quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

O tio e a gravidade

Por que tem luzinhas no céu, são estrelas?”
Cada luzinha que brilha é uma estrela.”
Mas o que é uma estrela?”
Uma bola de fogo grande, que nem o Sol.”
Se são grandes, por que parecem pequenininhas?”
Porque estão longe. Olha aquele cara gordo correndo lá no lago. Não parece pequenininho? Mas é maior que você. É enorme. Um monstro.”
Entendi. Se são grandes, por que não caem lá do céu?”
Tem a gravidade.”
Tem?”
É.”
Ela volta a comer a sua pipoca colorida. Não dá dez segundos e, lógico, pergunta com a boca cheia.
Tio, o que é gravidade?”
Eu sabia que você ia perguntar.”
Ela ri, tímida.
Como você sabia?”
Intuição.”
O quê?”
Nada. Adivinhei.”
Eu também adivinho muita coisa.”
Eu também.”
É? Adivinha no que tô pensando agora?”
Ela abaixa as sobrancelhas, aperta os olhinhos, faz um bico e o encara firme.
Adoro quando você faz essa carinha.”
Ela sorri e faz de novo.
Ele faz uma careta pra ela.
Ela faz outra pra ele, que faz outra mais exagerada.
Ela abre a boca, coloca a língua pra fora com pipoca mastigada.
Ele faz cara de nojo.
Ela ri e engasga.
Ele bate nas costas dela.
Ela tosse.
Continua a dar tapinhas nas costas dela, até ela parar.
Bebe a Coca.”
Ela o olha com os olhinhos lacrimejados e vermelhos, enfia o canudinho na boca e bebe tudo num gole só. Suspira aliviada, com gosto. E sorri. Ele aproveita, dá um gole no uísque da garrafinha de bolso e acende um cigarro.
Eca, que nojo!”
Ela abana a fumaça e faz uma extravagante cara de nojo.
Por que você fuma?”
Porque eu gosto.”
Mas fede.”
Você também é fedida.”
Não sou, não.”
É sim.”
Não sou.”
É”
Você que é fedido.”
Você que é.”
É você.”
É você.”
É você.”
É você.”
Param de falar. Até ele terminar o cigarro, encaixá-lo entre o dedão e o indicador, pressionar e jogar a bituca na grama, longe. Ela olha a bituca acesa na ponta voar como um cometa até se espatifar no gramado e espalhar minúsculas brasas ao redor. E exclama:
Uau! Como você faz isso?”
Muito treino.”
Faz de novo.”
Teria que acender outro cigarro.”
Acende.”
Não quero fumar agora.”
Mas você disse que gosta.”
Quer outra Coca?”
Não.”
Quer mais pipoca?”
Não.”
Quer saber o que é gravidade?”
Não.”
Mas você queria antes.”
Não quero mais.”
Quer um beijo?”
Não.”
Quer um sopro na bochecha?”
Ela ri:
Quero.”
Ele inclina, enche os pulmões com ar, encosta a boca na bochechinha dela e assopra, urrando como um peido alto. Ela gargalha. Adora quando ele faz isso e pede outro. Ele dá outro beijo assoprado, urrando como um urso. E faz cócegas nela, que se contorce toda, rola pelo banco. E gargalha de novo. Ele para, e ela pede:
Faz de novo.”
Não.”
Faz de novo.”
Já disse, não.”
Ela se senta na mesma posição de antes e faz uma cara emburrada.
Ele bebe o seu uísque da garrafinha particular.
Ficam ambos emburrados.
Ela, porque não fez de novo.
Ele, porque a vida não o favorece.
Tá com sono?”
Não.”
Mas tá ficando tarde.”
Não.”
Não quer ir embora?”
Não.”
Quer saber o que é gravidade?”
Não.”
Você só sabe falar não?”
Não.”
Ela ri. E o olha. Pergunta o que ele teme:
O que que é gravidade?”
Por que quer saber?”
Porque quero saber.”
Por que pergunta sobre tudo?”
Porque sou curiosinha.”
E chatinha.”
Sou nada.”
É sim.”
Ela de novo mostra a língua. Sem pipoca colorida nela.
Saco! Gravidade é uma coisa difícil de explicar. É uma força invisível que atrai os corpos. Por exemplo, se eu jogo o cigarro, ele cai, porque a gravidade da Terra puxa a bituca pra ela. Se a gente pula, a gente volta, porque a gravidade não deixa a gente sair voando. Só se tivermos motores fortes, potentes, como um foguete.”
Dá uma bicada no uísque e se surpreende: ela está superatenta.
A Lua gira em torno da Terra por causa da gravidade, se não, ela sairia voando. A Terra gira em torno do Sol. Os planetas giram em torno do Sol, que não deixa eles escaparem. Tem as galáxias. Tudo se atrai. Fica conectado. Assim por diante. Sacou?”
Ela demonstra não ter entendido muito.
É como um ímã. Uma cordinha invisível que segura as coisas. Um elástico. É difícil explicar. Quando você crescer, você vai entender.”
Eu não quero crescer.”
Por quê?”
Porque gosto de ser criança.”
Você é feliz?”
Hum-hum”, afirma com a cabecinha.
Pois sinto lhe informar, mocinha, que todo mundo cresce, vira adulto e depois morre.”
Arrepende-se no ato desta frase mal colocada e apocalíptica. Ela continua pensativa. Por que desconta nela angústias dele? Bebe.
Você não gosta de criança, né?”
Gosto sim. Adoro você. Amo você. É a minha sobrinha querida.”
Então por que não tem filhinhos?”
Bebe mais.
Porque não sou mais casado.”
Mas já foi.”
Mas não tivemos filhos.”
Mas podia.”
Mas não rolou.”
Por que você não quis?”
É difícil explicar.”
Que nem a gravidade?”
Mais ou menos.”
Você sente falta dela?”
Não sei.”
Você está triste?”
Não consegue responder. Ela coloca a mão no rosto dele e faz um carinho.
Eu posso ser sua filhinha de vez em quando.”
Pra quê?”
Pra te deixar contente.”
Você me deixa contente.”
Jura?”
Ele não responde. Mata o uísque. Ela se deita com a cabecinha no colo dele e diz:
Eu também amo você.”
Tá com sono?”
Tô.”
Ele joga com força a garrafinha no lago, assustando os patos, que batem as asas se afastando. Levanta-se, acende outro cigarro e diz:
Bora.”
Canta aquela música de novo?”, ela pede.
Ele sai andando.
Ela vai atrás.
Ele canta:
Depois de sonhar tantos anos, de fazer tantos planos, de um futuro pra nós, depois de tantos desenganos, nós nos abandonamos como tantos casais…”
Ela corre pra ficar ao lado dele e canta junto o refrão:
Quero que você seja feliz, hei de ser feliz também, depois…”
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz

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