domingo, 31 de dezembro de 2017

Do tempo

Nós nos mostramos ingratos em relação ao que nos foi dado por esperarmos sempre no futuro, como se o futuro (na hipótese de lá chegarmos) não se transformasse rapidamente em passado. Quem goza apenas do presente não sabe dar o correto valor aos benefícios da existência; quer o futuro quer o passado nos podem proporcionar satisfação, o primeiro pela expectativa, o segundo pela recordação; só que enquanto um é incerto e pode não se realizar, o outro nunca pode deixar de ter acontecido. Que loucura é esta que nos faz não dar importância ao que temos de mais certo? Mostremo-nos satisfeitos por tudo o que nos foi dado gozar, a não ser que o nosso espírito seja um cesto roto onde o que entra por um lado vai logo sair pelo outro!”
Sêneca, in Cartas a Lucílio

A flor e a náusea


Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Carlos Drummond de Andrade

Street Art, de Banksy



Um sentimento de responsabilidade coletiva

O que quero dizer é que não vejo nenhum motivo para deixar de ser aquilo que sempre fui: alguém que está convencido de que o mundo em que vivemos não vai bem; convencido de que a aspiração legítima e única que justifica a vida, ou seja, a felicidade do ser humano, está sendo fraudada diariamente; e que a exploração do homem pelo homem continua a existir. Nós, seres humanos, não podemos aceitar as coisas tais como elas são, pois isso nos conduz diretamente ao suicídio. É preciso acreditar em algo e, sobretudo, é preciso ter um sentimento de responsabilidade coletiva, pelo qual cada um de nós é responsável por todos os outros. E isso eu não consigo ver no capitalismo.”
José Saramago, in As palavras de Saramago

O púlpito

Não fazia muito tempo que eu estava sentado quando um homem de uma venerável solidez entrou; assim que a porta, impelida pelo vento, se abriu para admiti-lo, o rápido olhar lançado sobre ele por toda a congregação foi o suficiente para atestar que aquele portentoso senhor era o capelão. Sim, era o famoso padre Mapple, assim chamado pelos baleeiros, que muito o admiravam. Tinha sido marinheiro e arpoador na juventude, mas já havia muitos anos que se dedicava ao ministério. Na época a que me refiro, o padre Mapple estava no inverno rigoroso de uma velhice sadia; o tipo de velhice que parece mesclar-se ao desabrochar de uma segunda juventude, pois entre todos os sulcos de suas rugas brilhavam certos tons suaves de uma nova floração – o verdor da primavera despontando mesmo sob a neve de fevereiro. Ninguém que tivesse ouvido sua história poderia deixar de olhar para o padre Mapple com o maior interesse, porque havia certas peculiaridades clericais enxertadas em seu caráter, imputáveis àquela aventureira vida marítima que ele antes levara. Quando entrou, vi que ele não trazia guarda-chuva e que por certo não tinha vindo em sua carruagem, porque a neve escorria de seu chapéu alcatroado e seu grande casaco de piloto parecia forçá-lo para o chão com o peso da água que tinha absorvido. Mas tirou o chapéu, o casaco e as galochas, pendurando-os num canto próximo; depois, vestido com decoro, tranquilamente se aproximou do púlpito.
Como a maioria dos púlpitos antiquados, este era muito alto, e como para chegar lá teria sido preciso uma escada muito grande, com um ângulo muito aberto no chão, o que diminuiria ainda mais a área diminuta da capela, o arquiteto, como que por sugestão do padre Mapple, terminou o púlpito sem colocar uma escada comum, substituindo-a por uma escada lateral perpendicular, como as que são usadas para subir a bordo de um navio vindo de um barco. A esposa de um capitão baleeiro havia doado um par de cordas vermelhas, tingidas da cor do mogno, e o conjunto todo, considerando-se o tipo de capela, não era de mau gosto. Parando por uns instantes ao pé da escada, segurando com as duas mãos os nós ornamentais das cordas, o padre Mapple olhou para cima e, com uma destreza de marinheiro, mas ainda reverente, subiu as escadas como se estivesse subindo ao mastro de sua embarcação.
As partes perpendiculares dessa escada lateral, como ocorre em escadas suspensas, eram de uma corda recoberta por tecido, apenas os degraus eram de madeira, de tal modo que em cada degrau havia um nó. À primeira vista, não deixei de notar que esses nós, embora úteis num navio, pareciam desnecessários ali. Mas eu não sabia que o padre Mapple, depois de atingir as alturas, iria se virar devagar e, debruçando-se sobre o púlpito, puxar a escada degrau por degrau, até que desaparecesse toda no interior do púlpito, deixando-o isolado em sua pequena Quebec.
Refleti por algum tempo sem compreender o motivo desse gesto. Padre Mapple gozava da reputação de homem sincero e santo, e eu não poderia supor que fosse capaz de cortejar a notoriedade com simples truques cênicos. Não, pensei, deve haver uma razão muito séria para isso; além disso, deve simbolizar algo despercebido. Seria possível, então, que com um ato de isolamento físico ele quisesse representar seu retiro espiritual, distante de todos os laços e ligações exteriores com o mundo? Sim, pois repleto da carne e do vinho do mundo, para o fiel servidor de Deus esse púlpito – entendo – se tornava uma fortaleza fechada – a imponente Ehrenbreitstein, com uma fonte de água perene dentro das suas muralhas.
Mas a escada lateral não era a única característica estranha do lugar, ligada à antiga vida de marinheiro do capelão. Entre os cenotáfios de mármore de cada um dos lados do púlpito havia uma parede ao fundo, enfeitada com um grande quadro, que representava um navio enfrentando uma tempestade terrível nas imediações de um litoral de rochas negras com ondas alvas. Mais no alto, acima da tormenta e das nuvens carregadas, flutuava uma pequena ilha de luz, da qual irradiava o rosto de um anjo; e este rosto iluminado lançava um jato de luz sobre o convés balançante do navio, parecido com a placa de prata hoje posta na prancha do Vitória, em que Nelson caiu. “Ah!, nobre navio!”, o anjo parecia dizer, “avante, avante, ó, nobre navio, sustenta o duro elmo! Bem vês que o sol abre caminho; as nuvens se dissipam – e o azul mais sereno começa a despontar.”
E nem mesmo ao púlpito faltava traço do mesmo gosto marítimo que fazia parte da escada e do quadro. A frente, como um painel, lembrava uma falsa proa, e a Santa Bíblia repousava sobre um pedaço de madeira talhada, cujas formas imitavam o bico arrabecado de um navio.
O que poderia ser mais significativo? – uma vez que o púlpito é sempre a parte mais avançada da terra; todo o resto vem depois; o púlpito lidera o mundo. É de lá que se vê surgir a ira de Deus, e a proa deve suportar o primeiro tranco. É de lá que se invoca o Deus dos ventos bons ou ruins, na esperança de ventos favoráveis. Sim, o mundo é um navio numa travessia sem regresso; e o púlpito é sua proa.
Herman Melville, in Moby Dick

Marcelo Barra - Nos Tempos dos Quintais

Rir junto é melhor que falar a mesma língua

[…] Acabrunhado, Bartolomeu aceitou. Primeiro, foram os outros que lhe mudaram o nome, no batismo. Depois, quando pôde voltar a ser ele mesmo, já tinha aprendido a ter vergonha do seu nome original. Ele se colonizara a si mesmo. E Tsotsi dera origem a Sozinho.
Eu sonhava ser mecânico, para consertar o mundo. Mas aqui para nós que ninguém nos ouve: um mecânico pode chamar-se Tsotsi?
Ini nkabe dziua (expressão que significa “Eu não sei”, na língua chisena).
Ah, o Doutor já anda a aprender a língua deles?
Deles? Afinal, já não é a sua língua?
Não sei, eu já nem sei…
O português confessa sentir inveja de não ter duas línguas. E poder usar uma delas para perder o passado. E outra para ludibriar o presente.
A propósito de língua, sabe uma coisa, Doutor Sidonho? Eu já me estou a desmulatar.
E exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada. O médico franze o sobrolho, confrangido: a mucosa está coberta de fungos, formando uma placa esbranquiçada.
Quais fungos? — reage Bartolomeu. — Eu estou é a ficar branco de língua, deve ser porque só falo português…
O riso degenera em tosse e o português se afasta, cauteloso, daquele foco contaminoso. Quase colide com Suacelência que acaba de cruzar a estrada. O Administrador vem esbaforido e cumprimenta, de forma esquiva, os presentes. Detém-se sob a janela, aproveita a sombra para enxugar meticulosamente o afogueado rosto.
Então, Excelência — inquire o velho Sozinho —, tão cedo e já anda a chatear as moscas?
Que se passa, Suacelência? — pergunta o português, emendando a indelicadeza do seu paciente.
A rapaziada da banda eleitoral — suspira, contendo uma emergente onda de fúria —, a rapaziada fugiu com os instrumentos.
Mas isso é um bambúrrio de azar. Então os bandos roubaram-lhe a banda?
Ignorando o tom irônico da pergunta, o Administrador acena com gravidade. Não se tratava, segundo ele, de um simples furto. Aquilo era uma cabala política, manobra dos inimigos da Pátria.
Um feiticeiro conhece todos os feiticeiros… — ironiza o velho Sozinho.
Por que não me respeita, Bartolomeu? A mim que fiz tanto pelo país?
O país preferia que o senhor não tivesse feito nada.
Por que não gosta de mim?
Eu gosto da minha terra, da minha gente. E o senhor gosta de quem?
Contudo, o Administrador já desandou, estrada fora, coxeando levemente. Bartolomeu e Sidónio ficam olhando a figura do dirigente desvanecer-se como se assistissem ao seu ocaso político.
Sinto pena dele — admite o português.
Pois eu estou-me merdando para o gajo — remata Bartolomeu.
Ri-se para reafirmar o desprezo. E logo lhe sobrevém um ataque de tosse que o deixa sem respirar.
Puta de vida — diz —, não vivemos se não nos rimos e depois morremos por nos termos rido — e conclui, após recuperar fôlego: — O Doutor acha que sou uma anormalidade?
O médico olha para o parapeito e estremece de ver tão frágil, tão transitório aquele que é o seu único amigo em Vila Cacimba. O aro da janela surge como uma moldura da derradeira fotografia desse teimoso mecânico reformado.
Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?
Depende — responde o português.
O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?
Sim.
Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.
O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteira da Vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda de sentidos.
Me receite um remédio para eu desmaiar.
O português ri-se. Também a ele lhe apetecia uma intermitente ilucidez, uma pausa na obrigação de existir.
Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.
Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.
Mia Couto, in Venenos de Deus, remédios do Diabo

sábado, 30 de dezembro de 2017

Vou tratar de aprender

Fotograma do filme As vinhas da ira (1940)

Tom lançou um olhar aos degraus da porta.
Aí vem o reverendo — disse. — Aí, atrás do celeiro.
A mãe disse:
Foi a reza mais engraçada que já ouvi, essa que ele disse hoje de manhã. Na verdade, nem foi uma reza. Foi só uma falação, mas parecia uma reza.
Ele é um camarada muito engraçado — disse Tom. — Diz coisas engraçadas sempre. E muitas vezes até fala sozinho. Mas não quer voltar a ser pregador.
Repara só no olhar dele — disse a mãe. — Parece que foi purificado. Tem um olhar que, como se diz, atravessa tudo. Sim, sim, ele é na certa purificado. E anda sempre de cabeça baixa, de olhar parado no chão. É um homem com toda a certeza purificado. — E ela calou-se, porque Casy se tinha aproximado da porta.
O senhor vai apanhar uma insolação andando assim, com a cabeça descoberta — disse-lhe Tom.
Casy disse:
Sim, é possível. — E, de repente, dirigiu-se a todos: — Eu tenho que ir para o Oeste. Tenho que ir. Eu pensei em ir com vocês, se consentissem. — Estacou, embaraçado com a veemência de suas palavras.
A mãe olhou para Tom, esperando que ele dissesse qualquer coisa, porque Tom já era um homem feito. Dera-lhe esta oportunidade, que afinal era o seu direito, depois do que, falou ela mesma:
É claro que a gente ficava muito honrada com a sua companhia. Mas agora ainda não posso dizer nada de seguro. O pai diss’que os homens vão se reunir hoje de noite para combinar o dia da viagem. Acho que é melhor a gente não dizer nada enquanto todos eles não voltarem. John e o pai, o Noah, o Tom, o avô, o Al e o Connie vão todos tratar disso, logo que chegarem. Mas eu acho que, se tiver lugar, o senhor poderá vir conosco, teremos muito prazer.
O pregador suspirou.
Eu vou, de qualquer maneira — disse. — Alguma coisa vai acontecer. Eu subi naquele alto e fiquei olhando, as casas estão todas vazias e os campos estão vazios e a terra toda está vazia. Não posso continuar mais por aqui. Tenho que ir para onde toda a gente vai. Vou trabalhar a terra e talvez seja feliz.
E não vai mais fazer sermões? — inquiriu Tom.
Não, não quero saber mais disso.
E não vai batizar mais ninguém? — perguntou a mãe.
Não, também não vou batizar mais. Vou trabalhar no campo, nos campos verdes, e ficar mais perto de toda a gente. E não vou ensinar mais nada a ninguém. Eu é que vou tratar de aprender. Vou aprender por que os homens andam pelos campos, vou ouvi-los falar e cantar. Vou olhar as crianças comerem mingau e os homens e mulheres sacudirem os colchões das camas de noite. Vou comer com eles e aprender com eles. — Seus olhos tornaram-se úmidos e brilhavam. — Vou me deitar na grama, aberta e honestamente, com quem me queira. Vou gritar e praguejar à vontade e vou ouvir as canções populares. É isto que é sagrado, é isto tudo que eu não pude até agora compreender. Isto é o que é o verdadeiro, o bom.
A mãe disse:
A... mém.
O pregador sentou-se humildemente no cepo, ao lado da porta.
Que é que um homem sozinho pode fazer?
Tom tossiu com delicadeza.
Para um homem que não prega mais... — começou.
Oh, eu sou mesmo um sujeito muito falador — disse Casy. — É meu jeito e já não posso mudar. Mas não quero saber mais de pregar para o povo. Pregar é contar coisas. Mas eu não conto nada, eu faço perguntas. Isto não é pregar, é?
Não sei — disse Tom. — Pregar é ter um tom especial na voz, é um modo diferente de ver as coisas. Pregar é fazer bem ao povo, apesar de que o povo às vezes tem vontade de matar quem faz o sermão. Na última noite de Natal, o Exército da Salvação foi a McAlester pra distrair a gente. Teve música durante mais de três horas e a gente ficou sentado ali, ouvindo. Eles foram muito gentis com a gente. Mas se um só dos nossos tentasse sair da sala, todo mundo saía junto. É isso que se chama pregar. Fazer bem a alguém que tá mal e que não pode evitar que o façam. Não, o senhor não é pregador. O senhor não tá aqui forçando ninguém a ouvir música de igreja.
A mãe enfiou lenha no fogão.
Vou fazer comida pra você, mas não vai ser muita.
O avô levou o caixote para fora, sentou-se sobre ele e recostou-se à parede, e também Casy e Tom recostaram-se à parede. E a sombra da tarde abandonou a casa.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

Filosofia de vida

Seja cortês com todos, sociável com muitos, íntimo de poucos, amigo de um e inimigo de nenhum.”
Benjamim Franklin

Homens e dinossauros

tem gente que nunca andou de bicicleta
mas sabe pedalar a sua vida
tem gente quem fuma cigarro e morre de câncer
antes de quem fuma maconha
tem gente que diz bom dia
e do nada morre à tarde
tem gente que nunca foi ao cinema
e sua vida virou filme
tem gente que compra carros novos
e morre atropelado
tem gente que pensa que é moderna
e é primata até dizer bosta
tem gente que se falta luz
nem um candeeiro acende

tem gente que nem o poste suporta

tem gente que no bar fala demais
e esquece de pagar a conta
tem gente que nem a conta paga

e os dinossauros nunca souberam
que o homem existiu.
Miró da Muribeca

Acerca da curiosidade

A curiosidade, instinto de complexidade infinita, leva por um lado a escutar às portas e por outro a descobrir a América: — mas estes dois impulsos, tão diferentes em dignidade e resultados, brotam ambos de um fundo intrinsecamente precioso, a atividade do espírito. Um espírito indolente não se arremessa com magnificência para os mares desconhecidos: também não se arrasta mesquinhamente para as fendas das portas: imóvel, como uma árvore sobre as raízes, ondula e rumoreja, dá a sua folha ou o seu fruto, derrama a sua curta sombra sobre o seu curto chão, e na mesma imobilidade, direito sobre as raízes, murcha, caduca e perece. O espírito porém que incita o homem a deixar a quietação do banco do seu jardim, a trepar a um muro escorregadio, a espreitar o jardim vizinho, possui já uma estimável força de vivacidade indagadora: — e a tendência que o moveu é essencialmente idêntica à tendência que, noutro tempo, levara outro homem a subir às rochas de Sagres, para contemplar, com sublime ansiedade, as neblinas atlânticas. Ambos são dois espíritos muito ativos, almejando por conhecer o mundo e a vida que se estendem para além do seu horizonte e do seu muro. O valor tão violentamente discordante das obras dependerá apenas do quilate dos dois espíritos, e das condições em que se exerçam, largas aqui com toda a largueza da onipotência, mais estreitas além do que a choça de um servo. Um, nascido com aladas aspirações de conquista e de fé, trabalhando sobre as energias novas de um povo forte, revelará aos homens o segredo da Terra: — o outro, de índole peca, enlevado na importância da comadre e da couve, não cessará de esfolar os joelhos, no esforço de trepar aos muros para espiolhar as vidas e as couves alheias. Depois um, ao acompanhamento das liras épicas, penetra na imortalidade: o outro não passa do canto do muro, onde certamente o apedrejarão. Mas ambos eles, o criador de civilização e o criador de escândalo, obedeceram à mesma energia íntima de iniciativa descobridora. São dois espíritos governados pela curiosidade, a vil curiosidade, como lhe chama Byron, com romântica ignorância,... E de resto, sem essa qualidade vil, nunca o primitivo Adão teria emergido da caverna primitiva, e todos nós, mesmo o curiosíssimo Byron, permaneceríamos, através dos tempos, solitários e horrendos trogloditas.
Eça de Queirós, in Notas contemporâneas

A brasilidade no traço de Portinari

Semeadora (1955), de Cândido Portinari

Caso de justiceiro

Mercadinho é imagem de confusão organizada. Todos comprando tudo ao mesmo tempo em corredores estreitos, carrinhos e pirâmides de coisas se comprimindo, apalpamento, cheiração e análise visual de gêneros pelas madamas, e, a dominar o vozerio, o metralhar contínuo das registradoras. Um olho visível, múltiplo e implacável, controla os menores movimentos da freguesia, devassa o mistério de bolsas e bolsos, quem sabe se até o pensamento. Parece o caos; contudo nada escapa à fiscalização. Aquela velhinha estrangeira, por exemplo, foi desmascarada.
A senhora não pagou a dúzia de ovos quebrados.
Paguei.
Antes que o leitor suponha ter a velhinha quebrado uma dúzia de ovos, explico que eles estão à venda assim mesmo, trincados. Por isso são mais baratos, e muita gente os prefere; casca é embalagem. A senhora ia pagar a dúzia de ovos perfeitos, comprada depois; mas e os quebrados, que ela comprara antes?
A velhinha se zanga e xinga em ótimo português-carioca o rapaz da caixa. O qual lhe responde boas, no mesmo idioma, frisando que gringo nenhum viria lá de sua terra da peste para dar prejuízo no Brasil, que ele estava ali para defender nosso torrão contra piratas da estranja. A mulher, fula de indignação, foi perdendo a voz. Caixeiros acorreram, tomando posição em defesa da pátria ultrajada na pessoa do colega; entre eles, alguns portugueses. A freguesia fez bolo. O mercadinho parou.
Eis que irrompe o tarzã de calção de banho ainda rorejante e berra para o caixa:
Para com isso, que eu não conheço essa dona mas vê-se pela cara que é distinta.
Distinta? Roubou cem cruzeiros à casa e insultou a gente feito uma danada.
Roubou coisa nenhuma, e o que ela disse de você eu não ouvi mas subscrevo. O que você é, é um calhorda e quer fazer média com o patrão à custa de uma pobre mulher.
O outro ia revidar à altura, mas o tarzã não era de cinema, era de verdade, o que aliás não escapou à percepção de nenhum dos presentes. De modo que enquanto uns socorriam a velhinha, que desmaiava, outros passavam a apoiá-la moralmente, querendo arrebentar aquela joça. O partido nacionalista acoelhou-se. Foram tratando de cerrar as portas, para evitar a repetição do saque de Caxias. Quem estava lá dentro que morresse de calor; enquanto não viessem a radiopatrulha e a ambulância, a questão dos ovos ficava em suspenso.
Ah, é? — disse o vingador. — Pois eu pago os cem cruzeiros pelos ovos mas você tem de engolir a nota.
Tirou-a do bolso do calção, fez uma bolinha, puxou para baixo, com dedos de ferro, o queixo do caixa, e meteu-lhe o dinheiro na boca.
Assistência deslumbrada, em silêncio admiracional. Não é todos os dias que se vê engolir dinheiro. O caixa começou a mastigar, branco, nauseado, engasgado.
Uma voz veio do setor de ovos:
Ela não roubou mesmo não! Olha o dinheiro embaixo do pacote!
Outras vozes se altearam: — Engole mais os outros cem! — Os ovos também! — Salafra — Isso! — Aquilo!
A onda era tamanha que o tarzã, instrumento da justiça divina, teve de restabelecer o equilíbrio.
Espera aí. Este aqui já pagou. Agora vocês é que vão engolir tudo, se maltratarem este rapaz.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

Elegia a um felino


Para Stefania Chiarelli

Os gatos têm a má fama de serem ariscos, esquivos, indiferentes; de não darem a mínima para o seu dono e de serem altivos até a intolerável arrogância. Por que tantos atributos negativos ao membro mais inofensivo da família dos felídeos? Talvez pela independência desses bichos. Por isso, muita gente os despreza e mesmo os detesta.
Não fazem festa nem estardalhaço, não são excessivamente carentes de afeto, podem dormir e sonhar por um século e esquecer o mundo ao redor. E seus miados são notas monótonas de uma canção minimalista. Não por acaso, um ditado chinês diz: O cachorro é um romance, e o gato, um poema.
Nesse sábio ditado oriental reside uma delicada definição dos gêneros literários. Pense no cotidiano de um cão: as peripécias, o corre-corre, os latidos, os momentos de exaltação e melancolia, os ganidos de dor, saudade ou fome, as fugas, os saltos estabanados, os ataques de raiva, as mordidas, o afeto meloso, as disputas ciumentas… Tudo isso lembra o trançado de eventos e peripécias de um romance.
Agora imagine o discreto cotidiano de um gato: a pose hierática, a atitude ensimesmada, o salto sem ruído, a expressão misteriosa do olhar, a repetição dos gestos, como se cada passo repetisse o anterior, o olhar em transe, focando as asas de um inofensivo beija-flor…
O gato encarna uma subjetividade lírica que reitera o ditado chinês. E quantos poetas não fizeram desses bichinhos um tema lírico, um canto a esse olhar misterioso que nos surpreende de algum lugar improvável? Um desses poetas, um dos maiores de língua francesa, escreveu que os chineses veem a hora do dia ou da noite nos olhos de um gato.
Algo me diz que os felinos vivem no tempo e os cachorros, no espaço. É o que senti no meu convívio com Leon, meu único animal de estimação. Encontrei-o num descampado próximo do edifício onde eu morava. Um bichaninho, como se diz no Norte e em outras regiões do Brasil. Pequeno, mirrado e faminto, sua pelagem reluzia um amarelo vivo. Eu não era um conhecedor de felinos, mas sabia que esses animais cultivavam a introspecção. Levei-o para o apartamento, onde foi um hóspede discreto que, aos poucos, tornou-se um companheiro quase silencioso. E, contrariando o senso comum, Leon não era esquivo nem altaneiro.
Era um gato de grande caráter, e nisso ele se diferenciava de muitos políticos. Aliás, os raros momentos de irritação de Leon ocorriam durante as campanhas eleitorais, quando os carros de som e trios elétricos de Manaus alardeavam promessas absurdas e mentirosas. O gato reagia no ato, emitindo miados dissonantes e enlouquecidos, pulando da mesa para a geladeira e, por fim, me encarando com um olhar de revolta e indignação. Eu fechava as portas e janelas para abafar a algaravia da propaganda política, e ficava encharcado de suor no pequeno apartamento transformado num forno. Mas isso era preferível às ondas sonoras de mentiras que tanto espezinhavam Leon.
Ou seriam ondas de mentiras sonoras?
Gato, gato: o tempo passa como se fosse uma distração. Já faz mais de dez anos. Se soubesses como os políticos continuam os mesmos. São outros, mas os mesmos. E tudo indica que o futuro nos reserva uma galeria de mascarados diferentes uns dos outros, mas bastará tirar as máscaras para que os mesmos reapareçam que nem fantasmas do passado. Bem me dizias, com teu olhar lancinante, que alguns políticos valem menos que os dejetos enterrados no descampado. Teus dejetos.
Mas não é só dessa militância felina que sinto saudades. Quando eu lia um romance ou preparava uma aula, Leon se aproximava com passos preguiçosos e deitava na escrivaninha, ao lado de um livro de Stendhal, Apollinaire ou Zola. Às vezes, movido por uma euforia de leitor voraz, ele mastigava páginas, capítulos inteiros de um romance. Foi assim que as páginas de dois preciosos livros da Bibliothèque de la Pléiade viraram bolinhas úmidas e rolaram na lajota da sala. Mas as capas ficaram intactas, inclusive a sobrecapa de plástico. Quando se tratava de poesia, Leon adquiria uma expressão mais intimista, e seu olhar acompanhava cada página lida por mim.
Como esquecer aqueles olhos de fogo que brilhavam nas incontáveis noites de apagão? Eu subia os seis lances de escada, abria a porta e, na escuridão, duas gotas iluminadas me esperavam.
Tudo isso acabou.
Antes de ir embora para São Paulo, pedi à zeladora que cuidasse de ti. Pensei: daqui a dois meses volto para Manaus e trago de volta Leon e meus livros. Ainda hesitei, temendo algum acidente, alguma bala perdida no bairro pobre onde ele ia morar. A hesitação é um erro. Como nos romances de Conrad, cometi uma grave falha moral. Pensava que um dia eu ia te buscar no Amazonas. Pensava que um bicho, bichano vira-lata pudesse esperar. Tarde demais. O gato, um gato, não é indiferente. Soube que, na minha ausência, ele comia menos, miava como um desesperado. Um dia parou de comer. A zeladora, a meu pedido, levou-o ao veterinário. Comprei a passagem aérea, mas antes telefonei para saber como ele estava.
Morreu”, disse a zeladora.
Morreu? Esse veterinário… O que ele fez? O que disse?”
Saudade.”
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Um Café Lá em Casa com João Alexandre e Nelson Faria

Uma esperança

Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.
Houve um grito abafado de um de meus filhos:
- Uma esperança! e na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser.
- Ela quase não tem corpo, queixei-me.
- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.
Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.
- Ela é burrinha, comentou o menino.
- Sei disso, respondi um pouco trágica.
- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.
- Sei, é assim mesmo.
- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.
- Sei, continuei mais infeliz ainda.
Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não apagasse.
- Ela se esqueceu de que pode voar, mam ã e, e pensa que s ó pode andar devagar assim.
Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.
Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia “a” aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:
- É que não se mata aranha, me disseram que trás sorte...
- Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com ferocidade.
- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança.
O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.
Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.
Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: “e essa agora? que devo fazer?” Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.
Clarice Lispector, in Felicidade clandestina

Acidente no km 19

algo em mim se esvai
coisa que se escoa
seria a água da vida
seria outra coisa boa
tão boa que não tem vida
em que esta vida não doa?
hora em que a voz do amor
como a voz do amor não ecoa?
Paulo Leminski

Calvin e Haroldo


Bruma (a estrela vermelha)

E toda a ilha fugiu, e os montes não foram encontrados. (Apocalipse, XVI, 20)

Não era apreensão. Simples rancor. Bastava vê-los sair, encaminharem-se ao campo, para que o ódio me transtornasse:
Você o põe louco, Bruma!
Ela nunca respondia. Passava os braços pela cintura do meu irmão e afastavam-se rápidos.
Na hora do almoço, Og chegava correndo, ansioso por contar-me detalhes de novos astros que vira durante o passeio. A qualquer demonstração de dúvida de minha parte, ele apelava para o testemunho de Bruma:
Não era uma linda estrela? Tão vermelha que parecia o sol!
Pois era mesmo o sol, seu imbecil! — retrucava eu, irritado com a morbidez da sua imaginação.
Ela discordava. Com o mais meigo dos gestos e exibindo uma compreensão que atingia diretamente os meus nervos, pedia-me que acreditasse nele.
Tínhamos que discutir asperamente todas as manhãs, após os enervantes giros dos dois pela várzea da fazenda. Og, jurando ter divisado astros azuis, verdes, amarelos, rubros, enquanto eu, cada vez mais convencido de que era Bruma que lhe enfiava aquelas tolices na cabeça, exaltava-me:
Não existem.
Ele insistia:
Você ainda os verá, Godô.
Godô, não, sua anta! Godofredo!
Jamais se magoava com a minha agressividade, se bem que demonstrasse alguma pena por não lhe ser possível convencer-me. Os olhos vagos, distantes, como se dirigisse as palavras aos campos ou aos animais pastando ao longe, prosseguia:
Como são lindos pela manhã! A violência das cores, no primeiro momento, assusta-nos. Depois, as tonalidades se amaciam, as nossas pupilas absorvem os raios...
Raios! Só o médico acabará com essa loucura!
Geralmente acompanhava a frase com um murro no rosto dele.
Bruma chamava-me covarde e o conduzia para o interior da casa.

Nem sempre me arrependia das minhas bruscas reações. Mas, constantemente, após os atritos, procurava mamãe e tentava convencê-la da necessidade de levar meu irmão a um psiquiatra.
Ela ladeava o assunto, vencida pelo estranho carinho que dedicava ao filho mais moço.
Godofredo, você está amando Dora. (Bruma era o apelido de nossa irmã de criação.) Por que você não se aproxima dela, em vez de martirizar Og, que só cuida dos astros?
Mais irritado eu ficava, ouvindo-a falar daquele modo, sem que acreditasse estar agindo sob a inspiração do despeito.
Não amava Bruma. O que me perturbava era o seu corpo. Ao certificar-me, mais tarde, de que há muito uma paixão me rondava, já me encontrava tolhido por sentimentos contraditórios, e nenhum impulso generoso poderia levar-me a confessar um amor que se turvara ao contato do rancor. Em vez de atrair Bruma, conforme aconselhava minha mãe, agarrei-me à ideia de separá-los. E a oportunidade surgiu mais breve do que esperava. Foi na volta de um dos passeios matinais que os dois faziam. Eu estava lendo os jornais, na varanda, e quase não dei pela aproximação de Og, pois, contrariando suas normas de procedimento, entrara silencioso. Caminhava devagar, indo e vindo pela minha frente, até que, não mais se aguentando, entregou-se ao entusiasmo da última descoberta:
Este tem todas as cores, Godô. É o mais belo que já vi. Olha, olha! — E arrastava-me para fora, apontando o firmamento. Abstive-me de qualquer comentário e apressei-me em chamar por nossa mãe. Levei-a ao terreiro, mal ela me atendeu. Pedi que olhasse o céu, limpo como nunca estivera.
Não foi sem relutância que ela autorizou a ida de Og ao médico. Impossibilitada de negar o progresso da demência do filho, ainda reagia:
Só consulta, nada de hospício!

Bruma seguiu-nos. Caminhava em silêncio e só na entrada da cidade rompeu o seu mutismo:
Você sabe que ele não está louco.
No fundo, talvez desejasse me dizer que eu não agia em razão de um impulso fraternal. Mas, por lhe faltar a coragem ou por saber-me ciente do verdadeiro sentido de suas palavras, tergiversava.
Evitei uma resposta direta, que poderia desnudar meus sentimentos, torcendo o rumo da conversa:
E você, Bruma, consegue ver esse astro?
Ainda não — respondeu, erguendo a cabeça em direção às grossas nuvens que cobriam o céu.
Alguns quarteirões antes de chegarmos ao edifício, onde iríamos procurar o médico, Og nos deteve:
Repare, Godô! É impossível que você não o veja. Quantas cores!
Pupilas dilatadas, o rosto transfigurado, Og parecia mesmo contemplar um espetáculo único, que a ninguém mais seria dado ver. Estive para propor o nosso regresso a casa. Controlei-me. Não a avassalante ternura que me tomara. Abracei-o, procurando esconder as lágrimas que desciam:
Sim, é lindo. Não o perca de vista, que esta será a última vez que você o contemplará.

Barba ruiva, cortada rente, o olhar inamistoso, dr. Sacavém tinha uma fisionomia grave.
Contei-lhe as manias de Og, suas visões, o motivo da consulta. Não o impressionei nem tampouco despertei o interesse dele para as minhas informações. Limitou-se a pedir a meu irmão que falasse dos seus astros prediletos. Og acedeu prontamente ao pedido, satisfeito com o tratamento que lhe dispensavam. Repetiu, com o ardor de costume, as histórias que nos contava diariamente.
Aborrecido com aquele gasto inútil de tempo, aparteei:
Não acredito em estrelas durante o dia!
Até então calada, Bruma riu:
Acredita em porcos, não é?
Embora um pouco descontente, ao ver-se interrompido por nós, meu irmão continuou, a voz ligeiramente alteada pelo entusiasmo, a enumerar constelações, contando-lhes os hábitos, cores e formas. Quando chegou a vez do astro policrômico, o psiquiatra demonstrou sádica curiosidade pela narração, numa atitude que julguei indecorosa para um profissional. Parecia mais um astrônomo inexperiente do que um clínico.
Para desfazer certas dúvidas, experimentei a reação do dr. Sacavém:
Francamente, não entendo o seu método.
A minha intervenção lhe desagradou e respondeu-me rispidamente:
Entenderá mais tarde quando tratarmos do seu caso.
Do meu caso?! Então o senhor não percebe que somente um louco pode ver astros coloridos?!
Não, nada vejo de anormal nisso.
Já mais calmo, limpou os óculos com a gravata e indagou de Bruma se eu reagia sempre daquela maneira — irritado e agressivo.
Por ser afirmativa a resposta, o psiquiatra caminhou para mim, prendendo-me os braços. Examinou-me atentamente e balançou, desalentado, a cabeça.
Libertei-me das suas mãos com um gesto brusco e, correndo, abandonei o consultório.
Minha mãe esperava-me no alpendre da fazenda.
Ficaram lá e não quero vê-los mais — gritei, subindo a escada.
Abrigando somente duas pessoas, a nossa casa parecia ter ficado maior. Também a quietude crescia lá dentro, onde apenas o olhar de mamãe formulava perguntas. Perguntas que ficavam sem respostas e me obrigavam a escapar para o campo, a vagar pelas estradas. Não ia longe. A lembrança de Bruma feria-me. Tinha a impressão de que, a qualquer momento, surgiria na minha frente. Porque ela havia passado por todos aqueles caminhos e as sebes me falavam dos contornos do seu corpo.
A resolução veio lenta, conformada em saudade e remorso. E até chegar à cidade não sabia o que desejava fazer. De súbito, tudo se aclarou. Resoluto, tomei a direção do consultório do dr. Sacavém.
Sentia-me, no entanto, bastante confuso, pois não encontrava o edifício procurado. No lugar em que ele deveria erguer-se havia um lote vago. Parei um instante, a fim de orientar-me. Em vão. Não atinava com outro percurso. A rua era mesmo aquela. Restava informar-me, mas as pessoas a quem recorri não sabiam da existência de prédios com dez andares mencionados por mim. O maior da cidade possuía dois pavimentos. Nem ao menos, entre os cinco médicos do lugar, conheciam um com o nome de Sacavém. Percorri novamente o lugarejo, fiz outras perguntas. Inútil e angustiante busca.
Voltei ao lote. Sentei-me na grama e me abandonei ao desespero, sabendo que jamais reencontraria Bruma. Sobre os braços, chorei longamente. Ao me levantar, prestes a findar a tarde, estendia-se na minha frente uma estrela vermelha. Pouco a pouco, ela se desdobrou em cores. Todas as cores.
Murilo Rubião, in Obra completa