domingo, 30 de abril de 2017

Eu conheço o mestre (trecho)

Alta dirigiu na volta. Eu havia recebido recentemente uma multa por dirigir embriagado. Seguimos pela costa até Santa Monica. Lá estavam o oceano e as areias na escuridão. Não havia lua. Lá estavam os peixes. Os faróis dos automóveis cruzavam por nós. Seguíamos as lanternas traseiras vermelhas. O inferno ficava logo à frente, abaixo do céu, estendendo seus braços. Poucos enxergavam isso agora, mas acabariam por enxergar.
Fiquei escutando o motor, tentando obter alguma salvação a partir deste som. A caminho de Santa Monica, palmeiras altas começaram a surgir à direita. Aquelas palmeiras que John Bante, o garoto do Colorado, tanto mencionara em seus textos. Num momento de fraqueza, saquei a rolha do vinho, passei a garrafa para Alta. Tomou um gole, como uma profissional, olhando direto para a estrada, devolveu-a para mim...
Bante acabou por concluir o romance. Digo, ele saiu do hospital após a operação e o ditou a Mary, que se ocupou de datilografá-lo. Talvez John estivesse de olho no tempo. Recebi uma cópia do original e era uma leitura agradável. Não era Sporting Times , mas para um homem cego, sem as pernas, funcionava superbem. Mesmo para um homem inteiro teria sido um ótimo trabalho. Fiquei feliz quando Larkin me disse que iria publicar o livro. E também alguns de seus primeiros textos. Bante havia ressurgido das trevas. Sporting Times vendeu bem e as críticas foram excelentes. Os críticos estavam impressionados com o fato de este homem ter permanecido nas sombras por todas essas décadas. Sporting Times estava sendo traduzido para ser editado na Alemanha. E Bante chegou mesmo a cogitar mentalmente a possibilidade de outro romance.
Acho que uma ou duas semanas se passaram, não, talvez mais, umas três semanas, me perdoem. De qualquer forma, recebi um telefonema de Mary numa manhã de ressaca.
Ele voltou para o hospital, Hank...
Outra operação?
Sim...
Caralho, pensei, quanto ainda podem cortar? O que ainda lhe resta?
Peguei o número do quarto e fui com Alta até lá...
Ao chegarmos, Bante estava sozinho no quarto. Parecia estar dormindo. Podia ver sua respiração. Fomos em busca de um café.
Ao retornarmos, havia uma enfermeira por ali, uma daquelas faceiras, que já viram tanto o sofrimento dos mortos e dos moribundos que tudo se tornou quase uma brincadeira. Recebeu-nos com um sorriso por sobre o ombro:
Só um pouquinho, o bebê está tomando sua injeção.
Aguardamos do lado de fora. Então ela apareceu, ainda sorrindo:
Muito bem, docinhos, ele é todo de vocês!
Entramos.
Olá, John, é o Hank e a Alta.
Odeio aquela enfermeira – ele disse –, ela consegue ser tão sensível quanto um besouro japonês.
Trouxemos flores – disse Alta. – Acho que você não pode ver, mas pode sentir o cheiro delas. Aqui...
Sim, o cheiro está ótimo... Fico feliz que tenham vindo...
Não há um vaso por aqui – disse Alta. – Vou ver se arranjo um vaso.
Ela saiu.
Bem, Hank, como vão as coisas?
Ia perguntar o mesmo para você, mas estava com medo da resposta.
Bem, como pode ver, o dr. Lop não deixa nunca de afiar suas facas.
Me sentei.
Precisa de água, cigarros? Esvaziar a comadre.
Não, está tudo certo...
Isto aqui é pior do que o inferno.
Gostaria de estar em casa. Não consigo trabalhar aqui.
Imagino. Mas escute, andei pensando sobre uma coisa...
O quê?
O que aconteceu com aquela maravilhosa Carmen em Sporting Times? Ela realmente desapareceu no deserto?
Não. Ela voltou. Depois acabou se revelando uma desgraçada duma lésbica! – ele riu.
Puta que pariu!
*
Alta retornou com as flores no vaso.
Que tipo de hospital é este? Foi uma luta encontrar um vaso.
É um circo – disse Bante. – Nesta manhã estava por aqui um cara que costumava fazer o papel de Tarzan, ele corria ao longo dos corredores dando o seu grito das selvas. Por fim, conseguiram levá-lo de volta para o quarto. Ele é inofensivo. Mas acho que fez com que todos nos sentíssemos melhor. Fez a gente lembrar o passado, quando todos estávamos na ativa...
Ele já entrou aqui?
Sim, mostrei a ele os meus cotocos e o pobre saiu correndo... Talvez seja melhor estar aqui mesmo. Se estivesse em casa, Mary teria que ficar sentada com uma espingarda no colo para não deixar os carregadores de lixo me levarem...
Não fale uma coisa dessas... – disse Alta.
O que mais me incomoda são os olhos. Não estou chorando, mas as lágrimas não param de correr. Me disseram que a única maneira de impedir isso é retirando os olhos. O que você acha, Hank?
Não sou médico. Mas se fosse comigo, eu diria “não”.
Por quê? – Sempre acredito na possibilidade de um milagre.
Achei que você era o durão, o realista?
Também sou um jogador. Vai começar um novo livro?
Até então o rosto de John estivera de um marrom-acinzentado. Ao nos fazer um breve resumo da ideia central do próximo romance, seu rosto começou a se iluminar. Até que terminou de nos falar.
Parece bem legal – disse Alta.
Você deveria escrevê-lo – eu disse.
Então ficamos os três em silêncio. A conversa tinha ajudado, mas também o deixara cansado. Haviam nos dito que não havia problema em conversar com ele. O que eles sabiam?
Alguns minutos se passaram. Então Bante voltou a falar:
É estranho pensar em como todos eles sumiram, todas as pessoas com quem eu saía. Os camaradas, os bons amigos... Pessoas com as quais convivi por anos, tantos e tantos anos... Quando a doença se agravou, houve uma ou outra demonstração de apoio, mas no início, porque depois todos desapareceram. Seguiram lá no mundo deles, onde não havia mais lugar para mim. Jamais poderia imaginar que as coisas seriam assim...
Estamos aqui, John...
Eu sei. Isso é bom... Me fale sobre o Hank, Alta... Ele é mesmo tão durão quanto deixa transparecer nos textos?
Que nada. É um manteiga derretida. São 110 quilos de pura manteiga.
Era o que eu imaginava.
Escute, John, você está com um bom argumento para o seu próximo romance. Mas por que não escreve sobre o que está acontecendo agora? Sobre como os seus amigos deixaram você na mão?
E quis acrescentar, deixando-o aí por horas, coberto por um lençol, sem as pernas, cego, abandonado, esquecido num leito de hospital. Enquanto estão por aí correndo atrás de grana ou mulheres ou homens, ou mostrando seu brilho em conversas de festinhas. Ou vidrados em televisores gigantes. Ou o que quer que essa gente faça, esse pessoal de Hollywood que só produz merda e mais merda e mais merda, mas que julgam ser a maior das maravilhas, assim como faz seu público.
Não, não, não quero fazer isso.
John Bante, o bom moço até o fim.
Se tem algo que vi demais nas pessoas é a amargura. É uma coisa horrorosa, como quase todo mundo acaba se tornando amargo. É triste, é muito triste...
Você está certo, John – disse Alta.
Estou cansado. É melhor vocês irem...
Tchau, John...
Tchau...
Mergulhei em meus textos, que me pareciam ir bem – com a ajuda de Céline, Turguêniev e John Bante. Mas escrever é uma coisa estranha: você nunca chega a lugar algum você pode até se aproximar, mas nunca chega. É por isso que a maioria de nós precisa seguir em frente: estamos sendo enganados, mas não podemos desistir. A insensatez é muitas vezes a própria recompensa.
Soube por meio de Larkin que Mary estava para perder a casa de Malibu. O Movie Hospital não estava disposto a cobrir o total das despesas. Os doutores Lops da vida tinham de ser pagos. As operações eram caras e eles não queriam ter que dirigir um velho Mercedes por muito tempo... No pé em que as coisas estavam, logo iam pedir a casa de Malibu. Não morrer era um luxo que ele não podia se dar. Hospitais, que deveriam ser casas de misericórdia, eram casas de negócio, somente mais uma porra de negócio.
Antes que eu pudesse fazer outra viagem até lá, e eu esperei demais, tenho certeza de que não sou muito melhor do que os amigos de John que o abandonaram, antes que eu pudesse fazer outra viagem até lá, o telefone tocou. Era Mary.
John está morto – ela disse.
Não lembro o que respondi. Não deve ter sido nada muito bom. Me senti vazio. Acho que disse alguma coisa como, melhor assim. Você está bem?
Idiota, idiota.
Anotei o local, a hora e o dia do enterro.
Viver, morrer, ser enterrado. Aqueles que sobrevivem trocam o óleo, se lubrificam. Trepam, talvez. Dormem. Pedem por ovos mexidos, ovos cozidos, ovos moles...
Era um dia quente, encontramos a igreja, quase atrasados, a Pacific Coast Highway tinha sido bloqueada e nos vimos presos num enorme engarrafamento e a única maneira que descobri para chegar até a igreja foi seguir um carro funerário, que se revelou o carro certo.
A família estava lá e também uns poucos amigos. Me perguntaram se eu não queria fazer o discurso fúnebre, mas preferi recusar, sabedor de que não conseguiria conter as lágrimas e que aquilo faria com que todos se sentissem ainda piores. Vi Ben Pheasants por lá. Ben tinha escrito ótimos artigos sobre Bante, um dos quais saíra no LA Times. Tínhamos sido camaradas certa época. Mas acabei avacalhando com ele num poema.
Boa parte de nós começou a se dirigir para os automóveis. Alta segurou minha mão. Mary permaneceu na cadeira. Ao nos afastarmos, avistei o filho de John, Harry.
Vá pegá-los, Hank! – ele disse.
Certo, Harry...
Então, depois de dizer isso, me senti muito egoísta, mas era tarde demais. Eu sabia o que ele queria dizer, melhor, talvez eu soubesse o que ele queria dizer: seu pai, John Bante, havia me emprestado um jeito de fazer as coisas...
E isso era tudo, tudo o que realmente importava.
Eu havia conhecido meu ídolo. Pouquíssimas pessoas conseguem fazer isso de verdade.
Charles Bukowski, in Pedaços de um caderno manchado de vinho

Poema "A Chegada de Suassuna no Céu", recitado por Rolando Boldrin

Enigma

Ela estava vestida de uniforme listrado de empregada, mas falava como dona-de-casa. Viu-me subir as escadas cheia de embrulhos e parando para sentar nos degraus – os dois elevadores estavam enguiçados. Ela morava no quinto andar, eu no sétimo. Subiu comigo segurando alguns de meus embrulhos numa das mãos, e na outra o leite que comprara. Quando chegou ao quinto andar, botou o leite em casa dela entrando pela porta de serviço, depois fez questão de segurar meus embrulhos e de subir comigo até o sétimo.
Que mistério era esse: falava como dona-de-casa, seu rosto era o de dona-de-casa, e no entanto estava uniformizada. Sabia do incêndio que eu sofrera, imaginava a dor que eu sentira, e disse: mais vale a pena sentir dor do que não sentir nada.
Tem pessoas – acrescentou – que nunca ficam nem deprimidas, e não sabem o que perdem.
Explicou-me, logo a mim, que a depressão ensina muito.
E – juro – acrescentou o seguinte: “A vida tem que ter um aguilhão, senão a pessoa não vive.” E ela usou a palavra aguilhão, de que eu gosto.
Clarice Lispector, in A descoberta do mundo

De que serve a bondade

1
De que serve a bondade
Quando os bondosos são logo abatidos, ou são abatidos
Aqueles para quem foram bondosos?

De que serve a liberdade
Quando os livres têm que viver entre os não-livres?

De que serve a razão
Quando só a sem-razão arranja a comida de que cada um precisa?

2
Em vez de serdes só bondosos, esforçai-vos
Por criar uma situação que torne possível a bondade, e melhor;
A faça supérflua!

Em vez de serdes só livres, esforçai-vos
Por criar uma situação que a todos liberte
E também o amor da liberdade
Faça supérfluo!

Em vez de serdes só razoáveis, esforçai-vos
Por criar uma situação que faça da sem-razão dos indivíduos
Um mau negócio!
Bertolt Brecht

Remédio

A ausência é o remédio do amor.”
Padre Antônio Vieira

A safra dos tatus


Como foi aquele negócio dos tatus que a senhora principiou a semana passada, minha madrinha? perguntou Das Dores.
O rumor dos bilros esmoreceu e Cesária levantou os óculos para a afilhada:
Tatus? Que invenção é essa, menina? Quem falou em tatu?
A senhora, minha madrinha, respondeu a benzedeira de quebranto. Uns tatus que apareceram lá na fazenda no tempo da riqueza, da lordeza. Como foi?
Cesária encostou a almofada de renda à parede, guardou os óculos no caritó, acendeu o cachimbo de barro ao candeeiro, chupou o canudo de taquari:
Ah! Os tatus. Nem me lembrava. Conte a história dos tatus, Alexandre.
Eu? exclamou o dono da casa, surpreendido, erguendo-se da rede. Quem deu seu nó que o desate. Você tem cada uma!
Dirigiu-se ao copiar e ficou algum tempo olhando a lua.
Se os senhores pedirem, ele conta, murmurou Cesária aos visitantes. Aperte com ele, seu Libório.
Ao cabo de cinco minutos Alexandre voltou desanuviado, pediu o cachimbo à mulher, regalou-se com duas tragadas:
Ora muito bem.
Restituiu o cachimbo a Cesária e foi sentar-se na rede. Mestre Gaudêncio curandeiro, seu Libório cantador, o cego preto Firmino e Das Dores exigiram a história dos tatus, que saiu deste modo.
Saberão vossemecês que este caso estava completamente esquecido. Cesária tem o mau costume de sapecar umas perguntas em cima da gente, de supetão. Às vezes não sei onde ela quer chegar. Os senhores compreendem. Um sujeito como eu, passado pelos corrimboques do diabo, deve ter muitas coisas no quengo. Mas essas coisas atrapalham-se: não há memória que segure tudo quanto uma pessoa vê e ouve na vida. Estou errado?
Está certo, respondeu mestre Gaudêncio. Seu Alexandre fala direitinho um missionário.
Muito agradecido, prosseguiu o narrador. Isso é bondade. Pois a história que Cesária puxou tinha-se esvaído sem deixar mossa no meu juízo. Só depois de tomar um deforete pude recordar-me dela. Vou dizer o que se deu. Faz vinte e cinco anos. Hem, Cesária? Quase vinte e cinco anos. Como o tempo caminha depressa! Parece que foi ontem. Eu ainda não tinha entrado forte na criação de boi, que me rendeu uma fortuna, já sabem. Ganhava bastante e vivia sem cuidado, na graça de Deus, mas as minhas transações voavam baixo, as arcas não estavam cheias de patacões de ouro e rolos de notas. Comparado ao que fiz depois, aquilo era pinto. Um dia Cesária me perguntou: — “Xandu, por que é que você não aproveita a vazante do açude com uma plantação de mandioca?” — “Han? disse eu distraído, sem notar o propósito da mulher. Que plantação?” E ela, interesseira e sabida, a criatura mais arranjada que Nosso Senhor Jesus Cristo botou no mundo: — “Farinha está pela hora da morte, Xandu. Viaja cinquenta léguas para chegar aqui, a cuia por cinco mil-réis. Se você fizesse uma plantação de mandioca na vazante do açude, tínhamos farinha de graça.” — “É exato, gritei. Parece que é bom. Vou pensar nisso.” E pensei. Ou antes, não pensei. O conselho era tão razoável que, por mais que eu saltasse para um lado e para outro, acabava sempre naquilo: não havia nada melhor que uma plantação de mandioca, porque estávamos em tempo de seca braba, a comida vinha de longe e custava os olhos da cara. Íamos ter farinha a dar com o pau. Sem dúvida. E plantei mandioca. Endireitei as cercas, enchi a vazante de mandioca. Cinco mil pés, não, catorze mil pés, ou mais. No fim havia trinta mil pés. Nem um canto desocupado. Todos os pedaços de maniva que peguei foram metidos debaixo do chão. — “Estamos ricos, imaginei. Quantas cuias de farinha darão trinta mil pés de mandioca? Era uma conta que eu não sabia fazer, e acho que ninguém sabe, porque a terra é vária, às vezes rende muito, outras vezes rende pouco, e se o verão apertar, não rende nada. Esses trinta mil pés não renderam, isto é, não renderam mandioca. Renderam coisa diferente, uma esquisitice, pois, se plantamos maniva, não podemos esperar de modo nenhum apanhar cabaças ou abóboras, não é verdade? Só podemos esperar mandioca, que isto é a lei de Deus. A gata dá gato, a vaca dá bezerro e a maniva dá mandioca, sempre foi assim. Mas este mundo, meus amigos, está cheio de trapalhadas e complicações. Atiramos num bicho, matamos outro. E sinha Terta, que mora aqui perto, na ribanceira do rio, escura e casada com homem escuro, teve esta semana um filho de cabelo cor de fogo e olho azul. Há quem diga que sinha Terta não seja séria? Não há. Sinha Terta é um espelho. E por estas redondezas não existe vivente de olho azul e cabelo vermelho. Boto a mão no fogo por sinha Terta e sou capaz de jurar que o menino é do marido dela. Vossemecês estão-se rindo? Não se riam não, meus amigos. Na vida há muita surpresa, e Deus Nosso Senhor tem desses caprichos. Sinha Terta é mulher direita. E as manivas que plantei não deram mandioca. Seu Firmino está aí fala não fala, com uma pergunta na boca, não é, seu Firmino? Tenha paciência e escute o resto. Ninguém ignora que plantação em vazante não precisa de inverno. Vieram umas chuvinhas e a roça ficou uma beleza, não havia coisa parecida por aquelas beiradas. — “Valha-me Deus, Cesária, desabafei. Onde vamos guardar tanta farinha?” Mas estava escrito que não íamos arrumar nem uma prensa. Quando foi chegando o tempo da arranca, as plantas começaram a murchar. Supus que a lagarta estivesse dando nelas. Engano. Procurei, procurei, e não descobri uma lagarta. — “Santa Maria! cismei. A terra é boa, aparece chuva, a lavoura vai para diante e depois desanda. Não entendo. Aqui há feitiço!” Passei uns dias acuado, remexendo os miolos, e não achei explicação. Tomei aquilo como castigo de Deus, para desconto dos meus pecados. O que é certo é que a praga continuou: no fim de S. João todas as folhas tinham caído, só restava uma garrancheira preta. — “Caiporismo, disse comigo. Estamos sem sorte. Vamos ver se conseguimos levar ao fogo uma fornada.” Encangalhei um animal, pendurei os caçuás nos cabeçotes, marchei para a vazante. Arranquei um pau de mandioca, e o meu espanto não foi deste mundo. Esperava tamboeira choca, mas, acreditem vossemecês, encontrei uma raiz enorme e pesada que se pôs a bulir. A bulir, sim senhor. Meti-lhe o facão. Estava oca, só tinha casca. E, por baixo da casca, um tatu-bola enrolado. Arranquei outra vara seca: peguei o segundo tatu. Para encurtar razões, digo aos amigos que passei quinze dias desenterrando tatus. Os caçuás enchiam-se, o cavalo emagreceu de tanto caminhar e Cesária chamou as vizinhas para salgar aquela carne toda. Apanhei uns quarenta milheiros de tatus, porque nos pés de mandioca fornidos moravam às vezes casais, e nos que tinham muitas raízes acomodavam-se famílias inteiras. Bem. O preço do charque na cidade baixou, mas ainda assim apurei alguns contos de réis, muito mais que se tivesse vendido farinha. A princípio não atinei com a causa daquele despotismo e pensei num milagre. É o que sempre faço: quando ignoro a razão das coisas, fecho os olhos e aceito a vontade de Nosso Senhor, especialmente se há vantagem. Mas a curiosidade nunca desaparece do espírito da gente. Passado um mês, comecei a matutar, a falar sozinho, e perdi o sono. Afinal agarrei um cavador, desci à vazante, esburaquei tudo aquilo. Achei a terra favada, como um formigueiro. E adivinhei por que motivo a bicharia tinha entupido a minha roça. Fora dali o chão era pedra, cascalho duro que só dava coroa-de-frade, quipá, e mandacaru. Comida nenhuma. Certamente um tatu daquelas bandas cavou passagem para a beira do açude, topou uma raiz de mandioca e resolveu estabelecer-se nela. Explorou os arredores, viu outras raízes, voltou, avisou os amigos e parentes, que se mudaram. Julgo que não ficou um tatu na catinga. Com a chegada deles as folhas da plantação murcharam, empreteceram e caíram. Estarei errado, seu Firmino? Pode ser que esteja, mas parece que foi o que se deu.
Graciliano Ramos, in Histórias de Alexandre

sábado, 29 de abril de 2017

Ser solidário

Enquanto falamos aqui, há milhares de milhões de pessoas que estão morrendo de fome. Como podemos aceitar que o homem não seja um ser solidário, que não pense mais na espécie e tenha se convertido num monstro de egoísmo e ambição que despreza milhares de pessoas que não têm nada? Não se faz nada para resolver problemas essenciais. Para milhões de pessoas no mundo, nenhum dos problemas essenciais da vida está resolvido, enquanto nos divertimos enviando um aparelhinho a Marte…”
José Saramago, in As palavras de Saramago

Um Café Lá em Casa com Hamilton de Holanda e Nelson Faria

O brinquedo do pobre

Quero dar uma ideia de um divertimento inocente. São tão poucas as diversões que não merecem uma censura! Quando saíres de manhã, com a firme intenção de vadiar pelas grandes estradas, enche os teus bolsos de pequenos inventos, como o polichinelo movido por um barbante, os ferreiros que batem na bigorna, o cavaleiro e o cavalo com rabo de assobio. Depois, pelos botequins, junto das árvores, presenteia as crianças desconhecidas e pobres que encontrares.
Elas arregalarão os olhos. A princípio, não ousarão pegar, duvidando da própria felicidade.
Mas, em seguida, segurarão vivamente o presente e fugirão como o gato que vai comer longe o que lhe deram, por ter aprendido a desconfiar dos homens.
Numa estrada, atrás da grade de um vasto jardim, no fundo do qual se destacava a brancura de um belo castelo batido pelo sol, estava um lindo e robusto menino, vestido com essa roupa de campo tão cheia de faceirice.
O luxo, a despreocupação e o espetáculo habitual da riqueza tornam essas crianças tão bonitas que parecem feitas de outra massa que não as crianças comuns ou da pobreza.
Ao lado dele, jogado na relva, via-se um boneco esplêndido, novo como o dono, envernizado, dourado, com um vestido de púrpura, coberto de plumas e miçangas. O menino, porém, não dava atenção ao seu brinquedo predileto, e eis o que olhava: Do outro lado da grade, na estrada, por entre os espinhos e as urtigas, estava outro menino, sujo, miserável, manchado de fuligem. Era um desses moleques em quem uma vista imparcial descobriria a beleza, se, assim como a vista de um entendido adivinha uma pintura ideal sob o verniz de um carro, fosse ele lavado da pátina repugnante da miséria.
Através aquela grade simbólica separando dois mundos, a grande estrada e o castelo, o menino pobre mostrava ao menino rico o seu brinquedo, que este último examinava avidamente, como um objeto raro e desconhecido. E o brinquedo que o sujo garoto atormentava, agitava e sacudia numa caixa engradada, era um rato vivo! Os pais, decerto por economia, tinham tirado o brinquedo da própria vida! E os dois meninos riam-se um para o outro, fraternalmente, com dentes de igual brancura.
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

Street Art, de Pappas Pärlor


Apresentação do falador da estória

Deus me deu tarefa de morrer.
Nunca cumpri.
Agora, porém, já aprendi a obediência.
Palavras de Dona Hortênsia

Há aqueles que nascem com defeito. Eu nasci por defeito. Explico: no meu parto não me extraíram todo, por inteiro. Parte de mim ficou lá, grudada nas entranhas de minha mãe. Tanto isso aconteceu que ela não me alcançava ver: olhava e não me enxergava. Essa parte de mim que estava nela me roubava de sua visão. Ela não se conformava:
Sou cega de si, mas hei-de encontrar modos de lhe ver!
A vida é assim: peixe vivo, mas que só vive no correr da água. Quem quer prender esse peixe tem que o matar. Só assim o possui em mão. Falo do tempo, falo da água. Os filhos se parecem com água andante, o irrecuperável curso do tempo. Um rio tem data de nascimento? Em que dia exato nos nascem os filhos?
Conselhos de minha mãe foram apenas silêncios. Suas falas tinham o sotaque de nuvem.
A vida é que é a mais contagiosa — dizia.
Eu lhe pedia explicação do nosso destino, ancorados em pobreza.
Veja você, meu filho, já apanhou mania dos brancos! — Inclinava a cabeça como se a cabeça fugisse do pensamento e me avisava: — Você quer entender o mundo que é coisa que nunca se entende.
Em tom mais grave, me alertava:
A ideia lhe poise como a garça: só com uma perna. Que é para não pesar no coração.
Ora, mãe...
Porque o coração, meu filho, o coração tem sempre outro pensamento.
Falas dela, mais perto da boca que do miolo. Certa vez, ela me puxou a sentar. Seus ares eram graves. E disse:
Ontem tive nem sei se foi um pensamento.
Pensou o quê?
Foi assim pouco mais ou menos: eu precisava não viver para lhe conseguir ver. Me está entender?
Enquanto falava, seus dedos datilogravavam meu rosto, linha por linha. Minha mãe me lia por dedos tortos.
Você é parecido a mim.
Depois de mim seu ventre se fechou. Eu não era apenas um filho — era o castigo de ela não mais poder ser mãe. E aquele destino em outras punições se multiplicou: meu pai, em lugar de lhe reservar mais carinho, passou a lhe infligir penas, deitando-lhe as culpas pelos males do universo. E se sentiu aliviado: se ela perdera fertilidade, ele tinha direito de não ter deveres.
Agora eu já não sou sujeito de nada. Me irresponsabilizo.
E passou a dormir fora, gastando sua idade em leitos de outras. Minha mãe chorava enquanto dormia na solidão do leito desconjugal. Não soluçava, nem se escutava o despejo da tristeza. Só as lágrimas lhe escorriam sem pausa durante a noite. De modo que despertava encharcada em poça da mais pura e destilada água. Eu a tirava dali, daquelas águas, e a enxugava sempre com o mesmo pano. Outra toalha não podia ser: aquele era o pano que havia recebido seu único parto. Aquele pano me embrulhara em minha estreia de ser. Seria, quem sabe, a sua última cobertura.
Apesar da noturna tristeza de minha mãe, eu vivia com o sossego de peixe em água parada. Naquele tempo, não havia antigamentes. Tudo para mim era recente, em via de nascer. Nos meses devidos eu ajudava minha mãe na machamba. Lhe acompanhava entre os caminhos, sempre novos, tal era a verduragem que teimava em reocupar os espaços. Ela sorrindo, como se desculpasse os maus modos da floresta:
Aqui o mato gosta muito de crescer.
Nos intervalos da machamba, nos sentávamos, eu e minha mãe, sob a brisa do canhoeiro. Ela me segurava na mão enquanto falava. E desfolhava seus lamentos: nossa tradição não autoriza uma criança a assistir um funeral. Morte é visão de crescido. Só minha mãe, já engrandecida, parecia não estar autorizada a ver minha própria vida. E assentava, em consenso consigo:
A vida, meu filho, é uma desilusionista.
Em fins de tarde, os flamingos cruzavam o céu. Minha mãe ficava calada, contemplando o voo. Enquanto não se extinguissem os longos pássaros ela não pronunciava palavra. Nem eu me podia mexer. Tudo, nesse momento, era sagrado. Já no desfalecer da luz minha mãe entoava, quase em surdina, uma canção que ela tirara de seu invento. Para ela, os flamingos eram eles que empurravam o sol para que o dia chegasse ao outro lado do mundo.
Este canto é para eles voltarem, amanhã mais outra vez!
Certa vez, acordamos um pacto, com testemunho de Deus. Juntamos juras, sagrados xicuembos: que eu lhe iria visitar no momento em que ela se estivesse despedindo de viver. Pois, nesse intervalo de instante, ela acreditava poder, enfim, me ver de rosto e corpo. E se fechou combinação: em chegando a sua moribundição ela me avisaria. Eu acorreria e ela, finalmente, me havia de conhecer, olhos em olhos.
Passou-se o tempo e eu saí da terra nossa, encorajado pelo padre Muhando. Na cidade, eu tinha acesso à carteirinha das aulas. A escola foi para mim como um barco: me dava acesso a outros mundos. Contudo, aquele ensinamento não me totalizava. Ao contrário: mais eu aprendia, mais eu sufocava. Ainda me demorei por anos, ganhando saberes precisos e preciosos.
Na viagem de regresso não seria já eu que voltava. Seria um quem não sei, sem minha infância. Culpa de nada. Só isto: sou árvore nascida em margem. Mais lá, no adiante, sou canoa, a fugir pela corrente; mais próximo sou madeira incapaz de escapar do fogo.
Um dia, o juramento de minha velha mãe cumpriu seu serviço. Vieram me chamar, às emergências: minha mãe se estava despegando da alma. Viajei nos costados de um velho camião. Chegado à vila acorri num bater de pestana. Tinha que chegar antes que ela desmundasse. Cheguei tarde? No coração envelhecido de uma mãe, os filhos regressam sempre tarde. Ela me pegou na mão e fechou os olhos como se fosse por eles que respirasse. Estava tão parada, tão sem brisa no peito, que me afligi. Os outros me sossegaram:
Está só a fingir de falecida. Só para Deus ter pena dela.
Mas não era esse fingimento. Ninguém sabia que ela, conforme esse desmaio, me tinha finalmente alcançado em sua visão. Ela me focava, tal qual minhas conformidades. Seu rosto se engelhou, em ilegível sorriso:
Afinal, você é parecido com ele...
Com meu pai?
Ela voltou a sorrir, fosse quase em suspiro, enquanto repetia:
Com ele...
Me apertou as mãos, em espasmo. A pálpebra já se desenhava em estalactite. A morte é uma brevíssima varanda. Dali se espreita o tempo como a águia se debruça no penhasco — em volta todo o espaço se pode converter em esplêndida voação.
Mãe? Quem é ele?
Eu lhe perguntava isso só para fazer conta que não notara que ela já desvivia. Eu queria era pequeninar tristeza. Fiquei com o corpo de minha mãe encostando uma leveza no meu peito, semelhando uma folha tombando do imbondeiro. Ela falecera nesse instante em que iniciava a contemplação de mim. Seria verdade que me chegara ver? Nem isso já contava para nenhuma importância. O que era preciso era avisar meu pai desse desacontecimento.
Nossa gente não vive sem tratar os do lado de lá, passados a poente fino. Habitamos assim: a vida a oriente, a morte a ocidente. A morte, a morte mais sua inexplicável utilidade! Minha mãe partira na curva da chuva, saindo a habitar a estrela de nenhumas pontas. A partir de então, a vida já não lhe comparecia: ela apanhara o último desencontrão. Ainda lembrei suas palavras amadurecendo uma esperança para mim quando eu de tudo descria:
Não vê os rios que nunca enchem o mar? A vida de cada um também é assim: está sempre toda por viver.
E agora, por não consequência, eu partia para encontrar meu pai. Onde ele pairava? Se mantinha ali nos arredores do nosso distrito, incapaz do longe, inapto para o perto? Alugaria ainda seu velho barco aos pescadores da foz do rio? Eu esperava que sim, causa do afeto que ganhara pelo barquinho, as vezes que permanecera sob cuidados paternos. Fora eu que nomeara o bote: o barco-irís. E lá me encimava na proa, ondarilhando por aquelas águas. Quando construíram a barragem, o rio ficou mais ensinado e o estuário se adocicou, oferecido a navegações todo o ano.
De todas as vezes que fui visitar meu pai eu me entreguei à vida do povo dali. Ajudei na faina, puxei rede, espetei polvo, amarrei embarcação. Meu pai me recebia satisfeito na praia. Nunca quis saber sobre meus cansaços. Ele tinha ideia muito dele sobre o trabalho. Para ele, o barco é que fazia andar o remo. Em toda sua vida, ele só andara pelos interiores. Era um sabedor de matos, ignorante de oceano.
Nesse tempo, eu ainda tinha o corpo todo vivo, estava ali para as crenças e nascenças. De noite, ante a crepintação da fogueira, o velho Sulplício me pedia para relatar minhas aventuras na barqueação. E sorria, defendendo suas incapacidades em assuntos marinhos:
O camarão anda na água e não sabe nadar.
Depois dos conflitos que tivera com a administração, meu velho não guardava boa ideia do trabalho. Antes, ele acreditara no poder de o trabalho criar futuro. Perdera essa crença. Em ano recente, até decidiu envergar pijama para toda a vida. Apenas de noite, quando o pijama devia cumprir seus congênitos serviços, ele se libertava do vestuário. Despia-se para dormir.
Mas pai, de pijama durante o dia?
É que se dava o caso de ele dormitar aqui e acolá, encostado mesmo à mais brava claridade. Assim, com tal indumentária, ele estava bem adequado a esses cabeceios. Mas não era apenas o caso do pijama: o velho se aumentava de manias que contrariavam a gente universal. Como, noutro exemplo: só no domingo ele calçava. Nos restantes dias, os da semana, seus pés terreavam, satisfeitos por acariciarem o infinito do chão. Fim do dia, derramava um chá morno sobre as pernas. Os pés nus numa bacia se encharcavam, em banho de repouso.
Estou a dar-lhes de beber — e se ria.
Minha velhota muito se irritava com aquele desacostumado uso. A esquisitice, porém, tinha uma razão: ele andava descalço para não gastar seu único par de sapatos. Trazia-os pendurados pelas mãos, mas sem nunca os envergar enquanto marchasse. Calçava-os apenas depois, quando já estava parado em pose de senhor.
Aqueles momentos junto ao meu velhote me puxavam para um incerto sono, quem sabe isso que chamam de ternura fosse aquele amaciamento. Esses breves tempos foram, hoje eu sei, a minha única casa. No estuário onde meu velho deitara seu existir eu inventava minha nascente.
Todavia, as visitas à foz do rio foram breves e poucas, simples relampejos de lembrança. Minha mãe acabou proibindo essas más influências dele. Meu velho que pagasse em isolamento sua irresponsabilidade. Ela se vingava da deserção dele. Quando se retirou da família, ele, por um tempo, ainda vagabundeou por ali. Depois, se instalara nos arredores da vila, fazendo de sua vida o que fazemos com o lençol: dobram-se as pontas e enterram-se sob o colchão. Nós nunca víamos as pontas do seu viver, nem a direção que dava à sua existência. Isso era mistério oculto por baixo dele mesmo. Começou a dar sinais de si apenas quando já eu era bem menino. E passou a nos visitar, vezes enquanto. Se deixava ficar uns dias. Nunca reparei se dormia em qual quarto. No fundo, eu desejava guardar a ilusão de que ele e minha mãe ainda dividiam as noites num só teto.
Manhã seguinte, ele me conduzia por um desmatado. Não ia muito longe. Ali, junto a um enorme morro de muchém, ele parava. Se anichava rente ao chão e acariciava a termiteira. Depois, se erguia e apontava para além de uns frondosos konones:
Está ver aquele caminhozito?
Eu não via senão as folhagens. A savana ali se fechava em verdes. Não adiantava apurar as vistas. Os dois tínhamos medo de ir mais longe. Mas ele apontava a distância e me repisava a advertência:
Quando chegar o fim do mundo você toma este carreirinho. Está a ouvir?
Conselho que nunca quereria cumprir. Mas que não podia depositar dúvida. Que ele sabia que era certo e certeiro o final da humanidade.
Tudo isso eu lembrava quando cheguei à praia de Inhamudzi onde meu velho se exilara. O lugar não era distante e eu viajara mais lembranças que quilometros. Desta vez, eu vinha quase sem mim, parecia um desqualquerficado. Meus saberes de cidade serviam para quê? Aqueles caminhos tinham serviços que não eram os mesmos das ruas urbanas: pareciam feitos apenas para passarem sonhos e poentes.
Aquelas estreitas ruinhas aliviavam a tristeza da terra dando caminho ao último sol, em direção aos secretos recantos de nossa alma. Circulei por ali. Procurei entre as tendas e casinhas de caniço. Não havia sinal dele, apenas dicências, istos-aquilos. O velho Sulplício, sabia ele de sua própria realidade?
Finalmente o descobri. Meu pai, o que lhe tinha sido feito? Estava magrito, esgazelado, parecia que até a alma lhe era uma coisa externa. Desde minha última visita ele se inquilinara num escuro, no oco de um velho farol. Tinha-se tornado faroleiro. Subira a ocupar um farol desempregado, já nenhum barco usava aqueles caminhos de saída para o mar.
Contudo, o velho se levava a sério em sua nova profissão. Aquilo pedia muita atenção: focar o infinito, fiscal do horizonte. Se em toda a vida ele inspecionara e policiara a savana! Agora, ele simplesmente mudava o objeto de sua vigilância. Seria por isso que fazia de conta que eu era invisível quando falei:
Pai, eu trago notícias tristes de Tizangara.
Com um gesto firme me ordenou silêncio. Que ele se concentrava na ventania. Espreitou o horizonte e sacudiu a cabeça:
Lembra que eu andava a aprender idioma da passarada? Pois, sua mãe nunca me autorizou.
Pai, me escute...
Agora, meu filho, eu já não falo nenhuma língua, falo só sotaques. Entende?
Eu não entendia nada. Meu pai variava sem formato no pensamento. Meu ar sério, insistindo no assunto que ali me trazia, rapidamente o indispôs.
Você dá-me lembrança de sua mãe: nunca entende. Isso como irrita!
No mais, ele recusou escutar. Categórico, abanou a mão a decepar-me as falas.
Volta para lá, eu não quero ouvir nada do que você vem aqui falar...
Mas pai, a mãe...
Não quero ouvir...
Escutei seus passos subindo a escada encaracolada. De repente, parou. A sua voz, deformada, me chegou:
É estranho. Por aqui já não se ouvem tiros!
Pai, a guerra já acabou.
Você se acredita nisso?
Já eu seguia o caminho de retorno, quando a sua voz pairou sobre mim. Falava da janela da torre.
Lembra o carreirinho por trás da nossa casa? Pois, não esqueça: se o mundo terminar, de repente, você sai por esse caminho.
Mia Couto, in O último voo do flamingo