. "As antigas versões em inglês eram muito ruins. Tentaram preencher ou eliminar as estranhezas da linguagem de Clarice, de 'completá-la', sem entender que isso é que justamente fizeram de Clarice a escritora Clarice. Se conseguirmos na nova série fazer o leitor americano chegar mais perto do coração de Clarice, teremos sabido traduzir um pouco do encanto do seu português esquisito e belíssimo."
Como editor de séries da New Directions, Moser já planeja novos lançamentos - em seus planos, figuram "Contos Completos", além de uma obra infantil. Um trabalho de paciência, pois a dificuldade continua na tradução - alguns dos novos lançamentos, por exemplo, passaram por até oito versões. Mesmo assim, Moser orgulha-se de ter feito uma contribuição às letras americanas. "Trata-se de algo realmente revolucionário."
No Brasil, os livros de Clarice são um dos bens mais preciosos do catálogo da editora Rocco, que prepara vários lançamentos a partir do segundo semestre. Em outubro, por exemplo, deve sair a coletânea "Clarice na Cabeceira - Jornalismo", que vai reunir textos publicados na imprensa ao longo de quase quatro décadas.
Organizada por Aparecida Maria Nunes, a obra pretende oferecer uma amostra consistente da forma singular como Clarice praticava o jornalismo, seja no papel de repórter, entrevistadora, colunista de páginas femininas ou cronista, além de ajudar a traçar um perfil do próprio jornalismo brasileiro nesse período.
Ubiratan Brasil, in www.tribunaldonorte.com.br

Continuidade dos parques

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Havia começado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à chácara; deixava interessar-se lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta ao caseiro e discutir com o mordomo uma questão de uns aluguéis, voltou ao livro com a tranquilidade do gabinete que dava para o parque dos carvalhos. Esticado na poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma e outra vez o veludo verde e começou a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca ganhou-o quase imediatamente. Gozava do prazer quase perverso de ir descolando-se linha a linha daquilo que o rodeava e de sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto encosto, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que mais além das janelas dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra a palavra, absorvido pela sórdida disjuntiva dos heróis, deixando-se ir até as imagens que se combinavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do monte.
Antes entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, com a cara machucada pela chicotada de um galho. Admiravelmente ela fazia estalar o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não tinha vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se amornava contra seu peito e por baixo gritava a liberdade refugiada. Um diálogo desejante corria pelas páginas como riacho de serpentes e sentia-se que tudo estava decidido desde sempre. Até essas carícias que enredavam o corpo do amante como que querendo retê-lo e dissuadi-lo desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acasos, possíveis erros. A partir dessa hora cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo repasso sem dó nem piedade interrompia-se apenas para que uma mão acariciasse uma bochecha. Começava a anoitecer.
Já sem se olharem, atados rigidamente à tarefa que os esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao norte. Da direção oposta ele virou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu, por sua vez, apoiando-se nas árvores e nas cercas, até distinguir na bruma do crepúsculo a alameda que levava à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O mordomo não estaria a essa hora, e não estava. Subiu os três degraus da varanda e entrou. Do sangue galopando nos seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma galeria, uma escada carpetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e depois o punhal na mão, a luz das janelas, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance. 
Júlio Cortázar. Tradução de Idelber Avelar

SIC, de Oralandeli

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía. 
Luís Vaz de Camões, in Sonetos

“Nunca encontrei companheiro mais solidário do que a solidão”.
Henry David Thoreau

Sobre os estoicos

- Os estoicos, que o senhor parodia, foram gente admirável, mas a sua doutrina estratificou-se há dois mil anos, e não se moveu nem um pingo para a frente, e não se moverá, porquanto não é prática, vital. Ela teve êxito somente com a minoria que passava a vida e saboreando toda espécie de doutrinas, mas a maioria não a compreendia. A doutrina que prega indiferença à riqueza, às comodidades da vida, o desprezo pelos sofrimentos e pela morte, é de todo incompreensível para a imensa maioria, pois essa jamais conheceu a riqueza nem aquelas comodidades; e desprezar os sofrimentos significaria para ela desprezar a própria vida, pois toda essência da vida humana consiste em sensações de fome, frio, ofensas, privações e um medo hamletiano da morte. Nessas sensações está a vida inteira: pode-se senti-la como um peso, odiá-la, mas não desprezar. Sim, repito, a doutrina dos estoicos não pode ter um futuro, e progridem, como o senhor vê desde o início dos tempos até hoje, a luta, a sensibilidade para a dor, a capacidade de responder a uma excitação...
Ivan Dmítritch perdeu de repente o fio dos pensamentos, interrompeu-se e esfregou a testa, aborrecido.
- Eu queria dizer uma coisa importante, mas fiquei confuso – disse ele -. – Do que estava falando? Sim! Digo, pois: algum dos estoicos se vendeu como escravo, a fim de resgatar um próximo. O senhor vê, isso quer dizer que também o estoico reagiu a uma excitação, porquanto, para um ato tão generoso como a destruição de si mesmo em prol de um próximo, é preciso ter um espírito indignado, aberto à comiseração. Eu esqueci aqui na prisão tudo o que aprendi, senão lembraria mais alguma coisa. E Cristo? Cristo respondia à realidade chorando, sorrindo, entristecendo-se, ficando furioso e até angustiando-se; não foi só com sorriso que ele caminhou ao encontro dos sofrimentos e não desprezou a morte, mas rezou no Jardim de Getsemani, pedindo para evitar o cálice.
Fala de Ivan Dmítritch (preso em um hospital psiquiátrico) a Andriéi Iefímitch (doutor desse hospital), in A enfermaria nº 6, de Anton Tchekhov

terça-feira, 29 de maio de 2012

"O que mais me surpreende na humanidade são os homens, porque perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperar a saúde, e por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem do presente de tal forma que acabam por não viver nem o presente nem o futuro. E vivem como se nunca fossem morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido...”
Dalai Lama

Jacques Cousteau, por Lisel Ashlock

Um litro de luz

Uma iniciativa inovadora está ocorrendo nas Filipinas para trazer iluminação sustentável para casas em comunidades carentes. Garrafas de plástico vazias são instaladas no telhado, cheias com água e lixívia que refratam luz solar. Estas "lâmpadas solares" fornecem luz equivalente a uma lâmpada de 55watt. Veja o vídeo:


“Não seja humilde: você não é tão grande”.
Golda Meir

A cultura do terror/6

Pedro Algorta, advogado, mostrou-me o gordo expediente do assassinato de duas mulheres. O crime duplo tinha sido a faca, no final de 1982, num subúrbio de Montevidéu.
A acusada, Alma Di Agosto, tinha confessado. Estava presa fazia mais de um ano; e parecia condenada a apodrecer no cárcere o resto da vida.
Seguindo o costume, os policiais tinham violado e torturado a mulher. Depois de um mês de contínuas surras, tinham arrancado de Alma várias confissões. As confissões não eram muito parecidas entre si, como se ela tivesse cometido o mesmo assassinato de maneiras muito diferentes. Em cada confissão havia personagens diferentes, pitorescos fantasmas sem nome ou domícilio, porque
a máquina de dar choques converte qualquer um em fecundo romancista; e em todos os casos a autora demonstrava ter a agilidade de uma atleta olímpica, os músculos de uma forçuda de parque de diversões e a destreza de uma matadora profissional. Mas o que mais surpreendia era a riqueza de detalhes: em cada confissão, a acusada descrevia com precisão milimétrica roupas, gestos, cenários, situações, objetos...
Alma Di Agosto era cega.
Seus vizinhos, que a conheciam e gostavam dela, estavam convencidos de que ela era culpada.
— Por que? — perguntou o advogado.
— Porque os jornais dizem.
— Mas os jornais mentem — disse o advogado.
— Mas o rádio também diz— explicaram os vizinhos —. E até a televisão!
Eduardo Galeano, in O livro dos abraços

segunda-feira, 28 de maio de 2012


"Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha, nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que está somente afogando problemas dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar inquietação do mundo!"
Mário Quintana

Hagar, o Horrível

Se eu não a tenho, ela me tem

Se eu não a tenho, ela me tem
o tempo todo preso, Amor,
e tolo e sábio, alegre e triste,
eu sofro e não dou troco.
É indefeso quem ama.
Amor comanda
à escravidão mais branda
e assim me rendo,
sofrendo,
à dura lida
que me é deferida. 

Se calo, é porque mais convém
calar, em mim, o meu calor.
A língua hesita, o corpo existe
e, doendo, acha pouco,
sofre mas não reclama.
A sombra vã da
memória me demanda
e eu me surpreendo
mexendo
nesta ferida
sempre revolvida.

[...]

É tal a luz que dela vem
que até me aqueço nessa dor
sem outro sol que me conquiste,
mas no sol ou no fogo
não digo quem me inflama.
O olhar me abranda,
só os olhos têm vianda,
e a ela vendo
vou tendo
mais distendida
minha sobrevida.

[...]

Eu sei cantar como ninguém
mas meu saber perde o sabor
se ela me nega o que me assiste.
Vejo-a só, não a toco,
mas sempre que me chama
para ela anda
meu corpo, sem demanda,
e sempre atendo,
sabendo
que ela me olvida
e apaga merecida.
Daniel Arnaut. Tradução de Augusto de Campos

“É uma ousadia perigosa de grande consequência desprezar o que não compreendemos”.
Michel de Montaigne

domingo, 27 de maio de 2012

Greve, UERN, Anselmo, Rosalba, Direito e Educação

Olá, eu sou Samuel de Oliveira Paiva, aluno matriculado no 4° Período de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. O relógio do canto inferior direito do meu computador aponta 01h30min da madrugada de Domingo para Segunda, em verdade gostaria de estar dormindo para acordar bem para a aula, como se sabe, no entanto, estamos mais uma vez em greve, depois dos homéricos 106 dias. Gostaria de descer a certas minúcias que outros veículos ainda não desceram.
A aula era de Ciência Política, um homem baixinho, bem vestido, de modos polidos, gestos comedidos, voz tenra, e um jeito de falar que mais escondia que expunha, adentrou na sala. Sim era Anselmo Carvalho, o atual secretário-chefe do Gabinete Civil do Governo, educado, inteligente, mas com uma apatia que afastava qualquer dinâmica, o mestre nos explicava seus slides que misturavam os ensinamentos de Dalmo de Abreu Dallari e Paulo Bonavides. Uma vez eu perguntei-lhe se poderíamos chamar os Rosados de oligarquia, ele abriu os braços, esticou um lábio, não respondeu, insisti, “cada um diz o que quer” limitou-se a dizer. Repare que com isso não quero ganhar tratamento de critico agudo, rapaz ciente, ou qualquer estandarte que o valha, acho simplesmente que aquilo fora prova de certa fraqueza, afinal um professor de Ciência Política não poderia se furtar a uma problemática desse tipo, ainda que fosse para argumentar de maneira diversa. Era como se a Teoria não fosse digna da prática. Lembro que Anselmo sempre nos indicava a leitura dos “Escritos Políticos” de Winston Churchill. Se compararmos suas frases que versam nesse sentido: “Só faremos o pagamento quando a lei de responsabilidade fiscal permitir", com uma de Churchill “Não adianta dizer: Estamos fazendo o melhor que podemos. Temos que conseguir o que quer que seja necessário”, novamente somos tomados pela impressão de que para certas figuras a Teoria não merece a prática, sua curiosidade pelos livros é a mesma de um transeunte pelo corpo de um individuo que acaba de acidentar-se, olha, impressiona-se e vai embora tentando esquecer o horror que vira. Acho triste e incompreensível que alguém se satisfaça em ser cão de guarda alheio, um cão de guarda frio e burocrático.
De Rosalba não esperava outra coisa, só os neuróticos não sabem que na nossa política funciona o costume contra legem, não há segredos nisso, os prefeitos e vereadores compram eleitores avulsos, os governadores compram em atacado, por meio de “apoio”, perceba que o “jogo político” na época de eleições faz com que, principalmente nas cidades pequenas, o candidato a Governo troque de Prefeito cerca de quatros vezes. Então sabemos que os alicerces são podres, logo sobre ele não se fixa grandes edifícios. Na campanha a qual Rosalba sagrou-se Governadora, lembro que ela passou em minha cidade Natal, como em muitos outros lugarejos, lá encontrou, na zona rural, um circo – de fato era um circo – e centenas de eleitores apertados em trajes cor de rosa comprados às pressas, já que até duas semanas atrás o prefeito apoiava outro candidato. Rosalba, junto com Zé Agripino, tirou fotos com um chapelão de palha na cabeça. Chamamos a isso de “festa da Democracia”. A poetisa Hilda Hist dizia que, etimologicamente, Democracia quer dizer governo do Demônio (Demo=Demônio, Cracia=Governo). Rosalba era, por tanto, igual a todos, como poderia esperar que algo diferente brotasse desse seio político viciado? Carlos Drummond verseja, como metáfora claro, de uma Flor que brota no meio do asfalto, vendo-a surrada, insossa, esmilinguida, ele diz “É feia, mas é uma Flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”, escrevi um Cordel dizendo “É Rosa, mas não é uma Flor”.
A UERN precisa de muita coisa, vontade acima de tudo. Das mais simples informações a Livros e papel-higiênico. Falta também respeito por parte de muitos professores aos estatutos de nossa faculdade, cronograma e outras coisas que as sucessivas greves bagunçam ainda mais. Apesar de tudo, tenho muito orgulho e sinto-me deveras feliz em cruzar sua entrada de portões arriados.
Os professores têm que lutar por melhores salários sim. Às vezes nós alunos injustamente reclamamos de suas posturas, ocorre que no máximo passaremos cinco anos na faculdade, ansiamos levantar voo, só que a luta dos professores é a luta de uma vida inteira. Refiro-me aos verdadeiros professores, há muitos que não merecem esse título. Como há alunos que não o merecem.
O Curso de Direito recebeu o selo OAB, é apenas a prova de que somos bons em provas. Passamos por uma crise paradigmática no Direito, tremendo excesso de contingente, falta de consciente. Lênio Luiz Streck costuma perguntar em suas aulas se alguém aceitaria ser operado por um cardiologista que tivesse estudado por um livro intitulado “Manual de Cirurgia Cardíaca Descomplicado” ou “esquematizado”, no Direito isso é uma constante, somos obrigados a tal.
Torço para que nós alunos não nos percamos em nossas reivindicações, tenhamos olhos abertos, dispensando as vias extremas e duvidando das muito fáceis.
A luta é por Educação, somos de um país, de uma região, de um estado, deseducado. Educação é prática, é como caridade. É a própria vida. Reflete-se desde a hora de votar até a de dizer sem alarme que sente a morte rouba-lhe as forças.
Samuel Paiva, in oefeitocafeina.blogspot.com.br

Meninas, de Pablo Einstein


Média

Meia lua.
Meia palavra.
Meia vida.
Não basta?
Orides Fontela, in Poesia reunida: 1969-1996

“Os adjetivos passam, os substantivos ficam”.
Machado de Assis

sábado, 26 de maio de 2012

Os Buracos Negros e a relatividade do tempo

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Em um dos grandes relatos de viagens fantásticas, o escritor norte-americano Edgar Alan Poe conta a história de uma expedição marítima na costa norueguesa que se depara com um redemoinho gigante, conhecido como Maelstrom. Passado o terror inicial, o narrador proclama: "Pouco depois, fiquei possuído da mais aguçada curiosidade pelo próprio turbilhão. Sentia positivamente um desejo de explorar suas profundezas, mesmo ao preço do sacrifício que ia fazer; e meu principal pesar era que jamais poderia contar a meus amigos, na praia, os mistérios que iria conhecer".
Se Poe tivesse escrito seu conto 150 anos depois (o original foi publicado em 1841), talvez substituísse a exploração das entranhas do vórtice pela exploração das entranhas de um buraco negro. Fica difícil imaginar uma viagem fictícia mais fascinante do que a uma região em que nossas noções de espaço e tempo deixam de fazer sentido, de onde nada, nem a luz, escapa, um verdadeiro Maelstrom cósmico. Os buracos negros e suas ligações com objetos exóticos, conhecidos como "buracos de verme" - possíveis pontes de um ponto a outro no espaço e no tempo-, desafiam até a imaginação dos físicos.
Tudo começou em 1905, quando Einstein propôs a teoria da relatividade especial. A teoria demanda uma revisão das noções clássicas de tempo e espaço, firmemente arraigadas no nosso bom senso. O tempo flui sempre na mesma direção (o que chamamos de causalidade, a causa precede o efeito), indiferente a nós, os observadores. Já o espaço é a arena em que eventos acontecem, o palco onde a natureza encena seu drama, independentemente de nós, os espectadores.
       Einstein mostrou que a passagem do tempo e as medidas de distância não são quantidades absolutas. Dependem do movimento relativo entre observadores. Um relógio em movimento bate mais devagar do que um em repouso, e uma régua em movimento terá um comprimento menor do que o de outra em repouso. Não percebemos isso porque os fenômenos relativísticos só se manifestam a velocidades próximas à da luz (300 mil quilômetros por segundo). Mas, se um trem fosse capaz de andar a 180 mil quilômetros por hora, um relógio marcando a passagem de uma hora no trem marcaria uma hora e quinze minutos na estação.
Se a velocidade da luz fosse infinita, esses efeitos não existiriam. Mas ela é finita, e a dilatação temporal e a contração espacial são observadas rotineiramente em experimentos com partículas subatômicas. No mundo da relatividade, espaço e tempo não são absolutos, mas entrelaçados em um "espaço-tempo" de quatro dimensões, três para o espaço e uma para o tempo. Esse espaço-tempo é o verdadeiro palco em que a natureza encena seu drama. Nossa visão é bloqueada pelas minúsculas velocidades do nosso dia-a-dia.
Uma das limitações da relatividade especial é que ela só trata de movimentos com velocidades constantes. Em 1915, após anos de suor, Einstein propôs uma generalização da teoria, conhecida como teoria da relatividade geral. Ao tentar descrever movimentos acelerados, Einstein teve o que considerou a "visão mais feliz de minha vida": que um movimento acelerado pode imitar os efeitos da força gravitacional. O mesmo puxão que sentimos ao acelerar um carro pode ser provocado pela súbita colocação de uma enorme massa atrás do carro, que nos atrairia gravitacionalmente em sua direção.
Esse efeito é conhecido como "princípio de equivalência". Uma teoria da relatividade com aceleração é uma teoria da gravidade.
Einstein foi além. Mostrou que o efeito da atração gravitacional pode ser interpretado como a curvatura do espaço-tempo em torno de um objeto muito denso. Assim como uma bola de chumbo sobre um colchão deforma sua superfície, a presença de matéria deforma a curvatura do espaço. Objetos em movimento nesse espaço curvo terão suas trajetórias alteradas, tal como bolas de gude no colchão deformado. E, como o tempo e o espaço estão intimamente ligados em relatividade, a presença de matéria deforma a passagem do tempo. Em relatividade geral, o espaço-tempo torna-se deformável pela presença de matéria.
E os buracos negros? Uma estrela passa a vida lutando contra sua implosão devido à gravitação. Para isso, produz enormes quantidades de energia por meio da queima de sua própria matéria. Com o passar de bilhões de anos, a estrela devora seu interior e começa a implodir. Isso faz com que uma quantidade enorme de matéria ocupe um volume cada vez menor, criando um campo gravitacional cada vez mais intenso. A um certo ponto, nasce um buraco negro, um objeto com um campo gravitacional tão intenso que nem mesmo a luz escapa.
Como o Maelstrom de Poe, buracos negros têm uma espécie de borda, chamada "horizonte". Imagine que observamos nosso pior inimigo sendo atraído por um buraco negro. Sua espaçonave tem uma luz azul que pisca a intervalos fixos. Observamos que o intervalo entre os pulsos de luz vai aumentando e que a luz vai ficando mais vermelha à medida que a espaçonave se aproxima do horizonte. Ao passar pelo horizonte, o intervalo entre os pulsos se alarga indefinidamente, a luz avermelhada desaparece, com a espaçonave e o nosso inimigo. Para um observador externo, é impossível ver um objeto além do horizonte; o tempo (intervalo entre os pulsos) também pára. Para desvendarmos os mistérios dos buracos negros, precisamos explorar seu interior.
Nosso inimigo é imediatamente esmagado pelas forças gravitacionais do buraco negro, seu foguete vira espaguete. Mas o que aconteceria se pudéssemos viajar através de um buraco negro?
Ao entrarmos no horizonte, o tempo continuaria a fluir normalmente, mas sentiríamos um forte puxão na direção de seu centro, conhecido por "singularidade". Seria impossível desviarmos, assim como não podemos mudar a direção do tempo em nosso mundo. Pelas teorias atuais, nosso destino dependeria da estrela que formou o buraco negro. Se ela fosse exatamente esférica, nosso destino seria trágico: nos desintegraríamos ao chegarmos na singularidade central. Mas, se a estrela não fosse exatamente esférica, se estivesse em rotação (e a maioria dos objetos astrofísicos está em rotação), a singularidade não seria um ponto esmagador, mas um túnel, uma espécie de passagem. Para onde?
Essas passagens no espaço-tempo são conhecidas como "pontes de Einstein-Rosen". Em especulações mais ambiciosas, essas pontes terminam no oposto dos buracos negros, os buracos brancos, que vomitam matéria no espaço, talvez até em outro Universo. Quando essas pontes ligam pontos diferentes no nosso Universo, são conhecidas como "buracos de verme", passagens a pontos diferentes, no espaço e no tempo. Certos buracos negros podem conter um número enorme de buracos de verme, conectando o mesmo ponto do espaço a vários outros. Em princípio, é possível escolher um caminho que nos leve ao mesmo ponto no espaço, mas a outro instante do tempo, seja no passado ou no futuro.
A relatividade geral permite, em princípio, a existência de máquinas do tempo! Mas com uma limitação. Essas gargantas cósmicas são extremamente instáveis e se fecham rapidamente. Para mantê-las abertas, é necessária uma espécie de matéria capaz de produzir pressões negativas, o oposto da matéria comum. Infelizmente, não temos a menor ideia de como produzir tal matéria. Mesmo que essas passagens existam, a possibilidade de que algum dia nós iremos passear através do tempo por intermédio de buracos de verme é muito remota. No meio tempo, podemos seguir o brilhante exemplo de Poe e usar a nossa imaginação.
Marcelo Gleiser, especial para a Folha

Grump, de Orlandeli


A pedra tem mais sossego que a planta.
A planta tem mais repouso que o réptil.
O réptil é mais sonolento que o leopardo.
O homem, este é pura insônia – trabalho futuro, voo e flecha.
Hélio Pellegrino, in Minérios domados

“Eu, no fundo, não invento nada. Sou apenas alguém que se limita a levantar uma pedra e a pôr à vista o que está por baixo. Não é minha culpa se de vez em quando me saem monstros”.
José Saramago

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Carinhoso, com Yamandu Costa e Plateia*


*Emocionante trecho do filme Brasileirinho, de Mika Kaurismäki. Documentário musical aclamado pelo público e pela crítica, mostra a história e a vitalidade do choro, a primeira música urbana genuinamente brasileira.

“O medo e a estupidez sempre foram a base da maioria das ações humanas”.
Albert Einstein

Coisas e pessoas

Desde pequeno, tive tendência para personificar as coisas. Tia Tula, que achava que o mormaço fazia mal, sempre gritava: "Vem pra dentro, menino, olha o mormaço!" Mas eu ouvia o mormaço com M maiúsculo. Mormaço, para mim, era um velho que pegava crianças! Ia pra dentro logo. E ainda hoje, quando leio que alguém se viu perseguido pelo clamor público, vejo com estes olhos o Sr. Clamor Público, magro, arquejante, de preto, brandindo um guarda-chuva, com um gogó protuberante que abaixa e levanta no excitamento da perseguição. E já estava devidamente grandezinho, pois devia contar uns trinta anos, quando me fui, com um grupo de colegas, a ver o lançamento da pedra fundamental da ponte Uruguaiana-Libres, ocasião de grandes solenidades, com os presidentes Justo e Getúlio, e gente muita, tanto assim que fomos alojados os do meu grupo num casarão que creio fosse a Prefeitura, com os demais jornalistas do Brasil e Argentina. Era como um alojamento de quartel, com breve espaço entre as camas e todas as portas e janelas abertas, tudo com os alegres incômodos e duvidosos encantos de uma coletividade democrática. Pois lá pelas tantas da noite, como eu pressentisse, em meu entredormir, um vulto junto à minha cama, sentei-me estremunhado e olhei atônito par um tipo de chiru, ali parado, de bigodes caídos, pela pendente e chapéu descido sobre os olhos. Diante da minha muda interrogação, ele resolveu explicar-se, com a devida calma:
- Pois é! Não vê que sou o sereno...
E eis que, por um milésimo de segundo, ou talvez mais, julguei que se tratasse do silêncio noturno em pessoa. Coisas do sono? Além disso, o vulto, aquele penumbroso e todo em linhas descendentes, ajudava a ilusão. Mas por que desculpar-me? Quase imediatamente compreendi que o "sereno" era um vigia noturno, uma espécie de anjo da guarda crioulo e municipal. Por que desculpar-me, se os poetas criaram os deuses e semideuses para personificar as coisas, visíveis e invisíveis... E o sereno da Fronteira deve andar mesmo de chapéu desabado, bigode, pala e pé no chão... sim, ele estava mesmo de pés descalços, decerto para não nos perturbar o sono mais ou menos inocente.
Mário Quintana, in As cem melhores crônicas brasileiras

quinta-feira, 24 de maio de 2012

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Sínquises*

Rídiculo raparigo, que eu me vendo lotado um dia em ônibus da linha S, por tração talvez o esticado pescoço, no chapéu cordão eu um percebi. Arrogante e em lacrimejante tom, que contra o senhor ele ao seu lado protesta, encontra se. Encontrões lhe pois daria este, vez gente cada que desce. Vago senta sobre e se se um lugar dito precipita, isto. Paço no de Roma, dou mais com ele ouvindo tarde, duas horas que no seu sobretudo outro botar, aconselha-o um amigo botão.
Raymond Queneau, in Exercícios de estilo. Tradução de Luiz Resende

*Sínquise, do grego sýnchysis "confusão", "mistura", na língua portuguesa, é o nome da figura de linguagem em que os termos da oração são transpostos de forma violenta, produzindo confusão artística das palavras. Geralmente esse efeito é conseguido usando-se simultaneamente hipérbatos, anacolutos, e outras figuras de repetição ou omissão, dificultando o entendimento do enunciado em uma primeira leitura (Wikipédia).

As Cobras, de Luís Fernando Veríssimo

As Cobras - Antologia definitiva

A morte do tradutor de Guimarães Rosa para o alemão

Curt Meyer-Clason, que morreu em janeiro, foi um dos maiores divulgadores da literatura latino-americana na Europa. Traduziu para o alemão obras seminais como “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, e “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez.


Curt Meyer-Clason, o grande divulgador da literatura brasileira, latino-americana e portuguesa na Europa no pós-Segunda Guerra Mundial, morreu em Munique, sul da Ale­ma­nha, em janeiro, aos 101 anos.
Meyer-Clason, tradutor, escritor, editor, ensaísta e crítico, deixou uma obra incomparável — cujo volume e conteúdo só aos poucos é conhecida em sua profundidade. Seu nome não constava nas manchetes de primeira página — só nos círculos editoriais, entre autores e leitores. Os estudiosos do ramo terão décadas de trabalho para pesquisar, analisar e interpretar a enorme quantidade de documentos, registros, apontamentos que Curt Meyer-Clason produziu e deixou para a posteridade. Em seu acervo encontram-se, além disso, milhares de cartas de autores que traduziu.
Sua biografia é tão diversificada como os livros que traduziu. Por uma invulgar casualidade do destino, sua vida enveredou por um caminho que jamais planejara.

A fome/2

Um sistema de desvínculo: Boi sozinho se lambe melhor..., O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos a fome de pão e muitos mais a fome de abraços.
Eduardo Galeano, in O livro dos abraços

terça-feira, 22 de maio de 2012

Bendito seja o dia, o mês, o ano

Bendito seja o dia, o mês, o ano
A sazão, o lugar, a hora, o momento
E o país de meu doce encantamento
Aos seus olhos de lume soberano

E bendito o primeiro doce afano
Que tive ao ter de amor conhecimento
E o arco e a seta a que devo o ferimento
Aberta a chaga em fraco peito humano

Bendito seja o mísero lamento
Que pela terra em vão hei dispersado
E o desejo e o suspiro e o sofrimento

Bendito seja o canto sublimado
Que a celebra e também meu pensamento
Que na terra não tem outro cuidado

Petrarca (tradução de Jamir Almansur Haddad)

Contatos imediatos (SIC, de Orlandeli)

As palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugênio de Andrade

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Quase Nada 157

Quase Nada 157
Tira de Fábio Moon e Gabriel Bá, in www.10paezinhos.com.br

Um disco fundamental da MPB

Tom Zé
1972

(...) O que faz um artista ser excepcional se ele contraria de maneira explícita todo esse esquema que envolve e padroniza a produção musical brasileira já há alguns anos? O que o faz notável se ele de repente se mostra como o avesso, do avesso, do avesso? A resposta está na sua capacidade inventiva, no seu enorme talento, da sua empatia, da verdade e da força que expressa em sua obra, não deixando margem para manipulações, sua arte é a sua liberdade sentida e exposta, o aplauso e o reconhecimento virão portanto naturalmente, sem artificialismos. Assim é e sempre foi o baiano Tom Zé, não precisa do mercado, este é que precisa dele, inverte e subverte valores, e assim vai vivendo feliz com sua música e sua legião planetária de fãs.
Esse personagem de nossa história musical recente passou momentos de difícil assimilação e compreensão por parte de segmentos da crítica em função de não se deixar levar pelo sucesso fácil, manteve-se íntegro, e o tempo só veio reafirmar que ele estava certo em não se dobrar, pois o mundo iria lhe aplaudir por não transigir em suas convicções reconhecendo nele o vulcão criativo que espalhava larvas de admiração e respeito por onde quer que passasse.
Ao longo de mais de quarenta anos de carreira produziu trabalhos memoráveis, e dentre eles destaco o LP lançado em 1972 pela Continental, não desmerecendo, contudo, todos os seus outros trabalhos anteriores ou posteriores. O Disco é um apanhado de canções em que seu estilo inconfundível esta presente, seja nas melodias bem trabalhadas ou nas letras revelando seu lado satírico e lírico/sentimental.
Tom Zé talvez seja um dos músicos brasileiros cuja obra é de um personalismo impressionante, ou seja, possui um estilo único, não adianta imitá-lo ou assemelhar-se a ele, Tom Zé é Tom Zé e pronto! Não dá para cloná-lo. Isso fica evidente neste disco quando ouvimos algumas de suas canções como A babá, quase que obrigatória em suas apresentações, A briga do Edifício Itália com o Hilton Hotel, uma sátira paulistana que talvez nem os paulistas a fizessem tão bem, Menina amanhã de manhã, O abacaxi de Irará, O anfitrião, Frevo, Happy end, o clássico Se o caso é chorar, uma das suas mais belas criações poético/musicais e Sr. cidadão cuja introdução é o poema concreto Cidade, de Augusto de Campos, declamado pelo autor. Se formos fazer uma coletânea das suas melhores produções, este disco certamente estaria praticamente inteiro nela.
Ouvir este LP de Tom Zé é penetrar em sua alma, compreender seu universo e admirar todo seu enorme talento, que apesar de ter ficado represado por algum tempo, hoje inunda de criatividade a música popular brasileira tão carente ultimamente de renovação e ousadia.
Luiz Américo Lisboa Junior, in www.luizamerico.com.br

domingo, 20 de maio de 2012

A Metamorfose


Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.
Que me aconteceu ? — pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado, desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas: Samsa era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, a estender ao espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia! Gregório desviou então a vista para a janela e deu com o céu nublado — ouviam-se os pingos de chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. Não seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este delírio? — cogitou. Mas era impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação, não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes experimentara. Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar, dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório propriamente dito, e ainda por cima há ainda o desconforto de andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos trens, com a cama e com as refeições irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam amigos íntimos. Diabos levem tudo isto! Sentiu uma leve comichão na barriga; arrastou-se lentamente sobre as costas, — mais para cima na cama, de modo a conseguir mexer mais facilmente a cabeça, identificou o local da comichão, que estava rodeado de uma série de pequenas manchas brancas cuja natureza não compreendeu no momento, e fez menção de tocar lá com uma perna, mas imediatamente a retirou, pois, ao seu contato, sentiu-se percorrido por um arrepio gelado. Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. Isto de levantar cedo, pensou, deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros comerciantes que vivem como mulheres de harém. Por exemplo, quando volto para o hotel, de manhã, para tomar nota das encomendas que tenho, esses se limitam a sentar-se à mesa para o pequeno almoço. Eu que tentasse sequer fazer isso com o meu patrão: era logo despedido. De qualquer maneira, era, capaz d de ser bom para mim — quem sabe? Se não tivesse de me aguentar, por causa dos meus pais, há muito tempo que me teria despedido; iria ter com o patrão e lhe falar exatamente o que penso dele. Havia de cair ao comprido em cima da secretária! Também é um hábito esquisito, esse de se sentar a uma secretária em plano elevado e falar para baixo para os empregados, tanto mais que eles têm de aproximar-se bastante, porque o patrão é ruim de ouvido. Bem, ainda há uma esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o que os meus pais lhe devem — o que deve levar outros cinco ou seis anos —, faço-o, com certeza. Nessa altura, vou me libertar completamente. Mas, para agora, o melhor é me levantar, porque o meu trem parte às cinco.
Franz Kafka, trecho inicial do capítulo I, de A metamorfose

No mundo há muitas armadilhas


No mundo há muitas armadilhas
        e o que é armadilha pode ser refúgio
        e o que é refúgio pode ser armadilha 
Tua janela por exemplo
       aberta para o céu
       e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
     a bater antes de Cabral, antes de Tróia
(há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
e depois foi traído, preso, enforcado)
No mundo há muitas armadilhas
       e muitas bocas a te dizer
       que a vida é pouca
       que a vida é louca
       E por que não a Bomba? te perguntam.
       Por que não a Bomba para acabar com tudo, já
       que a vida é louca? 
Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
       que não sabe
       que afoito se entranha à vida e quer
       a vida
       e busca o sol, a bola, fascinado vê
       o avião e indaga e indaga 
A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade. 
Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e aguentarás até o fim. 
O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje 
A estrela mente
o mar sofisma. De fato,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los
Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las.
Ferreira Gullar

sábado, 19 de maio de 2012

A Arte em movimento do designer Mateus Divito

expandir

liquid_cube

torção

refletir

gaiola

ico_sphere

girar

sharp_mind

hexa

Gostou? Mais em http://mrdiv.tumblr.com/

Sobre maneiras de se viver

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Nós escolhemos como encarar a vida:
Podemos levar tudo como se estivéssemos a passeio, ou podemos levar a sério o que resolvermos fazer por aqui. Não vou dizer como você deve viver a sua vida, pois cada um sabe a que veio, e se não sabe é porque assim escolheu.
Eu descobri que o modo passeio não funciona para mim. Sei que perdi muita coisa boa e espontânea que poderia ter vivido, mas todas as minhas tentativas de ser imatura sempre foram forçadas desde que me conheço por gente.
Então ao invés de tentar viver essa vida jovem e desprendida resolvi assumir minha velhice precoce e entediada, praticamente (completamente) sem amigos e dedicada a aprender coisas que interessam a quase ninguém, e não me envergonhar mais por meu jeito chato de ser. Chato mesmo porque eu nunca fui e nunca serei o tipo de gente excitante e interessante que atrai atenções.
Apesar de sempre ter procurado aprovação e atenção, hoje sei que o que preciso de verdade é de equilíbrio. Equilíbrio de humores, emoções, atitudes. Aprendi que tentar ter milhões de amigos e histórias para contar não fará com que eu me sinta em paz. Porque é de paz que preciso, e tentar ser alguém diferente não me trará isso.
Por fim não há nada de errado em sermos quem somos e sermos diferentes, não no sentido em que a mídia tornou moda, mas realmente diferentes do que é esperado.
Afinal de contas, não estamos aqui para satisfazer expectativas alheias. Estamos aqui para irmos de encontro com o que esperamos e planejamos para nós mesmos, independente da maneira como escolhemos chegar até lá.
Larissa Caramel, coluna Insólito, in lounge.obvious.mag

A terrinha na Invernada de 2007

Arredores de Pau dos Ferros. Em primeiro plano, o Serrote do Jatobá. Ao fundo, a Serra de Martins. Inverno de 2007. Imagem: Elilson Batista

Crônica da cidade de Caracas

Preciso de alguém que me escutei — gritava. — Dizem sempre que e para eu voltar amanha! — gritava. Jogou a camisa fora. Depois, as meias e os sapatos. Jose Manuel Pereira estava parado na marquise de um décimo-oitavo andar de um edifício em Caracas.
Os policiais quiseram agarrá-lo e não conseguiram. Uma psicóloga falou
com ele da janela mais próxima. Depois, um sacerdote levou a ele a palavra de Deus. — Não quero mais promessas! — gritava Jose Manuel. Dos janelões do restaurante da Torre Sul, viam Manuel em pé na marquise, com as mãos pregadas na parede. Era a hora do almoço, e este acabou sendo o tema de conversa em todas as mesas.
Lá embaixo, na rua, tinha se juntado uma multidão.
Passaram-se seis horas.
No fim, as pessoas estavam cansadas.
— Decida-se de uma vez — diziam as pessoas —. Que se jogue de uma vez e pronto! — pensavam.
Os bombeiros aproximaram uma corda. No começo, ele não deu confiança. Mas finalmente esticou uma das mãos, e depois outra, e agarrado na
corda deslizou até o décimo-sexto andar. Então tentou entrar pela janela aberta e escorregou e despencou no vazio. Ao bater no chão, o corpo fez um ruído de bomba que explode.
Então as pessoas foram embora, e foram embora os vendedores de sorvete e de cachorro-quente e os vendedores de cerveja e de refrigerantes em lata.
Eduardo Galeano, in O livro dos abraços

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Grump, de Orlandeli

Mudança

Fotograma de Vidas Secas, filme de Nélson Pereira dos Santos

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.
Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.
- Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas.
O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.
- Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário - e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.
Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, cocou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinhá Vitoria, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caiam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.
Trecho inicial do capítulo I, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos