quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Porto Alegre, 2016

Quando você viu na tv
aquelas pessoas em fila na chuva
à noite numa estrada
na fronteira de um país que não as deseja.


E quando você viu as bombas
caírem sobre cidades distantes
com aquelas casas e ruas
tão sujas e tão diferentes.

 

E quando você viu a polícia
na praça do país estrangeiro
partir pra cima de manifestantes
com bombas de gás lacrimogêneo.

 

Não pensou duas vezes
nem trocou o canal
E foi pegar comida
na geladeira.

 

Não reparou o que vinha
que era só uma questão de tempo
não interpretou como sinal a notícia
não precisou estocar mantimentos.

 

Agora a colher cai da boca
e o barulho de bomba é ali fora
e a polícia parte pra cima dos teus afetos
munida de espadas, sobre cavalos.

Angélica Freitas

Recusa de ir-se embora da terra

Fotograma do Filme As vinhas da ira (1940), de John Ford

Fora, no terreiro escuro, trabalhando à luz de uma lanterna, o pai e Al carregavam o caminhão. As ferramentas por baixo de tudo, mas bem à mão para o caso de o motor enguiçar. Depois as caixas com as roupas e os utensílios de cozinha num saco de juta; a seguir, a caixa com os pratos e talheres. O balde foi amarrado atrás. Tentavam formar uma base tão nivelada quanto possível, e encheram os interstícios entre as caixas com cobertores enrolados. Cobriram tudo, depois, com os colchões e assim ficou cheio o fundo do caminhão. Finalmente, estenderam a lona sobre tudo isso e Al furou buracos nas suas extremidades, a meio metro um do outro, enfiou pequenas cordas neles e ligou-as às barras laterais do veículo.
Agora, se chover — disse ele — podemos amarrar a lona nas barras de cima e o pessoal pode ficar embaixo à vontade. Na frente, a gente ficará bem abrigado.
E o pai aplaudiu:
É uma boa ideia, Al.
Isso não é tudo — falou Al. — Assim que puder, vou comprar duas estacas e prender elas no centro do caminhão e estender sobre elas o encerado. Assim, o pessoal também não vai apanhar sol.
E o pai tornou a dizer:
É uma boa ideia. Mas por que ocê não comprou logo as estacas?
Não tive tempo — disse Al.
Não teve tempo? Mas pra andar por aí farreando, cê teve tempo! Deus sabe por onde ocê andou estas duas semanas.
A gente tem que tratar de muita coisa quando se despede de sua terra — disse Al. Depois perdeu um pouco de sua firmeza. — Pai — perguntou —, o senhor tá satisfeito que a gente vá embora?
Hein? Sim... é claro. Quer dizer, acho que sim. A gente não passou nada bem nesta terra. E lá na Califórnia vai ser tudo diferente... tem muito serviço pra gente ganhar dinheiro, e tudo lá é verde e bonito e as casas são bem branquinhas e cercadas de pés de laranjeira.
É verdade que tem laranja por toda a parte?
Bem, talvez não seja em toda a parte, mas em quase todos os lugares, ah, isso tem na certa.
O primeiro véu cinzento da madrugada surgiu e espalhou-se pelo céu. E o trabalho todo estava feito: a carne estava salgada e os galinheiros também estavam prontos para serem içados ao caminhão. A mãe abriu o forno e tirou os ossos de porco, que tinham bastante carne, e carne bem assada e apetitosa. Ruthie estava meio acordada, depois escorregou do caixote e caiu no sono novamente. Mas os adultos estacionavam ao redor da porta, algo trêmulos de frio, e roíam os ossos de porco tostados.
Acho que devemos acordar o avô e a avó — disse Tom. — Vamos partir logo, logo.
A mãe disse:
É melhor a gente esperar até o último minuto. Eles precisam descansar. E também a Ruthie e o Winfield não dormiram direito.
Bem, eles podem dormir no caminhão, depois — disse o pai. — Aquilo ali tá muito bem preparado.
De repente, os cães ergueram-se da poeira e ficaram à escuta, orelhas esticadas. Depois, latindo raivosamente, atiraram-se na escuridão.
Que diabo é isso agora? — perguntou o pai. Um instante depois, ouviram uma voz que procurava apaziguar os cachorros, e os latidos enfraqueceram. Soaram passos, então, e um homem apareceu diante deles. Era Muley Graves, com o chapéu muito puxado sobre os olhos.
Aproximou-se timidamente:
Bom dia — disse.
Mas é o Muley! — exclamou o pai, fazendo um gesto de saudação com a mão que ainda segurava o osso. — Entre, Muley, e coma qualquer coisa com a gente.
Não, obrigado — disse Muley. — Não tô mesmo com fome.
Ora, deixa disso, Muley. Toma lá! — e o pai entrou na casa e trouxe de lá a mão cheia de costeletas.
Eu não queria tirar a comida de vocês — disse ele. — Tava só passando por aqui, então me lembrei de ver como estavam todos e me despedir.
Daqui a pouco vamos partir — disse o pai. — Se ocê tivesse vindo daqui a uma hora, já não encontrava mais a gente. Tá tudo pronto pra viagem, tá vendo?
Tudo pronto. — Muley olhou o caminhão carregado. — Às vezes, eu também tenho vontade de ir procurar a minha gente.
A mãe perguntou:
Cê não teve notícias deles, lá da Califórnia?
Não — disse Muley. — Não tenho notícia nenhuma. Mas talvez seja porque nem fui ao correio saber se tinha alguma coisa. Qualquer dia tenho que ir até lá.
O pai disse:
Al, vai acordar o avô e a avó. Diz pra eles vir comer. Daqui a pouquinho vamos partir. — E quando Al já se ia em direção ao celeiro, o pai virou-se para o recém-chegado: — Muley, se ocê quiser, pode vir com a gente. Há de se arranjar mais um lugarzinho.
Muley deu uma mordida numa das costeletas e ficou mascando a carne.
Às vezes, tenho vontade de ir. Mas sei que não vou nunca — disse. — No último instante, desapareço que nem um fantasma.
Noah disse:
Aqui no campo ocê acaba esticando as canelas qualquer dia, Muley.
Eu sei. Já pensei nisso também. Às vezes, me sinto sozinho como um danado aqui, mas isso não é nada, eu até gosto. Não faz diferença. Mas se falarem à minha gente lá na Califórnia, digam que eu tô bem. Não contem como eu vivo aqui. E que vou pra lá assim que arrumar algum dinheiro.
A mãe perguntou:
E ocê vai mesmo, Muley?
Não — disse Muley brandamente. — Não quero, nem posso sair daqui. Tenho que ficar por aqui mesmo. Faz pouco tempo, inda podia ir. Mas agora não. Quando a gente fica sozinho começa a pensar e acaba sabendo o que quer. Nunca que eu vou pra Califórnia.
A luz da alvorada já era mais viva, empalidecendo a das lamparinas. Al vinha de volta e, ao lado dele, agitado e mancando, vinha o avô.
Ele não tava dormindo — disse Al. — Estava sentado no chão, atrás do celeiro. Acho que alguma coisa aconteceu com ele.
Os olhos do avô estavam embotados e não mais refletiam aquela antiga maldade que lhe era peculiar.
Não há nada comigo — falou. — Só que não quero mais ir com vocês.
Não vem conosco? — perguntou o pai. — Que é que o senhor tá dizendo? Mas a gente já embrulhou tudo. Agora não podemos mais ficar aqui. Não temos mais onde ficar.
Eu não disse procês também ficar. Vocês podem ir à vontade. Mas eu... eu fico. Tive pensando a noite toda nisso. Aqui é a minha terra. Eu sou daqui. E não me importa que lá na Califórnia as uvas até caiam na cama das pessoas. Não vou e pronto. Isso aqui não presta, mas é a minha terra. Vão vocês. Sou daqui e fico é aqui mesmo.
Os outros todos se reuniram em torno do avô e o pai disse:
Mas não pode ser, avô. Os tratores vão ocupar essas terras. Quem é que vai cozinhar pro senhor? Como é que o senhor vai viver? Não pode ficar aqui desse jeito, sem ter ninguém que tome conta do senhor. Vai morrer de fome.
O avô gritou:
Que diabo, eu sou um velho mas ainda sei tomar conta de mim! O Muley, como é que ajeita? Posso muito bem fazer a mesma coisa. Já disse: não vou com vocês. Façam o que quiserem. Podem levar a avó, se quiserem, mas a mim ninguém me tira daqui. E acabou-se!
Mas escute, avô — disse o pai sem jeito. — Escute só um instantinho.
Não quero escutar nada. Já disse o que vou fazer.
Tom tocou o ombro de seu pai:
Ô pai, vamo lá dentro. Quero dizer uma coisa pro senhor. — E quando iam andando em direção à casa, chamou: — Mãe, vem cá um momentinho, sim?
Uma lamparina iluminava a cozinha e o prato de costeletas estava bastante cheio ainda. Tom disse:
Olhe, eu sei que o avô tem o direito de dizer que não quer mais viajar com a gente, mas é que ele não pode ficar de jeito nenhum. Isso nós todos sabemos.
Claro que ele não pode ficar — disse o pai.
Então, eu pensei o seguinte: se a gente agarrar e amarrar ele à força, pode machucar ele, ou ele mesmo pode se machucar. Isso não convém. Também não adianta discutir com ele agora. Mas se ele ficar bêbado, pode mudar de ideia. O senhor tem uísque, pai?
Não — disse o pai. — Nem uma gota. O John também não tem. Quando não bebe, ele não guarda nada de uísque.
A mãe disse:
Tom, eu tenho meio vidro daquele remédio que o Winfield usava pra dormir quando tinha aquela dor de ouvido. Cê acha que serve? O Winfield dormia logo que tomava ele, mesmo quando tava cheio de dor.
Quem sabe? — disse Tom. — Traz ele, mãe. Não custa nada a gente experimentar.
Já botei o vidro no lixo — disse a mãe. Pegou a lamparina e saiu; um momento depois voltou com o vidro de remédio, cheio até a metade de um líquido escuro.
Tom tomou-o das mãos dela, desarrolhou-o e bebeu um gole.
Não tem gosto ruim — disse. — Faz pra ele uma xícara de café forte. Deixa ver... aí diz pra usar uma colher de chá. Mas é melhor a gente botar mais, pelo menos duas colheres de sopa.
A mãe tirou a tampa do fogão, colocou uma chaleira na abertura, bem sobre as brasas, e entornou nela pó de café e água.
Ele vai ter que tomar o café numa lata vazia — falou. — As xícaras já tão todas embrulhadas.
Tom e o pai tornaram a deixar a cozinha.
A gente tem o direito de dizer o que deseja. Ei, quem foi que teve comendo costeletas? — soou a voz do avô.
Nós — disse Tom. — A mãe tá fazendo uma xicra de café pro senhor e tem também carne de porco.
O avô entrou na casa e bebeu o seu café e comeu a carne de porco. O grupo, lá fora, na claridade crescente, ficou a vigiar-lhe os movimentos através da porta aberta. Viu-o bocejar e cambalear um pouco, estender os braços sobre a mesa, inclinar a cabeça e adormecer profundamente.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

Calvin


O tio e a gravidade

Por que tem luzinhas no céu, são estrelas?”
Cada luzinha que brilha é uma estrela.”
Mas o que é uma estrela?”
Uma bola de fogo grande, que nem o Sol.”
Se são grandes, por que parecem pequenininhas?”
Porque estão longe. Olha aquele cara gordo correndo lá no lago. Não parece pequenininho? Mas é maior que você. É enorme. Um monstro.”
Entendi. Se são grandes, por que não caem lá do céu?”
Tem a gravidade.”
Tem?”
É.”
Ela volta a comer a sua pipoca colorida. Não dá dez segundos e, lógico, pergunta com a boca cheia.
Tio, o que é gravidade?”
Eu sabia que você ia perguntar.”
Ela ri, tímida.
Como você sabia?”
Intuição.”
O quê?”
Nada. Adivinhei.”
Eu também adivinho muita coisa.”
Eu também.”
É? Adivinha no que tô pensando agora?”
Ela abaixa as sobrancelhas, aperta os olhinhos, faz um bico e o encara firme.
Adoro quando você faz essa carinha.”
Ela sorri e faz de novo.
Ele faz uma careta pra ela.
Ela faz outra pra ele, que faz outra mais exagerada.
Ela abre a boca, coloca a língua pra fora com pipoca mastigada.
Ele faz cara de nojo.
Ela ri e engasga.
Ele bate nas costas dela.
Ela tosse.
Continua a dar tapinhas nas costas dela, até ela parar.
Bebe a Coca.”
Ela o olha com os olhinhos lacrimejados e vermelhos, enfia o canudinho na boca e bebe tudo num gole só. Suspira aliviada, com gosto. E sorri. Ele aproveita, dá um gole no uísque da garrafinha de bolso e acende um cigarro.
Eca, que nojo!”
Ela abana a fumaça e faz uma extravagante cara de nojo.
Por que você fuma?”
Porque eu gosto.”
Mas fede.”
Você também é fedida.”
Não sou, não.”
É sim.”
Não sou.”
É”
Você que é fedido.”
Você que é.”
É você.”
É você.”
É você.”
É você.”
Param de falar. Até ele terminar o cigarro, encaixá-lo entre o dedão e o indicador, pressionar e jogar a bituca na grama, longe. Ela olha a bituca acesa na ponta voar como um cometa até se espatifar no gramado e espalhar minúsculas brasas ao redor. E exclama:
Uau! Como você faz isso?”
Muito treino.”
Faz de novo.”
Teria que acender outro cigarro.”
Acende.”
Não quero fumar agora.”
Mas você disse que gosta.”
Quer outra Coca?”
Não.”
Quer mais pipoca?”
Não.”
Quer saber o que é gravidade?”
Não.”
Mas você queria antes.”
Não quero mais.”
Quer um beijo?”
Não.”
Quer um sopro na bochecha?”
Ela ri:
Quero.”
Ele inclina, enche os pulmões com ar, encosta a boca na bochechinha dela e assopra, urrando como um peido alto. Ela gargalha. Adora quando ele faz isso e pede outro. Ele dá outro beijo assoprado, urrando como um urso. E faz cócegas nela, que se contorce toda, rola pelo banco. E gargalha de novo. Ele para, e ela pede:
Faz de novo.”
Não.”
Faz de novo.”
Já disse, não.”
Ela se senta na mesma posição de antes e faz uma cara emburrada.
Ele bebe o seu uísque da garrafinha particular.
Ficam ambos emburrados.
Ela, porque não fez de novo.
Ele, porque a vida não o favorece.
Tá com sono?”
Não.”
Mas tá ficando tarde.”
Não.”
Não quer ir embora?”
Não.”
Quer saber o que é gravidade?”
Não.”
Você só sabe falar não?”
Não.”
Ela ri. E o olha. Pergunta o que ele teme:
O que que é gravidade?”
Por que quer saber?”
Porque quero saber.”
Por que pergunta sobre tudo?”
Porque sou curiosinha.”
E chatinha.”
Sou nada.”
É sim.”
Ela de novo mostra a língua. Sem pipoca colorida nela.
Saco! Gravidade é uma coisa difícil de explicar. É uma força invisível que atrai os corpos. Por exemplo, se eu jogo o cigarro, ele cai, porque a gravidade da Terra puxa a bituca pra ela. Se a gente pula, a gente volta, porque a gravidade não deixa a gente sair voando. Só se tivermos motores fortes, potentes, como um foguete.”
Dá uma bicada no uísque e se surpreende: ela está superatenta.
A Lua gira em torno da Terra por causa da gravidade, se não, ela sairia voando. A Terra gira em torno do Sol. Os planetas giram em torno do Sol, que não deixa eles escaparem. Tem as galáxias. Tudo se atrai. Fica conectado. Assim por diante. Sacou?”
Ela demonstra não ter entendido muito.
É como um ímã. Uma cordinha invisível que segura as coisas. Um elástico. É difícil explicar. Quando você crescer, você vai entender.”
Eu não quero crescer.”
Por quê?”
Porque gosto de ser criança.”
Você é feliz?”
Hum-hum”, afirma com a cabecinha.
Pois sinto lhe informar, mocinha, que todo mundo cresce, vira adulto e depois morre.”
Arrepende-se no ato desta frase mal colocada e apocalíptica. Ela continua pensativa. Por que desconta nela angústias dele? Bebe.
Você não gosta de criança, né?”
Gosto sim. Adoro você. Amo você. É a minha sobrinha querida.”
Então por que não tem filhinhos?”
Bebe mais.
Porque não sou mais casado.”
Mas já foi.”
Mas não tivemos filhos.”
Mas podia.”
Mas não rolou.”
Por que você não quis?”
É difícil explicar.”
Que nem a gravidade?”
Mais ou menos.”
Você sente falta dela?”
Não sei.”
Você está triste?”
Não consegue responder. Ela coloca a mão no rosto dele e faz um carinho.
Eu posso ser sua filhinha de vez em quando.”
Pra quê?”
Pra te deixar contente.”
Você me deixa contente.”
Jura?”
Ele não responde. Mata o uísque. Ela se deita com a cabecinha no colo dele e diz:
Eu também amo você.”
Tá com sono?”
Tô.”
Ele joga com força a garrafinha no lago, assustando os patos, que batem as asas se afastando. Levanta-se, acende outro cigarro e diz:
Bora.”
Canta aquela música de novo?”, ela pede.
Ele sai andando.
Ela vai atrás.
Ele canta:
Depois de sonhar tantos anos, de fazer tantos planos, de um futuro pra nós, depois de tantos desenganos, nós nos abandonamos como tantos casais…”
Ela corre pra ficar ao lado dele e canta junto o refrão:
Quero que você seja feliz, hei de ser feliz também, depois…”
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz

Nove segundos

Naquela noite de 1982, quando fui com uma amiga franco-brasileira assistir ao filme Fitzcarraldo, quase nada conhecia da vida desse barão da borracha peruano.
As referências a esse mestiço ambicioso vinham de um ensaio amazônico de Euclides da Cunha, que, em 1905, navegou até as cabeceiras do Purus. Euclides, que era obcecado pela ideia do progresso e da civilização, entendeu ou intuiu que a barbárie troca de lado sem fazer cerimônia.
Agora, ao ler um ensaio de Benjamin Abdala (Fluxos comunitários: Jangadas, margens e travessias), conheci outras facetas de Carlos Fermín Fitzcarraldo. Filho de um marinheiro norte-americano com uma mestiça peruana, Fitzcarraldo morreu num naufrágio em 1897, quando tinha 35 anos. Mas essa vida breve não o impediu de construir um império econômico e descobrir um varadouro de nove quilômetros que liga o rio Urubamba ao Madre de Diós. Esse istmo, que recebeu o nome de seu descobridor, foi importante para a circulação de pessoas e o fluxo de mercadorias. O jovem magnata tentou transportar para sua propriedade em Madre de Diós um casarão com estrutura metálica construído por Eiffel. Mas, como essa tentativa malogrou, a obra foi erguida em Iquitos.
À semelhança de outros barões do “caucho” que enriqueceram em pouco tempo, Fitzcarraldo foi um predador da floresta e um implacável caçador de índios. Euclides narra, de um modo tragicômico, o primeiro contato do jovem Fitzcarraldo com os “primitivos” machcos; depois afirma que dezenas de índios foram dizimados por armas de fogo do “notável explorador” e seus capangas.
Lembro que naquela noite de inverno parisiense, eu e minha amiga Évelyne paramos de traduzir textos maçantes e fomos ver o filme de Werner Herzog. Os artigos na imprensa diziam que nesse filme havia cenas de Manaus e de seu maior símbolo arquitetônico: o Teatro Amazonas, palco de tantas óperas e operetas durante o fausto da borracha. Mas nesse filme Fitzcarraldo não é o ambicioso seringalista que executou a sangue-frio centenas de índios da Amazônia. O sonho grandioso de Brian Sweeney Fitzgerald, vulgo Fitzcarraldo, é construir um teatro em Iquitos. O subtítulo do filme é O preço de um sonho. Uma tradução mais livre e não menos fiel seria: O preço de uma loucura.
Há várias cenas épicas, de deslumbrante efeito visual, como o barco içado montanha acima por centenas de índios; ou um concerto de ópera a bordo desse mesmo barco, que navega diante do porto de Iquitos, cuja população assiste a esse espetáculo inusitado.
O filme fala da obsessão de Fitzcarraldo pelo canto lírico, que serve de mediação entre a cultura do “civilizado” e a dos “primitivos”. Mas não foram as sequências bombásticas e ousadas as que mais me emocionaram, muito menos a expressão amalucada de Klaus Kinski.
Logo no começo do filme, quando Fitzcarraldo chega a Manaus, vi uma das praças da minha infância e disse isso à minha amiga.
São cenas externas ou foram filmadas num estúdio?”, ela perguntou. “Externas”, eu disse. “É Manaus mesmo.”
Pouco minutos depois, quando a plateia ovacionava a filmagem da ópera Ernani, interpretada por Caruso e Sarah Bernhardt, uma cena de nove segundos me emocionou. No cinema do Boulevard Saint-Germain, reconheci meus pais no centro da tela. E, como minha mãe olhava e ria para a tela, era como se estivesse olhando e rindo para mim.
Voltei várias vezes ao cinema para rever esse par de figurantes felizes, e em cada sessão a saudade que sentia deles só aumentava. Quando telefonei para Manaus, minha mãe perguntou se ela estava bem no filme. Disse que ela era a melhor atriz dentre os seiscentos figurantes.
E o teu pai?”
Sério como sempre”, eu disse. “E bem mais careca. Mas não olhava para a câmera, e sim para ti.”
Ela riu com vontade. O riso, que partiu da margem esquerda do rio Negro e chegou ao orelhão gelado na rive gauche do Sena, era o riso que não pude ouvir no filme.
Nunca mais vi Fitzcarraldo. Faz algum tempo meus pais saíram deste mundo, mas permaneceram na tela, anônimos para os espectadores. Mesmo assim, ainda posso imaginá-los no outro lado do espelho: essa sala eternamente escura e silenciosa, visitada pela memória dos vivos.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Gonzanguinha - Pequena Memória para um tempo sem memória

A velha engolida pela pedra

Não sou homem de igreja. Não creio e isso me dá uma tristeza. Porque, afinal, tenho em mim a religiosidade exigível a qualquer crente. Sou religioso sem religião. Sofro, afinal, a doença da poesia: sonho lugares em que nunca estive, acredito só no que não se pode provar. E, mesmo se eu hoje rezasse, não saberia o que pedir a Deus. Esse é o meu medo: só os loucos não sabem o que pedir a Deus. Ou não se dará o caso de Deus ter perdido fé nos homens? Enfim, meu gosto de visitar as igrejas vem apenas da tranquilitude desses lugarinhos côncavos, cheios de sombras sossegadas. Lá eu sei respirar. Fora fica o mundo e suas desacudidas misérias.
Pois numa dessas visitas me aconteceu o que não posso evitar de relembrar. A igrejinha era de pedra crua, dessa pedra tão idosa como a terra. Nem parecia obra de humano traço. Eu apreciava as figuras dos santos, madeiras com alma de se crer. Foi quando escutei uns bichanos. Primeiro, duvidei. Eram sons que não se traduziam em nada de terreste. Estaria eu a ser chamado por forças do além? Estremeci. Quem está preparado para dialogar com a eternidade? Os sibilos prosseguiam e, então, me discerni: era uma velha que me chamava. Estava meio encoberta por uma coluna. Orava com o corpo todo, debruçada nessa pequenez de quem pede mais do que é devido. Voltei a ouvir seu murmurinho:
Pssst, pssst.
Eu?
Sim, próprio você. Me ajude levantar.
Tentei ajudá-la a se erguer. Desconsegui. Nem eu esperava peso tão volumoso daquela mínima criatura. Voltei a puxar. Nem uma carne nela se moveu. A velha não conseguia desajoelhar-se. A rótula dela estava colada no chão, ela não podia se levantar. E me pedia um socorro de força e carrego. Logo a mim que sofro dos ossos, reumasmático. Um papelito de menos de 25 linhas para mim já é um peso tonelável. Que fazer? Me sentei ao lado da velha, hesitando em como lhe pegar.
Vá me ajude, me empurre deste chão. Depresse-se, moço, que já estou ficando pedra.
Voltei a ajeitar as mãos no corpo dela. Era um peso sem vida, com mais gravidade que um planeta.
Não rodilhe meu vestidinho. Isso veio das calamidades, fui dada esta roupita com os padres.
Esforcei outras tentativas: a velha não descolava. Nem um milimetrinho. Estranhei. Estaria ela a fazer-me pouco? Um corpinho, magrito como assim, exibir tanta tonelagem? Pensei em chamar por ajuda. Mas ninguém mais não havia.
Espere: vou chamar mais alguém.
Não me deixa sozinha, meu filho. Não me deixe, por favor.
Me levantei para espreitar: a igrejinha estava vazia. Dei uma volta, fui à sacristia. Ninguém. Me juntei à velha e lhe disse que ia chamar alguém lá fora, à rua. A senhora me segurou as mãos, com febril fervor:
Lá fora, não. Não vá lá fora. Tente mais uma vez, só mais uma vez.
Ainda me apliquei em novas forças, dobrei os intentos. Nem um deslizar da velha. De repente, eclatou o som iremediável de uma porta. Apurei os olhos na penumbra. Tinham fechado as pesadas portadas da igreja. Acorri, demasiado tarde. Chamei, gritei, bati, pés e mãos. Em vão. Tentava arrombar a porta, a velha me dissuadiu. Era pecado mais que mortal machucar a casa de Deus.
Mas é para sairmos, não podemos ficar aqui presos.
Contudo, a porta era à prova de forças. A verdade era que eu e a beata estávamos prisioneiros daquele escuro. Acendi todas as velas que encontrei e me sentei junto da velha. Escutei as suas falagens: sabe, meu filho, sabe o que estive a pedir a Deus? Estive a pedir que me levasse, minha palhota lá em cima já está pronta. E eu aqui já me custo tanto! Problema é eu já não tenho corpo para ir sozinha para o céu. Estou tão velha, tão cansadíssima que não aguento subir todos esses caminhos até lá, nos aléns. Pedi sabe o quê? Pedi que me vertesse em pássaro, desses capazes de compridas voações, desses que viajam até passar os infinitos. É verdade, filho. Esta tarde pedi a Deus que me vertesse em pássaro. E me desse asas só para me levar deste mundo.
Adormeci nessa lenga-lengação dela. Me afundei em sono igual à pedra onde me deitava. Fiquei em total cancelamento: na ausência do ruído, dos queixumes e rebuliços da cidade. Acordei no dia seguinte, sacudido pelo padre: o que eu fazia ali, dormindo como um larápio, um pilha-patos? Expliquei o motivo da velha.
Qual velha?, perguntou o sacerdote.
Olhei. Da velha nem o sopro. Não estava aqui uma senhora com os joelhos amarrados no chão? O padre, de impaciente paciência, me pediu que saísse. E que não voltasse a usar indevidamente o sagrado daquele lugar. Sai, cabistonto. Para além da porta, o mundo era de se admirar, coisa de curar antigas melancolias. A luz da manhã me estrelinhou as vistas. Nada cega mais que o sol.
Naquela estonteação me chegou a repentina visão de uma ave, enormíssima em branquejos. Ali mesmo, à minha frente, o pássaro desarpoava, esvoando entre chão e folhagens. Acenei, sem jeito, barafundido. Ela sorriu-me: que fazes, me despedes? Não, eu não vou a nenhum lado. Foi mentira esse pedido que eu fiz a Deus. Aldrabei-Lhe bem. Eu não quero subir para lá, para as eternidades. Eu quero ser pássaro é para voar a vida. Eu quero viajar é neste mundo. E este mundo, meu filho, é coisa para não se deixar por nada desse mundo.
E levantou voo em fantásticas alegrias.
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

Capítulo LXXIV - História de Dona Plácida

Não te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidência de Dona Plácida, e conseguintemente este capítulo. Dias depois, como eu a achasse só em casa, travamos palestra, e ela contou-me em breves termos a sua história. Era filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora. Perdeu o pai aos dez anos. Já então ralava coco e fazia não sei que outros trabalhos de doceira, compatíveis com a idade. Aos quinze ou dezesseis casou com um alfaiate, que morreu tísico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Viúva e moça, ficaram a seu cargo a filha, com dous anos, e a mãe, cansada de trabalhar. Tinha de sustentar a três pessoas. Fazia doces, que era o seu ofício, mas cosia também, de dia e de noite, com afinco, para três ou quatro lojas, e ensinava algumas crianças do bairro, a dez tostões por mês. Com isto iam-se passando os anos, não a beleza, porque não a tivera nunca. Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduções, a que resistia.
- Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ela, creia que me teria casado; mas ninguém queria casar comigo.
Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; não sendo, porém, mais delicado que os outros, Dona Plácida despediu-o do mesmo modo, e, depois de o despedir, chorou muito. Continuou a coser para fora e a escumar os tachos. A mãe tinha a rabugem do temperamento, dos anos e da necessidade; mortificava a filha para que tomasse um dos maridos de empréstimo e de ocasião que lha pediam. E bradava:
- Queres ser melhor do que eu? Não sei donde te vem essas fidúcias de pessoa rica. Minha camarada, a vida não se arranja à toa; não se come vento. Ora esta! Moços tão bons como o Policarpo da venda, coitado... Esperas algum fidalgo, não é?
Dona Plácida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum. Era gênio. Queria ser casada. Sabia muito bem que a mãe o não fora, e conhecia algumas que tinham só o seu moço delas; mas era gênio e queria ser casada. Não queria também que a filha fosse outra cousa. Trabalhava muito, queimando os dedos ao fogão, e os olhos ao candieiro, para comer e não cair. Emagreceu, adoeceu, perdeu a mãe, enterrou-a por subscrição, e continuou a trabalhar. A filha estava com quatorze anos; mas era muito fraquinha, e não fazia nada, a não ser namorar os capadócios que lhe rondavam a rótula. Dona Plácida vivia com imensos cuidados, levando-a consigo, quando tinha de ir entregar costuras. A gente das lojas arregalava e piscava os olhos, convencida de que ela a levava para colher marido ou outra cousa. Alguns diziam graçolas, faziam cumprimentos; a mãe chegou a receber propostas de dinheiro...
Interrompeu-se um instante, e continuou logo:
- Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber... Deixou-me só, mas tão triste, tão triste, que pensei morrer. Não tinha ninguém mais no mundo e estava quase velha e doente. Foi por esse tempo que conheci a família de Iaiá; boa gente, que me deu que fazer, e até chegou a me dar casa. Estive lá muitos meses, um ano, mais de um ano, agregada, costurando. Saí quando Iaiá casou. Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas mãos... E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas da agulha. - Não se cria isto à toa, meu senhor; Deus sabe como é que isto se cria... Felizmente, Iaiá me protegeu, e o senhor doutor também... Eu tinha um medo de acabar na rua, pedindo esmola...
Ao soltar a última frase, Dona Plácida teve um calafrio. Depois, como se tornasse a si, pareceu atentar na inconveniência daquela confissão ao amante de uma mulher casada, e começou a rir, a desdizer-se, a chamar-se tola, “cheia de fidúcias”, como lhe dizia a mãe; enfim, cansada do meu silêncio, retirou-se da sala. Eu fiquei a olhar para a ponta do botim.
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas