terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Um bem-te-vi



O leve e macio
raio de sol
se põe no rio.
Faz arrebol…

Da árvore evola
amarelo, do alto
bem-te-vi-cartola
e, de um salto

pousa envergado
no bebedouro
a banhar seu louro

pelo enramado…
De arrepio, na cerca
já se abriu, e seca.
Manoel de Barros

Os outros

Quando um homem responsabiliza os outros pelos seus fracassos, é bom começar a responsabilizá-los também pelos seus sucessos.”
Mark Twain

Zélia Duncan - Doce de Côco

Mais do que me era devido

Quão melhor é apercebermo-nos de que as origens da ira são insignificantes e inofensivas! O que tu vês acontecer junto dos animais, também encontrarás nos homens: vivemos perturbados por coisas frívolas e vãs. O vermelho excita o touro, a áspide ergue-se perante uma sombra, um pano atiça um urso ou um leão: todos os seres da natureza ferozes e selvagens se assustam com coisas vãs. O mesmo acontece com os espíritos inquietos e insensatos: são vencidos pelas aparências; é por isso que consideram ofensiva uma gratificação modesta, a causa mais frequente da ira ou, pelo menos, a mais amarga de todas. De fato, iramo-nos com aqueles que nos são mais queridos porque nos deram menos do que esperávamos ou menos do que os outros obtiveram; para qualquer um dos casos, há um remédio. Ele deu mais a outro homem: contentemo-nos com a nossa parte, sem fazermos comparações: nunca será feliz aquele que atormenta quem é mais feliz que ele. Recebi menos do que esperava: talvez esperasse mais do que me era devido. Este capricho é um dos mais temíveis, pois dele nascem as iras mais perniciosas e mais capazes de atentar contra as coisas mais sagradas.”
Sêneca, in Da ira

Ecos do carnaval

Com o tempo, o casal desenvolvera um código pra se comunicar de longe nas reuniões sociais. Quando ele esfregava o nariz queria dizer “Vamos embora”. Quando ela puxava o lóbulo da orelha esquerda queria dizer “Cuidado”, geralmente um aviso para ele mudar de assunto. Puxar o lóbulo da orelha direita significava “Pare de beber”. Se ele então girasse a aliança no dedo, era para dizer “Não chateia”. Se depois ela coçasse o queixo, era “Você me paga”. Naquela noite houve confusão nos sinais. Mais tarde, em casa ela gritava: “Você não me viu quase arrancar a orelha esquerda, não?”
Era para ele mudar de assunto, mas ele tinha bebido tanto que confundira a orelha esquerda dela com a direita e pensara que a mensagem era para não beber mais. E, enquanto girava a aliança acintosamente no dedo continuara a contar o caso que tinha ouvido, às gargalhadas. O caso das vassouradas.
Acontecera durante o carnaval. A mulher voltara da praia de surpresa, na quinta de noite, e cruzara na porta de casa com o marido que saía de sarongue. Se não estivesse de sarongue ele teria inventado uma história para justificar a saída àquela hora. Uma súbita vontade de comer pastel, um amigo doente, qualquer coisa. O sarongue inviabilizara qualquer desculpa. Um sarongue não se disfarça, não se explica, não se nega. O sarongue é o limite da tolerância e do diálogo civilizado. E como o diálogo era impossível, a mulher partira para a agressão. Buscara uma vassoura dentro de casa. E correra com o homem para dentro da casa a vassouradas. A vassouradas!
- Você não sabia que foi com eles que isso aconteceu? Com os donos da casa? gritava agora a mulher. E completava: - Seu pamonha!
- Como é que eu ia saber? Me contaram a história, mas não deram os nomes!
- E eu puxando a orelha feito uma doida!
Mais tarde, já na cama, ele racionalizou:
- Bem feito.
- O quê?
- Pra ela. Não se bate num homem com uma vassoura.
- Ah, é? E o sarongue?
- Não interessa. Nada justifica a vassoura.
- Sei não...
- Podia bater. Mas não com vassoura.
E indignado, como se estabelecesse um dogma:
- Vassoura, não!
Aí a mulher disse que o mal já estava feito e o melhor que eles tinham a fazer era repassar o código para que coisas como aquela não acontecessem mais.
Luís Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam

Romance sem palavras

Há vidas, longas vidas que deixam em nossa lembrança — não uma história mas um certo ar, um clima, uma presença apenas.
Oh! aquelas velhas tias provincianas...
Vidas de uma harmonia tão sutil, tão simples e tão lenta que nem se nota.
Como uma valsinha que alguém fosse tocando ao piano — espaçadamente — com um dedo só…
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Amigo é Casa - Lenine e Zé Renato

O grande e o pequeno

Todo caso de amor tem sempre um grande e um pequeno.
Alguém um dia falou, em francês, que em todo caso de amor il y a toujours celui qui aime et celui qui se laisse aimer. É mais ou menos a mesma coisa. O pequeno ama, o grande se deixa amar. O grande fala, o pequeno ouve. O grande discorda, o pequeno concorda. O pequeno teme, o grande ameaça. O grande se atrasa, o pequeno se antecipa. O grande pede, ou nem precisa pedir, e o pequeno já está fazendo.
Não é uma questão de gênero. Existem homens pequenos e homens grandes, mulheres grandes e mulheres pequenas. O temperamento e as circunstâncias influem, mas não determinam. O grande pode ser o mais bem-sucedido dos dois ou não. O pequeno pode ser o mais sensível, mas nem sempre é assim. Muitas vezes o grande é o mais esperto, mas existem pequenos espertíssimos. Depende do caso.
Como ninguém descobriu, até hoje, uma regra que permita determinar qual é o grande e qual é o pequeno, só observando o casal mais atentamente.
Na rua, o que anda distraído quase sempre é o grande.
Quase sempre, no cinema, o grande só decide comprar pipoca depois que os dois já estão acomodados nas poltronas. pequeno, então, fica esperando, vigiando, tomando conta para o filme não começar antes de o grande voltar, o que, por algum motivo, seria uma tragédia.
Numa festa, o pequeno deve estar ansioso para que a noite seja boa, principalmente se foi ele que sugeriu o programa. O grande se comportará de maneira indiferente até se deixar embriagar pela música, pela bebida ou pelo ambiente, quando então ficará muito mais animado do que o pequeno. Mesmo que o pequeno dance bem, o grande sempre dançará melhor. O pequeno evita o silêncio porque tem certeza de que a culpa é dele, por isso sempre tem arquivados na cabeça assuntos que possam ser úteis em todas as ocasiões. A calça nova do pequeno dificilmente lhe cai tão bem quanto a do grande, assim como o cabelo do grande está sempre melhor do que o pequeno, ainda que a festa inteira pense exatamente o contrário. O pequeno geralmente se comove com a Lua calado, enquanto o grande aponta, olha só a Lua. No final da festa é sempre o pequeno que quer ir embora, reservando o melhor da sua alegria para o resto da noite, enquanto o grande se despede dos amigos displicentemente.
Mais tarde, o pequeno é macho, é gueixa, é desgraçado, é exclusivo e, se o coração do grande por acaso ouvir seus gritos, que sorte. No dia seguinte o pequeno estará inevitavelmente preocupado: será que eu fiz tudo certo? Acho que eu não devia ter dito aquilo. Por que toda vez sou eu que beijo primeiro? Na dúvida, vai correndo procurar o grande, apesar de ter se prometido que nunca mais faria isso.
O grande e o pequeno podem ser de qualquer espécie, inclusive bichos, com exceção dos gatos, que são todos grandes.
Não necessariamente formam um casal. Não é só nas histórias de amor que existem grandes e pequenos. Havendo mais de um, um par qualquer, dois adversários, dois irmãos, dois amigos, sempre haverá o que quer mais e o que quer menos, o fascinante e o fascinado, o generoso e o pedinte.
Mas como tudo pode acontecer, senão nada disso ia ter graça, a qualquer momento, por alguma razão, geralmente à noite, imprevisivelmente, o grande pode ficar pequeno, e o pequeno ficar grande de repente. Basta um vacilo, um acaso, um cair de tarde, um olhar mais assim, um furacão, uma inspiração, uma imprudência.
Quando isso acontece, é comum o pequeno ficar maior ainda, o que torna automaticamente o grande ainda menor. O ex-pequeno, logo que é promovido a grande, pode se vingar do ex-grande, se o seu sofrimento tiver boa memória. Aí, coitado do novo pequeno, vai se arrepender de cada não beijo, cada não telefonema, cada não noite de insônia, cada não desespero, cada não entusiasmo, cada não carinho inesperado, indispensável, inevitável, imprescindível, cada não todas as palavras apaixonadas em qualquer língua do mundo. Ele vai se surpreender com a reviravolta, no começo, pipoca depois que os dois já estão acomodados nas poltronas. pequeno, então, fica esperando, vigiando, tomando conta para o filme não começar antes de o grande voltar, o que, por algum motivo, seria uma tragédia.
Numa festa, o pequeno deve estar ansioso para que a noite seja boa, principalmente se foi ele que sugeriu o programa. O grande se comportará de maneira indiferente até se deixar embriagar pela música, pela bebida ou pelo ambiente, quando então ficará muito mais animado do que o pequeno. Mesmo que o pequeno dance bem, o grande sempre dançará melhor. O pequeno evita o silêncio porque tem certeza de que a culpa é dele, por isso sempre tem arquivados na cabeça assuntos que possam ser úteis em todas as ocasiões. A calça nova do pequeno dificilmente lhe cai tão bem quanto a do grande, assim como o cabelo do grande está sempre melhor do que o pequeno, ainda que a festa inteira pense exatamente o contrário. O pequeno geralmente se comove com a Lua calado, enquanto o grande aponta, olha só a Lua. No final da festa é sempre o pequeno que quer ir embora, reservando o melhor da sua alegria para o resto da noite, enquanto o grande se despede dos amigos displicentemente.
Mais tarde, o pequeno é macho, é gueixa, é desgraçado, é exclusivo e, se o coração do grande por acaso ouvir seus gritos, que sorte. No dia seguinte o pequeno estará inevitavelmente preocupado: será que eu fiz tudo certo? Acho que eu não devia ter dito aquilo. Por que toda vez sou eu que beijo primeiro? Na dúvida, vai correndo procurar o grande, apesar de ter se prometido que nunca mais faria isso.
O grande e o pequeno podem ser de qualquer espécie, inclusive bichos, com exceção dos gatos, que são todos grandes.
Não necessariamente formam um casal. Não é só nas histórias de amor que existem grandes e pequenos. Havendo mais de um, um par qualquer, dois adversários, dois irmãos, dois amigos, sempre haverá o que quer mais e o que quer menos, o fascinante e o fascinado, o generoso e o pedinte.
Mas como tudo pode acontecer, senão nada disso ia ter graça, a qualquer momento, por alguma razão, geralmente à noite, imprevisivelmente, o grande pode ficar pequeno, e o pequeno ficar grande de repente. Basta um vacilo, um acaso, um cair de tarde, um olhar mais assim, um furacão, uma inspiração, uma imprudência.
Quando isso acontece, é comum o pequeno ficar maior ainda, o que torna automaticamente o grande ainda menor. O ex-pequeno, logo que é promovido a grande, pode se vingar do ex-grande, se o seu sofrimento tiver boa memória. Aí, coitado do novo pequeno, vai se arrepender de cada não beijo, cada não telefonema, cada não noite de insônia, cada não desespero, cada não entusiasmo, cada não carinho inesperado, indispensável, inevitável, imprescindível, cada não todas as palavras apaixonadas em qualquer língua do mundo. Ele vai se surpreender com a reviravolta, no começo, mas vai se conformar com sua nova condição de pequeno em seguida. E então vai seguir, cuidadoso e desastrado, na quase inútil intenção de conquistar o grande urgentemente.
Adriana Falcão, in O doido da garrafa

Street Art: Small Girl and small apple, de Oakoak

Fonte: www.streetartutopia.com

Em nome de Deus

Os problemas de Deus não me preocupam. Preocupam-me os problemas dos homens que inventaram um Deus que não faz mais que nos fazer passar péssimos bocados. Talvez Deus exista — eu não creio —, mas não tem sentido que nos matemos em nome de Deus.”
José Saramago, in As palavras de Saramago

Estranhas

O critério
atitudes estranhas”
não dá
para condenar pessoas
criaturas
com entranhas.
Paulo Leminski

Essa velha é um país

1

A última vez que a Avó viajou para Buenos Aires chegou sem nenhum dente, como um recém-nascido. Eu fiz que não percebi. Graciela tinha me advertido, por telefone, de Montevidéu: “Está muito preocupada. Me perguntou: Eduardo não vai me achar feia?”.
A Avó parecia um passarinho. Os anos iam passando e faziam com que ela encolhesse.
Saímos do porto abraçados.
Propus um táxi.
Não, não – disse a ela. – Não é porque ache que você vá ficar cansada. Eu sei que você aguenta. É que o hotel fica muito longe, entende?
Mas ela queria caminhar.
Escuta, vó – falei. – Por aqui não vale a pena. A paisagem é feia. Esta é uma parte feia de Buenos Aires. Depois, quando você tiver descansado, vamos juntos caminhar pelos parques.
Parou, me olhou de cima a baixo. Me insultou. E me perguntou, furiosa:
E você acha que eu olho a paisagem, quando caminho com você?
Se pendurou em mim.
Eu me sinto crescida – disse – debaixo da tua asa.
Perguntou-me: “Você lembra quando me levava no colo, no hospital, depois da operação?”
Falou-me do Uruguai, do silêncio e do medo:
Está tudo tão sujo. Está tão sujo tudo.
Falou-me da morte:
Vou me reencarnar num carrapicho. Ou em um neto ou bisneto seu vou aparecer.
Mas, ô velha – falei. – Se a senhora vai viver duzentos anos. Não me fale da morte, que a senhora ainda vai durar muito.
Não seja perverso – respondeu.
Disse que estava cansada de seu corpo.
Volta e meia eu falo para ele, para meu corpo: “Não te suporto”. E ele responde: “Eu tampouco”.
Olha – disse ela, e esticou a pele do braço.
Falou da viagem:
Lembra quando a febre estava te matando, na Venezuela, e eu passei a noite chorando, em Montevidéu, sem saber por quê? Na semana passada, disse para Emma: “Eduardo não está tranquilo”. E vim. E agora também acho que você não está tranquilo.

2

Vovó ficou uns dias e voltou para Montevidéu.
Depois escrevi uma carta para ela. Escrevi que não cuidasse, que não se chateasse, que não se cansasse. Disse que eu sei direitinho de onde veio o barro com que me fizeram.
E depois me avisaram que tinha sofrido um acidente.
Telefonei para ela.
Foi minha culpa – falou. – Escapei e fui caminhando até a Universidade, pelo mesmo caminho que fazia antes para ver você. Lembra? Eu já sei que não posso fazer isso. Cada vez que faço, caio. Cheguei ao pé da escada e disse, em voz alta: “Aroma do Tempo”, que era o nome do perfume que você uma vez me deu de presente. E caí. Me levantaram e me trouxeram aqui. Acharam que eu tinha quebrado algum osso. Mas hoje, nem bem me deixaram sozinha, me levantei da cama e fugi. Saí na rua e disse: “Eu estou bem viva e louca, como ele quer”.
Eduardo Galeano, in Mulheres

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Da liberdade

Se examinarmos um indivíduo isolado sem o relacionarmos com o que o rodeia, todos os seus atos nos parecem livres. Mas se virmos a mínima relação entre esse homem e quanto o rodeia, as suas relações com o homem que lhe fala, com o livro que lê, com o trabalho que está fazendo, inclusivamente com o ar que respira ou com a luz que banha os objetos à sua roda, verificamos que cada uma dessas circunstâncias exerce influência sobre ele e guia, pelo menos, uma parte da sua atividade. E quantas mais influências destas observamos mais diminui a ideia que fazemos da sua liberdade, aumentando a ideia que fazemos da necessidade a que está submetido.
(...) A gradação da liberdade e da necessidade maiores ou menores depende do lapso de tempo maior ou menor desde a realização do ato até a apreciação desse mesmo ato. Se examino um ato que pratiquei há um minuto em condições quase as mesmas em que me encontro atualmente, esse ato parece-me absolutamente livre. Mas se aprecio um ato realizado há um mês, ao encontrar-me em circunstâncias diferentes, a meu pesar, se não tivesse realizado esse ato, não existiriam muitas coisas inúteis, agradáveis e necessárias que derivam dele. Se me translado com a memória a um ato mais remoto, a um ato de há dez anos ou mesmo mais, então as suas consequências ainda se me apresentarão mais evidentes e ser-me-á difícil representar-me seja o que for, caso aquele ato remoto nunca tivesse existido.
Quanto mais retroceder na minha memória, ou, o que vem a dar na mesma, quanto mais projetar no futuro o meu juízo, tanto mais duvidosos me parecerão os meus raciocínios acerca da liberdade do ato realizado.
Leon Tolstoi, in Guerra e Paz

João Bosco - O amor é chama

A imortalidade nasce das cinzas

A exata glória é a póstuma, a que nenhum dente rói, e que só desce sobre um nome depois da ressurreição intemporal do seu possuidor. Todos sabemos que a imortalidade do poeta lhe nasce das cinzas. Mas o artista enquanto vive é homem. Rege-o tanto uma lei de cima como uma lei de baixo. E por isso, pela transitória fama entre meia dúzia de condicionados contemporâneos, é capaz de matar um irmão. Velhos e novos prestam nesta triste luta as mesmas armas e as mesmas unhas. Os velhos querem guardar os louros; os novos querem tirar-lhos das mãos. E sem haver a mais pequena esperança de paz entre as duas forças. É da própria natureza dos contendores que nenhum ceda. A sofreguidão é tanto da fisiologia senil, como da infantil…”
Miguel Torga, in Diário (1943)

Os girassóis de Van Gogh

Doze girassóis numa jarra (1888), de Vincente Van Gogh

 
Hoje eu vi
Soldados cantando por estradas de sangue
Frescura de manhãs em olhos de crianças
Mulheres mastigando as esperanças mortas.

Hoje eu vi homens ao crepúsculo
Recebendo o amor no peito.
Hoje eu vi homens recebendo a guerra
Recebendo o pranto como balas no peito.

E, como a dor me abaixasse a cabeça,
Eu vi os girassóis ardentes de Van Gogh.
Manoel de Barros

Experiência

Ninguém consegue tirar das coisas, incluindo os livros, mais do que aquilo que ele já conhece. Pois aquilo a que alguém não pode chegar por meio da experiência, para isso ele não terá ouvidos.”
Friedrich Nietzsche

A Rosa Caramela

Dela se sabia quase pouco. Se conhecia assim, corcunda-marreca, desde menina. Lhe chamávamos Rosa Caramela. Era dessas que se põe outro nome. Aquele que tinha, de seu natural, não servia. Rebatizada, parecia mais a jeito de ser do mundo. Dela nem queríamos aceitar parecenças. Era a Rosa. Subtítulo: a Caramela. E ríamos.
A corcunda era a mistura das raças todas, seu corpo cruzava os muitos continentes. A família se retirara, mal que lhe entregara na vida. Desde então, o recanto dela não tinha onde ser visto. Era um casebre feito de pedra espontânea, sem cálculo nem aprumo. Nele a madeira não ascendera a tábua: restava tronco, pura matéria. Sem cama nem mesa, a marreca a si não se atendia. Comia? Ninguém nunca lhe viu um sustento. Mesmo os olhos lhe eram escassos, dessa magreza de quererem, um dia, ser olhados, com esse redondo cansaço de terem sonhado.
A cara dela era linda, apesar. Excluída do corpo, era até de acender desejos. Mas se às arrecuas, lhe espreitassem inteira, logo se anulava tal lindeza. Nós lhe víamos vagueando nos passeios, com seus passinhos curtos, quase juntos. Nos jardins, ela se entretinha: falava com as estátuas. Das doenças que sofria essa era a pior. Tudo o resto que ela fazia eram coisas de silêncio escondido, ninguém via nem ouvia. Mas palavrear com estátuas, isso não, ninguém podia aceitar. Porque a alma que ela punha nessas conversas chegava mesmo de assustar. Ela queria curar a cicatriz das pedras? Com maternal inclinação, consolava cada estátua:
Deixa, eu te limpo. Vou tirar esse sujo, é sujo deles.
E passava uma toalha, imundíssima, pelos corpos petrimóveis. Depois, retomava os atalhos, iluminando-se de enquantos, no círculo de cada poste.
De dia lhe esquecíamos a existência. Mas às noites, o luar nos confirmava seu desenho torto. A lua parecia pegar-se à marreca, como moeda em encosto avaro. E ela, frente aos estatuados, cantava de rouca e inumana voz: pedia-lhes que saíssem da pedra. Sobressonhava.
Nos domingos ela se recolhia, ninguém. A velha desaparecia, ciumosa dos que enchiam os jardins, manchando os sossegos do território dela.
De Rosa Caramela, afinal, não se procurava explicação. Só um motivo se contava: certa vez, Rosa ficara de flores na mão, suspensa à entrada da igreja. O noivo, esse que havia, demorou de vir. Demorou tanto que nunca veio. Ele lhe recomendara: não quero cerimónias. Vou eu e tu, só nós ambos. Testemunhas? Só Deus, se estiver vago. E Rosa suplicava:
Mas, o meu sonho?
Toda a vida ela sonhara a festa. Sonho de brilhos, cortejo e convidados. Só aquele momento era seu, ela rainha, linda de espalhar invejas. Com o longo vestido branco, o véu corrigindo as costas. Lá fora, as mil buzinas. E agora, o noivo lhe negava a fantasia. Se desfez das lágrimas, para que outra coisa serve o verso das mãos? Aceitou. Que fosse como ele queria.
Chegou a hora, passou a hora. Ele nem veio nem chegou. Os curiosos se foram, levando os risos, as zombarias. Ela esperou, esperou. Nunca ninguém esperou tanto um tempo assim. Só ela, Rosa Caramela. Ficou-se no consolo do degrau, a pedra sustentando o seu universal desencanto.
História que contam. Tem sumo de verdade? O que parece é que nenhum noivo não havia. Ela tirara tudo aquilo de sua ilusão. Inventara-se noiva, Rosita-namorada, Rosa-matrimoniada. Mas se nada não aconteceu, muito foi que lhe doeu o desfecho. Ela se aleijou na razão. Para sarar as ideias, lhe internaram. Levaram-lhe no hospital, nem mais quiseram saber. Rosa não tinha visitas, nunca recebeu remédio de alguma companhia. Ela se condizia sozinha, despovoada. Fez-se irmã das pedras, de tanto nelas se encostar. Paredes, chão, teto: só a pedra lhe dava tamanho. Rosa se pousava, com a leveza dos apaixonados, sobre os frios soalhos. A pedra, sua gémea.
Quando teve alta, a corcunda saiu à procura de sua alma minéria. Foi então que se enamorou das estátuas, solitárias e compenetradas. Vestia-lhes com ternura e respeito. Dava-lhes de beber, acudia-lhes nos dias de chuva, nos tempos de frio. A estátua dela, a preferida, era a do pequeno jardim, frente à nossa casa. Era monumento de um colonial, nem o nome restava legível. Rosa desperdiçava as horas na contemplação do busto. Amor sem correspondência: o estatuado permanecia sempre distante, sem dignar atenção à corcovada.
Da nossa varanda lhe víamos, nós, sob o zinco, em nossa casa de madeira. Meu pai, sobretudo, lhe via. Calava-se em si, todo. Era a loucura da corcunda que fazia voar nossos juízos? O meu tio brincava, para salvar o nosso estado:
Ela é como o escorpião, leva o veneno nas costas.
Dividíamos os risos. Todos, exceto meu pai. Sobejava intacto, grave.
Ninguém vê o cansaço dela, vocês. Sempre a carregar as costas nas costas.
Meu pai se afligia muito dos cansaços alheios. Ele, em si, não se dava a fatigar. Sentava-se. Servia-se dos muitos sossegos da vida. Meu tio, homem de expedientes, lhe avisava:
Mano Juca, desarasca lá uma maneira de viver.
Meu pai nem respondia. Parecia mesmo que ele mais se tornava encostadiço, cúmplice da velha cadeira. Nosso tio tinha razão: ele carecia de ocupação salariável. O único despacho de seu fazer era alugar os próprios sapatos. Domingo, chegavam os do clube dele, paravam a caminho do futebol.
Juca, vimos por causa os sapatos.
Ele acenava, lentíssimo.
Já sabem o contrato: levam e, depois, quando regressarem, contam como foi o jogo.
E inclinava-se para tirar os sapatos debaixo da cadeira. Baixava-se com tanto esforço que parecia estar a apanhar o próprio chão. Subia o par de sapatos e olhava-lhes em fingida despedida:
Custa-me.
Só por causa do médico é que ele ficava. Proibiram-lhe os excessos do coração, pressas no sangue.
Porcaria de coração.
Batia no peito para castigar o órgão. E voltava à conversa com o calçado:
Vejam lá, vocês, sapatinhos: hora certa, regressam de volta.
E recebia, adiantado, os dinheiros. Ficava por muito gesto a contar as notas. Era como se lesse um gordo livro, desses que gostam mais dos dedos que dos olhos.
Minha mãe: era ela que metia os pés na vida. Muito cedo saía, rumo dela. Chegava ao bazar, a manhã ainda era pequena. O mundo transparecia, em estreia solar. A mãe arrumava a banca antes das outras vendedeiras. Entre couves empilhadas, se via a cara dela, gorda de tristes silêncios. Ali se sentava, ela e o corpo dela. Na luta pela vida, a mamã nos fugia. Chegava e partia no escuro. À noite, lhe escutávamos, ralhando com a preguiça do pai.
Juca, você pensa a vida?
Penso, até muito.
Sentado?
Meu pai se poupava nas respostas. Ela, só ela, lastimava:
Eu, sozinha, no serviço dentro e fora.
Aos poucos, as vozes se apagavam no corredor. De minha mãe ainda sobravam suspiros, desmaios da sua esperança. Mas nós não dávamos culpa a meu pai. Ele era um homem bom. Tão bom que nunca tinha razão.
E assim, em nosso pequeno bairro, a vida se resumia. Até que, um dia, nos chegou a notícia: a Rosa Caramela tinha sido presa. Seu único delito: venerar um colonialista. O chefe das milícias atribuiu a sentença: saudosismo do passado. A loucura da corcunda escondia outras, políticas razões. Assim falou o comandante. Não fora isso, que outro motivo teria ela para se opor, com violência e corpo, ao derrube da estátua? Sim, porque o monumento era um pé do passado rasteirando o presente. Urgia a circuncisão da estátua para respeito da nação.
Do modo que levaram a velha Rosa, para cura de alegadas mentalidades. Só então, na ausência dela, vimos o quanto ela compunha a nossa paisagem.
Ficamos tempos sem escutar suas notícias. Até que, certa tarde, nosso tio rasgou os silêncios. Ele vinha do cemitério, chegado do enterro de Jawane, o enfermeiro. Subiu as pequenas escadas da varanda e interrompeu o descanso de meu pai. Coçando as pernas, o meu velhote piscou os olhos, calculando a luz:
Então, trouxeste os sapatos?
O tio não respondeu logo. Estava ocupado a servir-se da sombra, curando-se da transpiração. Soprou nos próprios lábios, cansado. No seu rosto eu vi aquele alívio de quem regressa de um enterro.
Estão aqui, novinhos. Eh pá, Juca, me fizeram jeito esses sapatos pretos!
Procurou nos bolsos, mas o dinheiro, que sempre tem modos rápidos ao entrar, demorou a sair. Meu pai lhe emendou o gesto:
A você não aluguei. Somos da família, calçamos juntos.
O tio se sentou. Puxou da garrafa de cerveja e encheu um copo grande. Depois, com ciência, pegou numa colher de pau e retirou a espuma para outro copo. Meu pai serviu-se desse copo, só com espuma. Proibido nos líquidos, o velho se dedicava só nos espumantes.
É leve, a espuminha. O coração nem nota a passagem dela.
Se consolava, olhos em riste como se alongasse o pensamento. Não passava de fingimento aquele afundar-se em si.
Estava cheio o enterro?
Enquanto desamarrava os sapatos, meu tio explicou a enchente, multidões pisando os canteiros, todos a despedirem do enfermeiro, coitado, também ele se morreu.
Mas matou-se mesmo?
Sim, o gajo se pendurou. Encontraram-lhe já estava duro, parecia gomadinho na corda.
Mas matou-se por qual razão?
Não sei lá. Dizem foi por motivo de mulheres.
Calaram-se os dois, sorvendo os copos. O que mais lhes doía não era o facto mas o motivo.
Morrer assim? Mais vale falecer.
Meu velho recebeu os sapatos e inspecionou-lhes com desconfiança:
Esta terra vem de lá?
É onde, esse lá?
Pergunto se vem do cemitério.
Talvez vem.
Então vai lá limpar, não quero poeira dos mortos aqui.
Meu tio desceu as escadas e sentou-se no último degrau, escovando as solas. No enquanto, foi contando. A cerimônia decorria-se, o padre executava as rezas, abastecendo as almas. De repente, o que sucede? Aparece a Rosa Caramela, vestida de máximo luto.
A Rosa já saiu da prisão? — perguntou, atônito, o meu pai.
Sim, saíra. Numa inspeção à cadeia, lhe deram amnistia. Ela era louca, não tinha crime mais grave. Meu pai insistia, admirado:
Mas ela, no cemitério?
O tio prosseguiu o relato. A Rosa, por baixo das costas, toda de negro. Nem um corvo, Juca. Foi entrando, com modos de coveira, espreitando as sepulturas. Parecia escolher o buraco dela. No cemitério, você sabe, Juca, lá ninguém demora a visitar as covas. Passamos depressa. Só essa corcunda, a gaja…
Conta o resto — cortou o meu pai.
Seguiu-se a narração: a Rosa, ali, no meio de todos, começou a cantar. Com educado espanto, os presentes a fixavam. O padre mantinha a oração mas ninguém já lhe ouvia. Foi então que a marreca começou a despir.
Mentira, mano.
Fé de Cristo, Juca, me desçam duas mil facas. Despiu. Foi tirando os panos, com mais vagar que esse calor de hoje. Ninguém ria, ninguém tossia, ninguém nada. Já nua, esroupada, ela se chegou junto à campa do Jawane. Encimou os braços, lançou as roupas dela na cova. A multidão receou a visão, recuou uns passos. A Rosa, então, rezou:
Leva essas roupas, Jawane, te vão fazer falta. Porque tu vais ser pedra, como os outros.
Olhando os presentes, ela ergueu a voz, parecia maior que uma criatura:
E agora: posso gostar?
Os presentes recuaram, só se escutava a voz da poeira.
Hein? Deste morto posso gostar! Já não é dos tempos. Ou deste também sou proibida?
O meu pai deixou a cadeira, parecia quase ofendido.
Falou assim, a Rosa?
Autêntico.
E o tio, já predispronto, imitava a corcunda, seu
corpo vesgo: e este, posso-lhe amar? Mas o meu velhote se escapou a ouvir.
Cala-te, não quero ouvir mais.
Brusco, ele largou o copo pelos ares. Queria despejar a espuma mas, de injusto lapso, saiu-lhe o copo todo da mão. Como se pedisse desculpa, meu tio foi apanhando os vidrinhos, tombados de costas pelo quintal.
Nessa noite, eu desconsegui de dormir. Saí, sentei a insónia no jardim da frente. Olhei a estátua, estava fora do pedestal. O colono tinha as barbas pelo chão, parecia que era ele mesmo quem tinha descido, por soma de grandes cansaços. Tinham arrancado o monumento mas esqueceram de o retirar, a obra requeria acabamentos. Senti quase pena do barbudo, sujo das pombas, encharcado de poeira. Me acendi, vindo ao juízo: estou como a Rosa, pondo sentimento nos pedregulhos? Foi então que vi a própria, a Caramela, parecia chamada pelos meus conjuros. Fiquei quase gelado, imovente. Queria fugir, minhas pernas se negavam. Estremeci: eu me convertia em estátua, virando assunto das paixões da marreca? Horror, me fugisse a boca para sempre. Mas, não. A Rosa não parou no jardim. Atravessou a estrada e chegou-se às escadinhas de nossa casa. Baixou-se nos degraus, limpou deles o luar. Suas coisas se pousaram num suspiro. Depois, ela se entartarugou, aprontando-se, quem sabe, ao sono. Ou fosse de sua intenção apenas a tristeza. Porque lhe escutei chorar, num murmúrio de águas escuras. A corcunda se derramava, parecia era vez dela se estatuar. Me infindei, nessa visagem.
Foi, então. Meu pai, em apuros de silêncio, abriu a porta da varanda. Lento, se aproximou da corcunda. Por instantes, ficou debruçado sobre a mulher. Depois, movendo a mão como se fosse um gesto só sonhado, lhe tocou os cabelos. Rosa nem se esboçava, a princípio. Mas, depois, foi saindo de si, rosto na metade
da luz. Olharam-se os dois, ganhando beleza. Ele, então, sussurrou:
Não chora, Rosa.
Eu quase não ouvia, o coração me chegava aos ouvidos. Me aproximei, sempre por trás do escuro. Meu pai lhe falava ainda, aquela sua voz nem eu lhe havia nunca ouvido.
Sou eu, Rosa. Não lembra?
Eu estava no meio das buganvílias, seus picos me rasgavam. Nem sentia. O assombro me espetava mais que os ramos. As mãos de meu pai se afundavam no cabelo da corcunda, pareciam gente, aquelas mãos, pareciam gente se afogando.
Sou eu, Juca. O seu noivo, não lembra?
Aos poucos, Rosa Caramela se irrealizou. Ela nunca tanto existira, nenhuma estátua lhe merecera tantos olhos. Meigando ainda mais a voz, meu pai lhe chamou:
Vamos, Rosa.
Sem querer eu já saíra das buganvílias. Eles me podiam ver, nem me fazia nenhum estorvo. Parecia a Lua até atiçou seu brilho quando a corcunda se ergueu.
Vamos, Rosa. Pega suas coisas, vamos embora.
E foram-se os dois, noite adentro.
Mia Couto, in Cada homem é uma raça