quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Não saia?!

Todas as desgraças acontecem a um homem porque ele não sabe ficar sozinho em seu quarto”.
Antonio Muñoz Molina, in Sefarad

Street Art, de David Walker, em Lorraine, França

Trompe-l'oeil à Nancy

Escutar bonito

O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam: Se eu fosse você. A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta que ele termina. Não aprendi isso nos livros. Aprendi prestando atenção”.
Rubem Alves 

Paixão

É aí que eu me pergunto: a paixão é de fato tão profunda, tão má, tão grandiosa, tão desumana?”
Sándor Márai, in As brasas

Estrela - Gilberto Gil



Há de surgir
Uma estrela no céu
Cada vez que você sorrir
Há de apagar
Uma estrela no céu
Cada vez que você chorar.

O contrário também
Bem que pode acontecer
De uma estrela brilhar
Quando a lágrima cair
Ou então
De uma estrela cadente se jogar
Só pra ver
A flor do seu sorriso se abrir.

Hum!
Deus fará
Absurdos
Contanto que a vida
Seja assim
Sim
Um altar
Onde a gente celebre
Tudo o que Ele consentir.

Sair correndo

Porque o peso não te deixa ir embora, ao contrário de você, que construiu uma vida pensando em sair correndo na primeira oportunidade, porque é assim que você vive, como se fosse sair correndo. Por isso você não tem nada, por pura covardia, porque você vive na ilusão de que é possível fugir, e eu olho para você e penso, o que aconteceu, quando foi o momento em que você se transformou nisso, quando foi esse instante, quando você se transformou nisso que você é, diz o homem velho, e eu penso, aos quarenta e seis anos, tudo o que eu tenho é isso que eu sou, e o desejo de sair correndo, essa covardia.”
Carola Saavedra, in Inventário das coisas ausentes

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Timidez

Nunca consegui controlar a timidez. Quando tive que enfrentar em carne viva a incumbência que nos deixou o pai errante, aprendi que a timidez é um fantasma invencível. De cada vez que tinha que solicitar um crédito, mesmo dos combinados de antemão em lojas de amigos, demorava horas em redor da casa, reprimindo a vontade de chorar e as contrações da barriga, até que me atrevia por fim, com as mandíbulas tão apertadas que não me saía a voz. Havia sempre algum comerciante sem coração para me atrapalhar ainda mais: Miúdo parvo, não se pode falar com a boca fechada. Mais de uma vez regressei a casa com as mãos vazias e uma desculpa inventada por mim. Mas nunca mais tornei a ser tão desgraçado como da primeira vez que quis falar pelo telefone na loja da esquina. O dono ajudou-me com a operadora, pois ainda não existia o serviço automático. Senti o sopro da morte quando me deu o auscultador. Esperava uma voz serviçal e o que ouvi foi o latido de alguém que falava no escuro ao mesmo tempo que eu. Pensei que o meu interlocutor também não me ouvia e levantei a voz tanto quanto pude. O outro, enfurecido, também elevou a sua voz:
- E tu, porque carago me gritas!
Desliguei, aterrado. Devo admitir que, apesar da minha febre de comunicação, tenho ainda que reprimir o pavor do telefone e do avião e não sei se me vem desses dias. Como podia conseguir fazer qualquer coisa? Por sorte, a minha mãe repetia com frequência a resposta: É preciso sofrer para servir.”
Gabriel García Marquez, in Viver para Contá-la

Bom de ir: Praia dos Carneiros, Pernambuco

Paisagem perdida

A casa da fazenda do velho Manuel Querino era separada do chiqueiro das cabras por uma porteirinha que dava para o cercado da roça. Vicência Querino abaixou-se para passar entre os dois paus da porteira e ficou, curvada, com um pé descansando no pau e outro mal apoiado no chão, escutando um aboio longínquo que se perdia no meio do mato.
De quem seria aquele aboio sonoro, saudoso, tão diferente de todos os aboios já decorados pelos seus ouvidos espertos? De Manuelzinho, seu irmão? De Tiúba, o vaqueiro das Lavras? De Quincas, de Leonilo, de João de Souza? Não, aquele aboio não saía de nenhuma boca sua conhecida. Era com certeza de alguém estranho, conduzindo alguma rês rebelde pelas terras do pai dela. Algum vaqueiro das bandas de lá do Grotão ou do Toquinho, do lado de lá daquelas serras azuis por onde ela nunca andara. Aquelas serras azuladas, distantes, no meio das quais se distinguia uma pequenina mancha branca que diziam ser a igreja de Buíque. E como seriam aqueles lugares? Que haveria por lá de estranho para os seus olhos tão ignorantes e ao mesmo tempo tão ansiosos de novas paisagens?
O aboio foi despertando o pensamento de Vicência e ela aos poucos se perdia com ele, como de hábito, em indagações curiosas—como seria isto, como seria aquilo. Esquecida, a perna curvada adormecia sobre o pau da porteira. O formigueiro dominava o pé, já inerte, e subia perna acima, como se lhe dessem um número sem conta de espetadelas de alfinete. Vicência fez uma careta, puxou a perna devagarinho e saiu manquejando, fazendo uma cara de riso enjoado, praguejando sem raiva:
Diabo leve essa dormência! Estou que nem velha de juntas travadas!
Adiante Vicência estacou, dando palmadinhas na perna. E enquanto soltava pragas tolas contra a dormência, o aboio se aproximava, varando a caatinga. Às vezes, quando o vento mudava de direção, o aboio chegava aos seus ouvidos como um apito de cigarra, triste como os cantos de fim de tarde. Era antes um gemido do que um canto. Variações de notas sem palavras, sem significação, mas tão expressivas no seu sentido de tristeza e de saudade. E o aboio tristonho vinha vindo pelo meio do mato, ora mais perto, ora mais longe, enchendo de curiosidade os ouvidos espertos de Vicência Querino. Ela ajeitava a mão no ouvido para ouvir melhor; entortava o pescoço, espichava-o; voltava-se para uma direção, para outra e fazia-se perguntas mentais: “De quem será, meu Deus? De quem será essa voz tão bonita?” Apertava os olhos, prendia a respiração, esquecia os outros sentidos para aguçar o do ouvido.
Seria para pressentir, para adivinhar alguma coisa, todo esse interesse? Não. Vicência Querino não ouvia daquele aboio nenhuma nota pela qual a lembrança de outra se despertasse. Aquela curiosidade nascera de repente, sem causas anteriores, simplesmente pelo gosto do desconhecido, do ignorado. Talvez a mesma curiosidade que lhe despertavam as serras azuladas lá distante. Apenas, como via as serras desde que se entendera de gente, e por elas tinha uma estranha curiosidade, ela mesma fantasiava o que de grandioso pudesse haver do lado de lá: fazendas sempre verdes, gado sempre gordo, cavalos bonitos, corredores, e a vida fácil entre vaquejadas alegres e cocos bem cantados.
Uma figura de vaqueiro, apagada, indistinta, entrava a mais nessa fantasia, superando as qualidades de outros vaqueiros, de outros homens seus conhecidos; essa figura era o melhor cavaleiro, o mais corajoso, o mais bonito de todos. Vicência Querino porém não personificava em ninguém conhecido o herói dos seus devaneios de sertaneja de vinte e cinco anos. Era uma figura, um ser existente apenas no seu pensamento sonhador. Por isso o dono daquela voz não lhe despertava a lembrança, mesmo involuntária, de nenhum homem conhecido. Era somente uma voz desconhecida, como lhe eram desconhecidos o herói dos seus sonhos e a vida do lado de lá das serras. No entanto, a curiosidade de Vicência era cada vez maior, à proporção que o canto se aproximava.
Não tardou que várias reses aparecessem correndo no fim do pátio, defronte de casa, tangidas pelo caminho do Vaquejador. Vicência destacou entre elas um boiato de oito arrobas, raposo, de cabeça levantada, espantadiço, incerto na carreira por estranhar talvez as paragens em que pisava. Certamente era aquela rês que o dono da voz buscava no meio do gado. Os chocalhos das vacas despertaram a atenção do velho Manuel Querino. O velho veio então ao alpendre, acompanhado da Anália, a filha mais nova. Olharam o gado. Comentaram.
Dois homens a pé, de varas na mão, arrebanhavam as reses. Atrás, meio envolvida na poeira, distinguia-se a figura dum cavaleiro. Visto de longe, esfumado no pó, lembrava o vulto de um toco queimado. As reses estacaram, cercadas. O cavaleiro chegou as esporas no cavalo, contornou de longe o rebanho e dirigiu-se a galope para a casa do velho Manuel Querino.
Vicência, encostada num esteio do alpendre, observava a figura do desconhecido, falando com o velho. Seus ouvidos guardaram estas palavras: “Como vai você, João Toté?” “Que rês é essa?” “De que morreu a finada?” Guardara somente algumas perguntas do pai, feitas aos berros, porque ele era surdo, mas as respostas do desconhecido lhe escaparam. Ouvira uma ou outra articulação, sem sentido, lembrando o mesmo timbre do aboio.
Quando o vaqueiro se dirigia ao rebanho, o velho Querino gritou para a filha:
Abre ali a porteira do curral, Vicência, que Toté vai prender o gado pra botar um cambão no boiato!
Vicência correu, satisfeita por prestar aquele serviço. Abriu a porteira e trepou-se na cerca, um pouco afastada para não espantar o gado.
João Toté vinha atrás do rebanho, dirigindo o cavalo para um lado, para outro, cercando-o. Usava paletó preto, camisa preta e perneiras de couro. Batendo com o chapéu de couro nas perneiras, a cabeleira preta, basta, certinha atrás como a de uma imagem de santo, sacudia-se toda na cadência das pancadas. Vicência achava-a bonita.
As primeiras reses transpuseram a porteira e João Toté levou a mão à boca, ajudando o aboio. Assim de perto o aboiar do vaqueiro ainda era mais bonito. As notas não se perdiam, não se destorciam pelo vento. Eram firmes, sonoras, tristonhas.
Vicência Querino não tirava os olhos de cima dele. Além da cabeleira achava bonitos os olhos pretos, grandes; o pescoço bem feito, folgado na camisa aberta; o jeito mole do corpo em cima do cavalo fogoso, o bigodinho descaído nos cantos da boca.
Com o gado preso, o velho Querino aproximou-se, gritando:
Reimosinho, o malvado do boiato! E a pinta é boa, Toté! É pra carro?
João Toté explicou que o boiato era manhoso, tendente a embrabecer, arredio de curral e de gado manso. Era para vender em S. Caetano, porque dali sempre para pior. Para touro não servia. Procedia de vaca cachecha e pingadeira de leite. E nove arrobinhas por cento e oitenta, em tempos daqueles, eram na verdade um bom negócio.
E se não fosse o seu curral, “seu” Querino,—disse João Toté, terminando a história do boi,—o garrote valentão me deixava no mato. Fizemos até um estragozinho num descampado que tem aqui embaixo, perto já do seu cercado. O bichinho corre! Mas corre mais este castanho que o senhor está vendo!—e alisou as crinas do cavalo, agradando-o.
Deram um dedo de prosa sobre outros assuntos. Por fim João Toté pediu:
Agora, enquanto Severiano laça o bicho, queria que vosmecê me emprestasse uma foice. É pra cortar um cambãozinho pro malcriado.
Pegue se aqui com essa menina—respondeu o velho apontando Vicência,— que é o homem da casa!
E explicou porque ela era o homem, fazendo cara de riso:
Esta, a mais nova, é achacada que nem a mãe. Os meus dois homens, Quinca e Manuelzinho, são plantação de fim de safra: não dão pra nada! Se essa não amofinar—insistia, apontando Vicência—é quem vai continuar a raça. Porque o resto, Toté, só tem vista como melancia de beira de riacho: dentro é aguada que só miolo de facheiro!
O velho ria-se da própria mangação e João Toté protestou por delicadeza:
É assim o que, “seu” Querino! O galho pode ser torto, mas brota de tronco linheiro. E quem dá valor à madeira é o nome.
O velho voltou-se, ainda rindo, e insistiu:
Não é tanto assim não, Toté! No telhado lá da meia-água tem até sucupira dando cupim!
É porque tem madeira ruim junto dela!
Pode ser!—disse o velho.—Mas eu já não posso cortar madeira nova, estou de dias contados e os dois homens cá de casa só cuidam de caça.
Vicência apresentou-se a João Toté, estirando-lhe a mão, meio acanhada. E indagou, espantando-o com a experiência que tinha das coisas práticas, dos serviços de homem, como insinuara o velho:
Se o boiato é brabo mesmo, o melhor é um cambão novo. A gente tem aí alguns deles, mas secos, umas penas. O senhor não acha melhor cortar um novo, mais pesado porque a madeira é verde?
João Toté aceitou esse conselho, dando razão à moça, mas teria aceito qualquer outro por acanhamento. Vicência correu à casa, apanhou a foice e amolou-a às pressas na pedra. Depois convidou o vaqueiro:
O senhor pode me acompanhar. Aqui bem detrás da casa tem uma imburana boa.
Leia o final surpreendente desse belo conto do pernambucano Luís Jardim aqui.

A Arte impressionista de Renoir

Duas irmãs (1881), de Renoir

Anjo e demônio

O homem é o pior educador de todos os animais. A educação nunca serviu à vida emocional do adulto. Sempre se comete, em maior ou menor escala, um de dois erros: sufoca-se o anjo da criança, liberando o demônio, ou sufoca-se o demônio, liberando um anjo inerme.
Quem passou pela ponte não atravessou o rio. Para certas naturezas violentas é insuportável a ideia de passar pela ponte.”
Paulo Mendes Campos, in De um caderno cinzento

Cansamos

Chega um tempo em que nos cansamos de resistir. O sofrimento tem uma fronteira a partir da qual nos esquecemos de que somos gente.”
Inês Pedrosa, in Desamparo

Literatura de cordel: a memória do sertão em folhetos

Ai! Se sêsse!…
(Zé da Luz)

Se um dia nós se gostasse;
Se um dia nós se queresse;
Se nós dois se impariásse,
Se juntinho nós dois vivesse!
Se juntinho nós dois morasse
Se juntinho nós dois drumisse;
Se juntinho nós dois morresse!
Se pro céu nós assubisse?

Versos despreocupados, linguajar informal e livretos coloridos. Esses são os ingredientes principais para compor uma boa literatura de cordel.
Inspirada na literatura de cordel portuguesa, onde os autores declamavam seus textos para o público acompanhados do som de uma viola, e também na literatura francesa de colportage do século XVII, que tinha o objetivo de difundir a linguagem popular, a nossa literatura de cordel veio com os próprios colonos portugueses e nasceu no Nordeste do Brasil. Seus versos falam sobre a trajetória do povo do sertão.
Os textos são poéticos, rimados e publicados em pequenos livros de papel feitos manualmente pelos próprios autores. Eles são feitos com apenas uma folha dobrada estrategicamente para formar oito páginas, mas alguns podem chegar até 32. A venda também é feita pelos autores, geralmente em feiras nordestinas ou nas ruas, onde são expostos em um fio de barbante.

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Os temas são variados e representam, principalmente, a opinião do autor a respeito de algo na sociedade e no seu cotidiano. A linguagem não é impessoal e muito menos imparcial, são utilizadas várias técnicas de persuasão para convencer o leitor a acreditar nos acontecimentos narrados nos cordéis.
Os assuntos transitam entre aventuras, mitos, lendas, romances, boatos e histórias cômicas. É muito comum encontrar também cordéis que reproduzem desafios de ícones nordestinos como Lampião, Padre Cícero e Frei Damião. Os temas mais sérios como os religiosos, políticos e sociais também estão muito presentes. Grande parte dos autores aproveita para criticar a realidade e as condições em que vivem, sempre abusando da ironia e do sarcasmo.

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Podemos dizer que o cordel também tem caráter jornalístico, já que os desastres, as inundações, as secas, os cangaceiros, as reviravoltas políticas são retratadas em centenas de títulos por ano. Um bom exemplo disso é o cordel intitulado “A lamentável morte de Getúlio Vargas”, que foi feito imediatamente após o cordelista Delarme Monteiro da Silva escutar a notícia do suicido do ex-presidente no rádio. O sucesso foi tanto que ele vendeu 700 mil exemplares em apenas dois dias. Outros assuntos da mídia que tiveram grande repercussão foram “O trágico romance de Doca e Ângela Diniz” e “Carta do Satanás a Roberto Carlos”, este último inspirado na música “Quero que vá tudo pro inferno”, do rei da Jovem Guarda.

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Veja a matéria completa da Obvious aqui.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Alcóolicas

I

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.

II

Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.

III

Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida.

IV

E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.

V

Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.
Hilda Hilst

Maglore - Demodê

Imortalidade, talvez...

É certo, se isso lhe serve de consolação, que se antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-los, para congratular-nos, ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade que tanto se fala...”
José Saramago

Anésia

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Sobre o humanismo

Há quem diga que o único humanista autêntico é o canibal. Seu amor pela humanidade é o mesmo amor que temos por um bom bife, e é sincero. Já o humanismo na sua forma não antropofágica é mais difícil de classificar. O que é, afinal, um humanista? A própria palavra “humanismo” tem interpretações e conotações diferentes. No dicionário ela é descrita como uma doutrina segundo a qual o ser humano é o criador dos seus próprios valores morais. O que não ajuda muito. Melhor, ou mais simples, seria dizer que para um humanista o ser humano é, ou deve ser, a medida de todas as coisas, e assim como o sistema métrico que mede o mundo teve origem nas dimensões do corpo humano, todos os sistemas éticos e morais do mundo devem obedecer à primazia do humano. Ou seja: ser humanista é não reconhecer nenhum determinante metafísico, nenhuma interferência divina, no ser humano e nas suas circunstâncias.
Mas essas interpretações não cobrem todos os significados de “humanismo”. A própria história do humanismo é discutível. Sua origem seria na Renascença, quando as trevas da Idade Média retrocederam diante da redescoberta do mundo clássico e não só as pinturas e esculturas de Michelangelo, Leonardo e os outros glorificaram o corpo humano redescoberto como a glória da Grécia antiga, berço da democracia e da filosofia, também voltou à luz do dia depois da noite medieval. Mas a arte da Renascença foi toda feita em louvor e com o subsídio da Igreja, seus temas predominantes eram os santos, os mártires e os mitos da Igreja e dificilmente se encontraria um humanista, mesmo camuflado, entre os seus praticantes. E antes de se exaltar a Grécia antiga como um ideal de virtudes cívicas e civilização é bom não esquecer que aquela era uma sociedade escravocrata, também um mau exemplo de humanismo.
O humanismo autêntico seria então um subproduto do Iluminismo do século 18, e sua origem estaria no pensamento iconoclasta de alguns magníficos hereges como Voltaire, Diderot, Descartes, aquela turma. Mas até hoje se debate a ligação direta entre o Iluminismo e o terror que se seguiu à revolução francesa, e se a idade da razão não gerou um monstro em vez de uma sociedade iluminada. O mesmo se pode dizer de Marx e dos outros filósofos dedicados a mudar o mundo e a História em vez de apenas entendê-los, e cuja generosa proposta de igualdade e fraternidade universal desaguou no totalitarismo e no terror stalinista.
O escritor e satirista Karl Kraus, talvez o mais vienense de todos os vienenses, escreveu certa vez que na Áustria, nos estertores do império austro-húngaro, estava acontecendo um ensaio do fim do mundo. Na verdade, o que tomava forma em Viena no começo do século 20 era um novo mundo. O colapso do império dos Habsburgo coincidiu com duas novidades de certa forma opostas no espírito europeu e na História: o fascismo e a psicanálise. Dizem que a História do mundo teria sido outra se Hitler tivesse se tratado com seu contemporâneo e conterrâneo Freud, mas, infelizmente, o encontro nunca se deu. Freud era um humanista, mas assim como suas teorias sobre patologia e neuroses coletivas nada fizeram para deter o pesadelo nazista que se iniciava, suas descobertas sobre o inconsciente humano em nada ajudaram o humanismo. Pois o que ele dizia era que o ser humano não devia sua existência e seu destino à interferência divina, mas era regido por forças imateriais, quase que por uma metafísica interna, que desconhecia tanto quanto desconhecia os desígnios de Deus. O ser humano não era a medida de todas as coisas. O ser humano, seus recônditos obscuros e os mistérios do seu ego eram a medida de todas as coisas.
O que significa ser um humanista, hoje? Ao contrário dos canibais, que sabem do que gostam, não temos muita certeza que a humanidade nos apeteça, depois de tudo o que ela aprontou. Continuamos preferindo a lógica e a razão a qualquer tipo de superstição ou pensamento mágico, mas com a consciência de que cada vez mais humanos preferem o contrário. A divisão entre ricos e pobres aumenta, uma superprodução de alimentos convive com a fome endêmica no mesmo planeta há anos, a intransigência e o fanatismo religioso conflagram regiões inteiras – tudo prova que o humanismo está longe das sedes do poder e dos princípios da maioria. E muito longe de ser uma doutrina viável, ou mesmo um sonho para um outro tempo.
A solução talvez seja o humanismo se reconciliar com a metafísica e pedir ajuda à providência divina, para não desaparecer.
Luís Fernando Veríssimo

Infância

(...) a infância é um bom tempo não em si, poderia acrescentar, mas só quando vista de longe. Em si, é uma sucessão fragmentária de sentimentos fortíssimos sem ligação uns com os outros, e alguns deles apavorantes até o fim dos dias, cromos que se colam na memória para todo o sempre, com seu poder escravizante.”

Cristovão Tezza, in Um erro emocional

Amar sem reservas

Estava sempre disposto a amar todas essas manifestações de vida. O que nunca conseguia era amá-las sem reservas, como exigia a sensação de bem-estar social; há muito pairava sobre tudo o que ele fazia e vivia um sopro de repulsa, uma sombra de impotência e solidão, uma náusea universal, para a qual não conseguia encontrar nenhuma inclinação compensadora. Por vezes, sentia-se como se tivesse nascido com um talento para o qual não havia objetivo no presente.”
Robert Musil, in O homem sem qualidades

domingo, 27 de setembro de 2015

João de Barro - Renato Vianna



O meu desafio é andar sozinho
Esperar no tempo os nossos destinos
Não olhar pra trás, esperar a paz
O que me traz
A ausência do seu olhar

Traz nas asas um novo dia
Me ensina a caminhar
Mesmo eu sendo menino, aprendi

Oh, meu Deus, me traz de volta essa menina
Porque tudo que eu tenho é o seu amor
João de Barro, eu te entendo agora
Por favor, me ensine como guardar meu amor
...........................................................................

Outrora

Com o tempo, tudo se conserva, mas desbota, como essas fotografias de um passado distante que eram fixadas em placa de metal. A luz e o tempo esfumam os traços mais nítidos, que aos poucos desaparecem da placa. É preciso trocar a imagem de posição para que a luz de um determinado ângulo caia sobre aquela superfície turva, e assim é possível reconhecer a pessoa cujos traços outrora eram refletidos num espelho. Da mesma forma desbotam no correr dos anos todas as recordações humanas. Depois, um belo dia, cai um raio de luz de algum lugar e então redescobrimos um rosto de repente.”
Sándor Márai, in As brasas

A Arte de Van Gogh

Casas em Auvers (1890), de Vincent Van Gogh

Sou capaz

O homem converte-se aos poucos naquilo que acredita poder vir a ser. Se me repetir incessantemente a mim mesmo que sou incapaz de fazer determinada coisa, é possível que isso acabe finalmente por se tornar verdade. Pelo contrário, se acreditar que a posso fazer, acabarei garantidamente por adquirir a capacidade para a fazer, ainda que não a tenha num primeiro momento.”
Mohandas Gandhi

Um aprendizado: ler e escrever muito

Faulkner aprendeu seu ofício enquanto trabalhava na agência de correio de Oxford, Mississippi. Outros escritores aprenderam o básico enquanto serviam na Marinha, trabalhavam em siderúrgicas ou passavam uma temporada nos melhores hotéis com janelas de grades dos Estados Unidos. Eu aprendi a parte mais valiosa (e comercial) de meu trabalho enquanto lavava lençóis de motel e toalhas de mesa na lavanderia New Franklin, em Bangor. Aprendemos mais lendo muito e escrevendo muito, e as lições mais valiosas são aquelas que ensinamos a nós mesmos.”
Stephen King, in Sobre a escrita

Bom de ir: Vale do Pati, Chapada Diamantina - Bahia

O poder maior

Não há poder maior no mundo que o do tempo: tudo sujeita, tudo muda, tudo acaba.”
Padre Antônio Vieira

sábado, 26 de setembro de 2015

Não

Dizer não

Mesmo quando o vidro moído da palavra magoar sua garganta.
Colocar a mão na fogueira e acariciar
as brasas, ainda que sua pele
descole feito a de um tomate.
Apagar
as luzes e abraçar os mortos-vivos.
Morder, mesmo sem as presas de um cão.
Uivar. Dizer não até
a náusea: esse amor indulto,
esse desvelo sem glória
em que só os condenados
insistem.
Adriana Lisboa

Versinhos?!

Um líder importante é apresentado a Mario Quintana:
- Gosto muito de seus versinhos.
- Obrigado pela sua opiniãozinha.
O poeta me diz mais tarde que, não encontrasse essa resposta, não teria dormido naquela noite.
Paulo Mendes Campos, in De um caderno cinzento

Brasil pandeiro



É deliciosamente arrepiante. Brasileiramente puro. É lindo e emocionante. Vejam.
Posted by Kaika Luiz on Quarta, 9 de setembro de 2015

Renato Russo: exagerando


Essa sempre foi a maneira com a qual lidava com isso, ou então trabalhando compulsivamente, ou era compulsivo em tudo - exagerando a alegria, que virava euforia, exagerando a dor, que virava sofrimento, exagerando a solidão, que virava isolamento, exagerando o medo, que virava pânico, ou exagerando a desconfiança que virava paranoia.”
Renato Russo, in Só por hoje e para sempre

Mafalda

Amor precisa de amor

Ah, as teorias que eu elaborava sobre as vantagens terapêuticas do afastamento para o fortalecimento de uma relação, a importância da solidão para a construção do amor-próprio e sei lá que mais. Lérias. Parecia o primeiro-ministro a explicar que a miséria nos engrandecerá e que os sacrifícios nos tornarão melhores. Os sacrifícios tornam-nos apenas sacrificados. Diminuem-nos. Tornam-nos piores. O amor precisa apenas do amor.”
Inês Pedrosa, in Desamparo

Não mudam

Partir, chegar – as estações são sempre as mesmas. As mesmas faces, porque os homens não mudam. Chuva ou tempo claro, que importa – a cidade é sempre o lugar que fica.
Desatinados campos - como me reencontro, nessas paisagens que não se juntam e que, apesar de tudo, brilham um minuto contra o vidro da janela…
Lúcio Cardoso, in Diários

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O traço criativo do cearense Júlio César, o MZ09

MZ09 é o pseudônimo do artista plástico e ilustrador Júlio César, natural de Fortaleza, Ceará. A partir de fotos, ele fez uma série de ilustrações, que são verdadeiras obras de arte. Veja alguns exemplos.







Visite o sítio do artista aqui.

Transver o mundo

A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Manoel de Barros

Sangue novo e bom na MPB: Maglore - Mantra

Cota de lamentação

Eu era feliz e não sabia”.
Não gosto dessa frase porque contém uma cota de lamentação. E acho que a gente nunca deveria lamentar nada, em particular as próprias decisões. Acredito que, no fundo, a gente quase sempre toma a única decisão que poderia tomar naquelas circunstâncias. Então, não vale a pena lamentar o passado. Mas é verdade que existe isso.
Contardo Calligaris

Arte


A arte é uma rede de comunicações no tempo; há subestações de alta potência, Homero, Dante, Shakespeare, Bach, Goya... E há fiações, fusíveis, parafusos, isolantes: singelos e indispensáveis.”
Paulo Mendes Campos

O passado

Além de toda a decisão pública ou privada, além da justiça e da responsabilidade, há algo inabordável no passado. Só a patologia psicológica, intelectual ou moral é capaz de reprimi-lo; mas ele continua ali, longe e perto, espreitando o presente como a lembrança que irrompe no momento em que menos se espera ou como a nuvem insidiosa que ronda o fato no qual não se quer ou não de pode lembrar.”
Beatriz Sarlo, in Tempo passado - Cultura da memória e guinada subjetiva

Quase Nada 333

Quase Nada 333
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Coração de porco

Era muito cedo. Antes da hora do sol — momento regular, encantador, charmoso. A mulher bateu à porta certa de que fossem abrir.
O velho.
O velho aproximou-se lentamente, chinelos inaugurando o chão da manhã e, sorriso no rosto, espreitou. Usava uma face tranquila, embora nos lábios se descortinassem pregas de frio. Entre, minha filha, entre. Como se o velho tivesse o dom de perceber ao que vinham as pessoas.
Havia, na mulher, uma expressão de estranheza; mais que frio, incômodo. Precisava ela, certamente, de um chá quente, e que alguém comunicasse com ela numa língua inteligível. O velho não se permitia mais do que três tentativas antes de acertar. Foi ao russo, visitou o castelhano, arranhou o suaíli e resignou-se, já encabulado, ao inglês. Mas ela — passiva, desentendedora. O velho destapou o bule e sorriu. Mais do que satisfação, dentro dele burilava já a sensação de ter encontrado mais um membro do clã: salve!, disse-lhe, no seu impecável latim.
Tanta alegria — recordar é crescer! —, o velho nem estranhou as horas, nem perguntou o nome. Num tom franco, indagou: você leu Kazantzakis?, ela ainda espantando o frio, o odor de animais vários, o papagaio que acordava declamando sonetos e, lá mais atrás do mundo, dois porcos que, guinchando, conversavam. Li a obra toda, incluindo notas dispersas e cartas a amigos, respondeu.
Parados, deambulavam entre olhares mútuos — a divisão complacente de um momento, a alegria mansa de estar. O mundo era uma aurora estreando-se nos seus corações, uma alforreca sem destino definido e sem corrente para agradar. Se havia lugar estranho no mundo, era aquela pequena loja escondida nas arquiteturas mais góticas da Escandinávia.
— Então talvez se lembre da discreta tirada do autor grego — olhou-a com firmeza.
— Sobre?
— Sobre aquilo que a traz cá — o velho mexia na chávena com delicadeza.
— O coração — ela, sempre em latim.
— “Se o coração do homem não transborda de amor ou de cólera...” — ele esperou.
— “Nada se faz no mundo” — ela sorriu. Terminou o chá, levantou-se. — Nikos Kazantzakis, O Cristo recrucificado.
O velho acompanhou-a na poética digressão à janela. O sol quase queria chegar, afastar as nuvens com prepotência e, mais do que iluminar a Terra, penetrar nos corações humanos. Como se numa missão divina.
— Cara senhora... — começou o velho, mais sério. — Não vou deixá-la cometer o mesmo erro que os outros.
Ela voltou-se repentina, séria também:
— Os outros?
— Os outros todos que, antes de si, me apareceram na loja procurando novos corações. Esgotaram os estoques, fizeram os mais incríveis pedidos sem nunca, mas nunca, me quererem ter ouvido acerca das propriedades dos corações dos animais.
— Mas veio cá muita gente?
— Oh, sim, gente suficiente para que eu tivesse de mandar vir animais de África, das Américas... — pensativo. — Mas, diga-me: por que precisa você de um coração novo?
— Para dizer a verdade... — tocou-lhe no ombro — para lhe explicar isso, teríamos que divagar por conceitos filosóficos inacessíveis ao latim de ambos. Digamos que a solidão mudou-me a cor do coração.
— Entendo, entendo — o velho dirigiu-se ao balcão, retirou alguns papéis. — Venha comigo — e abriu uma pequena porta, como importantes são sempre as portas pequenas.
A mulher suava — no efeito do estranho chá que havia consumido. O velho era dado a estes comportamentos: adiantar-se em anestesias, suavizar cirurgias, pretender adivinhar os desejos dos clientes. A mulher suava — passando por estreitos corredores coloridos, por aves raras que não gritavam (era cedo), por galinhas-do-mato escuras ou rosadas, por porcos-espinhos adormecidos, cobras, ratos brancos e, no fim, os porcos. Animal muitíssimo asseado, explicou o velho. Já deitada na cama de dossel, antes de se iniciar o processo de hipnose, ela, suando, sorriu para o velho: o coração de um porco...?
E adormeceu.
Quando retornou das abstinências do hipnotismo encontrava-se já à mesa, tonta mas com uma sensação de aconchego no peito. Era, no fundo, o que trazia todas as pessoas àquele local: a magia de renovar o órgão primeiro, o bombeador de sensações, a casa mais íntima de um ser humano.
— Não fale. Poupe as forças — disse o velho.
Quando, no fim da refeição, voltou a fazer um chá, começou:
— Leve isto consigo — entregou-lhe um pequeno aglomerado de folhas, escrito à mão num cuidadoso latim. — Vai servir-lhe para ser feliz!
— E o que é? — a mulher, sensível, curiosa.
— Todos os meus apontamentos sobre a sensibilidade dos porcos. O que é dizer: você é a primeira pessoa a levar um coração com o respectivo manual de felicidade.
— Por que faz isso por mim?
O velho sorveu as últimas gotas de chá e respirou fundo, evitando as lágrimas. Pegou na mão da mulher — gesto simples, inocente, mas brutalmente humano (que só os velhos sabem manusear) — e murmurou a sua frase última:
— Acima de tudo, pela brandura no seu olhar — fez uma longa pausa. — Você é a minha última cliente. A partir de hoje a loja está fechada!
Ondjaki, in E se amanhã o medo

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Palavras: portas e janelas

As palavras são portas e janelas. Se debruçarmos e reparamos, nos inscrevemos na paisagem. Se destrancarmos as portas, o enredo do universo nos visita. Ler é somar-se ao mundo, é iluminar-se com claridade do já decifrado. Escrever é dividir-se. Cada palavra descortina um horizonte, cada frase anuncia outra estação. E os olhos, tomando das rédeas, abrem caminhos, entre linhas, para viagens do pensamento. O livro é passaporte, é bilhete de partida”.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Os cinco sentidos

Tão bom aqui

Me escondo no porão
para melhor aproveitar o dia
e seu plantel de cigarras.
Entrei aqui para rezar,
agradecer a Deus este conforto gigante.
Meu corpo velho descansa regalado,
tenho sono e posso dormir,
Tendo comido e bebido sem pagar.
O dia lá fora é quente,
a água na bilha é fresca,
acredito que sugestionamos elétrons.
Eu só quero saber do microcosmo,
O de tanta realidade que nem há.
Na partícula visível de poeira
Em onda invisível dança a luz.
Ao cheiro de café minhas narinas vibram,
Alguém vai me chamar.
Responderei amorosa,
Refeita de sono bom.
Fora que alguém me ama,
Eu nada sei de mim.
Adélia Prado