quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Trinta anos de espera

Esperei trinta anos pelo seu regresso, Susana. Esperei até eu ter tudo. Não somente alguma coisa, mas tudo que se pudesse conseguir de maneira que não nos sobrasse nenhum desejo, só o seu, o desejo por você. Quantas vezes convidei seu pai para tornar a morar aqui, dizendo que precisava dele? Fiz isso até com mentiras.
Ofereci nomeá-lo administrador, com tal de tomar a ver você. E o que foi que ele me respondeu? ‘Não tem resposta’ me dizia sempre o leva-e-traz recados. ‘O senhor dom Bartolomé rasga as suas cartas, assim que eu as entrego.’ Mas pelo leva-e-traz fiquei sabendo que você tinha casado e logo fiquei sabendo que você tinha ficado viúva e estava outra vez fazendo companhia ao seu pai.
Depois, o silêncio.
O leva-e-traz ia e vinha e sempre voltava me dizendo:
“— Não os encontro, dom Pedro. Disseram para mim que saíram de Mascote. E uns me dizem que para cá, e outros, que para lá.
E eu:
“— Não repare em gastos, vá atrás deles, procure. Nem que a terra tenha engolido os dois.
Até que um dia veio e me disse:
“— Vasculhei a serra inteira indagando qual o canto em que dom Bartolomé San Juan se esconde, até que dei com ele, lá, perdido num buraco nas montanhas, vivendo numa cova feita de troncos, no mesmo lugar onde estão as minas abandonadas da La Andromeda.
Já naquela época sopravam ventos raros. Dizia-se por aí que havia gente rebelada e com armas. Os rumores nos chegavam. Foi isso que trouxe o seu pai por aqui. Não por ele, segundo me disse em sua carta, e sim pela sua segurança, queria trazer você de volta à vida entre os vivos.
Senti que o céu se abria. Tive vontade de correr até você. De rodear você de alegria. De chorar. E chorei, Susana, quando soube que você enfim iria voltar.”
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

Operação de vista

De uma noite, vim.
Para uma noite, vamos,
uma rosa de Guimarães
nos ramos de Graciliano.
Finnegans Wake à direita,
un coup de dés à esquerda,
que coisa pode ser feita
que não seja pura perda?
Paulo Leminski

O admirador

Era fascinado por crepúsculos. Diante de um belo pôr de sol, expandia-se: “Ah!”. Dia seguinte, o espetáculo se renovava, e ele: “Oh! Ah!”. Em certas ocasiões, perdia mesmo a conta, explodindo: “Ah! Oh! Ah!” indefinidamente.
Naquela tarde, a combinação de matizes e nuvens foi tão soberba que as exclamações habituais se converteram em urros. Os urros, de tão estrondosos, provocaram deslocamento de ar. Empalideceram os tons, desmancharam-se as nuvens, e uma catarata desabou sobre a Terra, envolvendo o amador de crepúsculos, que desapareceu em redemoinho no girar do vento, vítima de sua capacidade de admiração.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

Suflê de Chuchu

Houve uma grande comoção em casa com o primeiro telefonema da Duda, a pagar, de Paris. O primeiro telefonema desde que ela embarcara, mochila nas costas (a Duda, que em casa não levantava nem a sua roupa do chão!), na Varig, contra a vontade do pai e da mãe. Você nunca saiu de casa sozinha, minha filha! Você não sabe uma palavra de francês! Vou e pronto.
E fora. E agora, depois de semanas de aflição, de “onde anda essa menina?”, de “você não devia ter deixado, Eurico!”, vinha o primeiro sinal de vida. Da Duda, de Paris.
- Minha filha...
- Não posso falar muito, mãe. Como é que se faz café?
- O quê?
- Café, café. Como é que se faz?
- Não sei, minha filha. Com água, com... Mas onde é que você está, Duda?
- Estou trabalhando de “au pair” num apartamento. Ih, não posso falar mais. Eles estão chegando. Depois eu ligo. Tchau!
O pai quis saber detalhes. Onde ela estava morando?
- Falou alguma coisa sobre “opér”.
- Deve ser “operá”. O francês dela não melhorou...
Dias depois, outra ligação. Apressada como a primeira. A Duda queria saber como se mudava fralda. Por um momento, a mãe teve um pensamento louco.
A Duda teve um filho de um francês! Não, que bobagem, não dava tempo.
Por que você quer saber, minha filha?
- Rápido, mãe. A criança tá borrada!
Ninguém em casa podia imaginar a Duda trocando fraldas. Ela, que tinha nojo quando o irmão menor espirrava.
- Pobre criança... - comentou o pai.
Finalmente, um telefonema sem pressa da Duda. Os patrões tinham saído, o cagão estava dormindo, ela podia contar o que estava lhe acontecendo. “Au pair” era empregada, faz-tudo. E ela fazia tudo na casa. A princípio tivera alguma dificuldade com os aparelhos. Nunca notara antes, por exemplo, que o aspirador de pó precisava ser ligado numa tomada. Mas agora estava uma opér “formidable”. E Duda enfatizara a pronúncia francesa. “Formidable.” Os patrões a adoravam. E ela prometera que na semana seguinte prepararia uma autêntica feijoada brasileira para eles e alguns amigos.
- Mas, Duda, você sabe fazer feijoada?
- Era sobre isso que eu queria falar com você, mãe. Pra começar, como é que se faz arroz?
A mãe mal pôde esperar o telefonema que a Duda lhe prometera, no dia seguinte ao da feijoada.
- Como foi, minha filha. Conta!
- Formidable! Um sucesso. Para o próximo jantar, vou preparar aquela sua moqueca.
- Pegue o peixe... - começou a mãe, animadíssima.
A moqueca também foi um sucesso. Duda contou que uma das amigas da sua patroa fora atrás dela, na cozinha, e cochichara uma proposta no seu ouvido: o dobro do que ela ganhava ali para ser opér na sua casa. Pelo menos fora isso que ela entendera. Mas Duda não pretendia deixar seus patrões. Eles eram uns amores. Iam ajudá-la a regularizar a sua situação na França.
Daquele jeito, disse Duda a sua mãe, ela tão cedo não voltava ao Brasil.
É preciso compreender, portanto, o que se passava no coração da mãe quando a Duda telefonou para saber como era a sua receita de suflê de chuchu. Quase não usavam o chuchu na França, e a Duda dissera a seus patrões que suflê de chuchu era um prato típico brasileiro e sua receita era passada de geração a geração na floresta onde o chuchu, inclusive, era considerado afrodisíaco. Coração de mãe é um pouco como as Caraíbas.
Ventos se cruzam, correntes se chocam, e uma área de tumultos naturais. A própria dona daquele coração não saberia descrever os vários impulsos que o percorreram no segundo que precedeu sua decisão de dar à filha a receita errada, a receita de um fracasso. De um lado o desejo de que a filha fizesse bonito e também - por que não admitir? - uma certa curiosidade com a repercussão do seu suflê de chuchu na terra, afinal, dos suflês, do outro o medo de que a filha nunca mais voltasse, que a Duda se consagrasse como a melhor opér da Europa e não voltasse nunca mais. Todo o destino num suflê.
A mãe deu a receita errada. Com o coração apertado. Proporções grotescamente deformadas. A receita de uma bomba.
Passaram-se dias, semanas, sem uma notícia da Duda. A mãe imaginando o pior. Casais intoxicados. Jantar em Paris acaba no hospital. Brasileira presa.
Prato selvagem enluta famílias, receita infernal atribuída à mãe de trabalhadora clandestina, Interpol mobilizada. Ou imaginando a chegada de Duda em casa, desiludida com sua aventura parisiense, sua carreira de opér encerrada sem glória, mas pronta para tentar outra vez o vestibular.
O que veio foi outro telefonema da Duda, um mês depois. Apressada de novo. No fundo, o som de bongos e maracas.
- Mãe, pergunta pro pai como é a letra de Cubanacã!
- Minha filha...
- Pergunta, é do tempo dele. Rápido que eu preciso pro meu número.
Também houve um certo conflito no coração do pai, quando ouviu a pergunta. Arrá, ela sempre fizera pouco do seu gosto musical e agora precisava dele. Mas o segundo impulso venceu:
- Diz pra essa menina voltar pra casa. JÁ!
Luís Fernando Veríssimo, in Comédias para se ler na escola

O nome roubado


A ditadura do general Pinochet muda os nomes de vinte favelas, casas de lata e papelão, nos arredores de Santiago do Chile. No rebatismo, Violeta Parra recebe o nome de algum militar heróico. Mas seus habitantes se negam a usar esse nome não escolhido: eles são Violeta Parra ou não são nada.
Faz tempo, numa unânime assembléia, tinham decidido se chamar como aquela camponesa cantora, de voz gastadinha, que em suas canções briguentas soube celebrar os mistérios do Chile.
Violeta era pecante e picante, amiga do violeiro e da viola e da conversa e do amor, e por dançar e gracejar deixava queimar suas empanadas. Gracias a la vida, que me ha dado tanto, cantou em sua última canção; e uma reviravolta de amor atirou-a na morte.
Eduardo Galeano, in Mulheres

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Lições de uma inglesa

Na minha juventude, dois viajantes britânicos eram escolhidos como tema de discussão pelo professor de história. Nessa escolha havia um pressuposto moral. O primeiro viajante era o naturalista, biólogo e geógrafo Alfred Russel Wallace, que fez pesquisas científicas na Amazônia, entre 1848 e 1852. Charles Darwin era amigo de Wallace, e ambos elaboraram ao mesmo tempo a teoria da evolução das espécies, mas Wallace nunca alcançou a fama de Darwin. Nosso professor do ginásio amazonense queria reparar uma injustiça da história da ciência e sempre falava de Wallace com admiração. Mas o outro viajante, dizia o mestre, foi um dos maiores ladrões do século XIX.
De fato, o fracassado botânico Henry Wickham foi um famoso impostor, que bem podia constar na História universal da infâmia, de Jorge Luis Borges. Em 1876, Wickham contrabandeou 70 mil sementes da Hevea brasiliensis para o Reino Unido; as sementes roubadas foram colocadas em estufas num jardim botânico de Londres e, meses depois, as mudas das seringueiras brasileiras foram plantadas na Malásia. Em menos de quarenta anos, esse ato patriótico de um súdito da rainha Vitória aniquilou a economia da Amazônia.
Há britânicos e britânicos que passaram pela região amazônica. Na minha memória há, sobretudo, uma inglesa, que não foi uma cientista ilustre, muito menos uma contrabandista. Foi apenas minha professora, mas isso teve algum significado para um moleque de treze anos.
Refiro-me a uma ruiva inesquecível: Jane C. Hern. Às 16h40 das quartas e sextas-feiras eu caminhava por uma rua sombreada por acácias e mangueiras, parava na calçada de uma mansão amarela e avistava a mulher ruiva aguando as delicadas flores de seu jardim inglês, um jardim que se revoltava durante as chuvas torrenciais até readquirir a aparência de um exuberante quintal amazônico. Jane fechava a torneira, enrolava a mangueira e vinha me receber com um sorriso aberto e iluminado, e não um simples ricto.
Hoje, penso que a estreita convivência com os amazonenses mudara o sorriso e os trejeitos de Jane. Acho que mudara também outras coisas, mais íntimas. Mas, em 1965, a reflexão sobre essa mudança moral nem passava pela minha cabeça.
A professora me convidava para entrar na sala, e os minutos que antecediam a aula eram a minha glória. Podia observá-la da cabeça aos pés e imaginá-la na piscina da mansão, sem o marido, que eu vi de longe uma única vez. Ele era gerente de um banco britânico que existia desde a época do pirata H. Wickham, e até mesmo do injustamente esquecido A. R. Wallace. Quando Jane ficava de costas para mim, fingindo consultar um livro na estante, eu contava as pintas na pele rosada e sem rugas, quase um milagre no clima do equador. Ou não era milagre, e sim o olhar turvo de um curumim encantado pela beleza ruiva. Enquanto o tempo passava, mrs. Hern, indiferente à pontualidade britânica, continuava a exibir as costas e os ombros nus. Ela era uma vítima feliz de outro tempo, lerdo e arrastado, tão amazônico. Em algum momento, bem depois das quatro, Jane se sentava à mesa, colocava a mão no meu braço e perguntava em inglês se eu havia lido um dos capítulos do romance. Referia-se a Treasure island, que eu lia em casa e depois relia durante a aula. Esse romance me fascinava, mas eu não buscava exatamente o tesouro escondido por Flint, e sim outro: a própria Jane de corpo e alma, mais corpo que alma, pois meu ser, naquelas tardes mornas, era mais carnívoro que platônico.
Mesmo assim, li com prazer o romance de Stevenson, esse arquiteto de tramas fantásticas que encontrou seu paraíso em Samoa, bem longe de Londres e de sua Escócia natal. Agora, ao reler A ilha do tesouro, recordo meus encontros com uma mulher de 43 anos, que Manaus ia transformando lentamente numa cabocla inglesa.
Não sei em qual hemisfério ela vive; talvez já nem esteja neste mundo. De qualquer modo, Jane Constable Hern está viva na minha memória, esse vasto rio sem margens.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

Michael Pipoquinha - Stevie Wonder | Sir Duke

Ao correr da máquina

Meu Deus, como o mundo sempre foi vasto e como eu vou morrer um dia. E até morrer vou viver apenas momentos? Não, dai-me mais do que momentos. Não porque momentos sejam poucos, mas porque momentos raros matam de amor pela raridade. Será que eu vos amo, momentos? Responde, a vida que me mata aos poucos: eu vos amo, momentos? Sim? Ou não? Quero que os outros compreendam o que jamais entenderei. Quero que me deem isto: não a explicação, mas a compreensão. Será que vou ter que viver a vida inteira à espera de que o domingo passe? E ela, a faxineira, que mora na Raiz da Serra e acorda às quatro da madrugada para começar o trabalho da manhã na Zona Sul, de onde volta tarde para a Raiz da Serra, a tempo de dormir para acordar às quatro da manhã e começar o trabalho na Zona Sul, de onde. – Eu vou te dar o meu segredo mortal: viver não é uma arte. Mentiram os que disseram isso. Ah! existem feriados em que tudo se torna tão perigoso. Mas a máquina corre antes que meus dedos corram. A máquina escreve em mim. E eu não tenho segredos, senão exatamente os mortais. Apenas aqueles que me bastam para me fazer ser uma criatura com os meus olhos e um dia morrer. Que direi disso que agora me ocorreu? Pois ocorreu-me que tudo se paga – e que se paga tão caro a vida que até se morre.
Passear pelos campos com uma criancinha-fantasma é estar de mãos dadas com o que se perdeu, e os campos ilimitados com sua beleza não ajudam: as mãos se prendem como garras que não querem se perder. Adiantaria matar a criancinha-fantasma e ficar livre? Mas o que fariam os grandes campos onde não se teve a previdência de plantar nenhuma flor senão a de um fantasminha cruel? Cruel por ser criancinha e exigente. Ah! sou realista demais: só ando com os meus fantasmas.
Clarice Lispector, in A descoberta do mundo

O dia de São Nunca (trecho final)


O menino contava e recontava.
Mais para o fim, o que parecia um copo de leite disse para a moça: “Senta do lado dele.” Ela se sentou do meu lado. “Põe o santo na mão dele.” Ela me deu o santo. “Abrace o santo.” Abracei o santo. “Põe a mão no ombro dele, abraça ele.” A moça me abraçou. “Isto. Sorria. Isto.” E para mim: “Você também, sorria.” Clique, clique. E disse para o amarelo: “Agora, você.” E disse: “Agora os dois, cada um de um lado dele.” E o amarelo: “Agora deixa eu fazer uma sua.” E o branco-de-leite veio para o meu lado, primeiro sozinho, depois com a moça. E foi assim um bocado de vezes, me davam o santo, me tomavam o santo, e a moça perguntava: “Quantas chapas ainda tem? Não gastem tudo.” E o copo de leite parecia que não ouvia, batia, batia, batia, como gostava de tirar retrato. E mais para o finzinho ainda ele virou aquele negócio preto e comprido para as telhas e disse: “Agora é a vez da sua irmãzinha”, mas a lagartixa parece que não gostou e saiu correndo, até se enfiar na parede e sumir.
Eles faziam tudo muito depressa, nessa hora. Não dava tempo de explicar que às vezes eu penso que Deus foi melhor com as lagartixas do que comigo. Porque Ele me deu estas duas perninhas de lagartixa, mas as lagartixas andam e eu não. Eu queria dizer pra eles que estava doido pra mamãe chegar, quem sabe ela fazia um café e um doce de leite? Isso era o que me deixava triste: eles aqui e mamãe lá longe.
E um disse (o muito branco, outra vez. Clique, clique e falando depressa): “Nós vamos voltar. Quando foi mesmo que você disse? Dois de fevereiro? A Festa da Padroeira. A igreja aberta o tempo todo. Não vamos nos esquecer. Vamos trazer muitos presentes para você, viu? Muitos brinquedos. Você é um garoto bacana, um garoto legal.” Falavam assim. Era o jeito deles. Então ele pegou o santo de novo e disse: “Você me dá ele? Nós voltamos aqui, vamos trazer muitos brinquedos. Vamos levar o santo, viu? E aquilo ali também, viu?” E aí ele deu o santo para a moça e disse: “Você leva o santo”, e os dois carregaram o nicho, com a lamparina acesa e tudo, o fedor do pavio queimado no azeite e eu disse: “Cuidado, senão o pavio apaga”, e eles saíram, quase correndo, e não olharam para trás.
Dois de fevereiro ainda está muito longe, não está, mamãe? Ainda estamos no mês de abril, não foi o que a senhora disse? Ainda bem que dois de fevereiro não é Dia de São Nunca.
Sabe o que eu penso, mamãe? Que eles devem ser os três reis magos. A senhora não acha? Eles vão voltar, trazendo os presentes. São os três reis magos. Mas tem a moça. Bom, pode ter morrido um rei mago e a moça entrou no lugar dele, para continuarem sendo três. Será que eu estou pensando certo, mamãe?

Ninguém disse nada de certo ou errado, ninguém pensou no mais certo ou no mais errado — um homem comentava, tentando assentar a poeira. Fora o menino, que se mantinha alegre, calmo e sonhador como sempre, o resto era a confusão, já próxima (ou talvez além) de um delírio. Mas o motor da luz será desligado daqui a pouco e o escuro devolverá de novo os homens para os seus sonhos. Restará o acabrunhamento, o desejo da vingança. E isto não entra nos sonhos. Entra nos pesadelos. Com certeza hoje será uma noite de pesadelos. Este homem, porém (não o último a falar, diga-se), sente-se no direito a umas palavras esclarecedoras. Ele disse:
Agora, agora, esse menino precisava lá de santo? Ele precisa é de perna para andar.
Por um momento os outros chegaram até a concordar. Era isso mesmo. No que todos refletiam e achavam que estava tudo muito certo, sim senhor, um outro homem lançava uma nova faísca, quente como uma brasa:
Ora muito bem, o senhor tem toda razão. Mas o caso não é o santo. O caso é o roubo.
Dito isso ele foi saindo de mansinho. Queria conversar um pouco com o tio do menino, antes que a luz se apagasse. E enquanto a luz estivesse acesa, ele, esse tio, continuaria lá, na sua marcenaria, esquecido no seu canto. E foi assim que o homem o encontrou: torneando pacientemente uma cantoneira — para outro santo. O tio trabalhava e rezava:

Louvando a Maria
O povo fiel

O homem gritou da janela:
Seu Marceneiro. Seu Marceneiro. Roubaram o santo do menino.
Sentindo-se interrompido, o tio recomeçou a reza:

Louvando a Maria
O povo fiel

O homem pensa que ele não ouve. Insiste:
Seu Marceneiro. Seu Marceneiro. Roubaram o santo do menino.
O tio volta a recomeçar:

Louvando a...

Parou. Sua cara atarantada parecia que ia se despregar do corpo e voar pelo espaço, a caminho do infinito, a caminho do céu. Não era para lá que este velho beato iria, quando morresse? Todos sabiam disto. Ele era um santo entre os vivos, o lado de lá desta vida desgraçadamente terrena. E o tio, com os seus velhos óculos remendados e suspensos na testa cheia de dobras, abriu os pulmões, abriu a cancela de um inferno jamais suspeitado. E soltou, com toda a força da sua alma, o primeiro palavrão de sua vida, que ecoou como um trovão, um estrondo, um ronco de Satanás.
Era um eco capaz de arrebentar o mundo, o homem pensou, seguindo o seu destino, debaixo das estrelas. Já não entendia mais nada.
Antônio Torres, in Meninos, eu conto

Palavra que

Palavra que
não esconde.
Sobre tela – têmpera.
Nova – onde não se fez
a pátina – e nítida.
Sem verniz ou laca
que a proteja.
Palavra que
não envelopa.
Que se dá aberta,
em pele
(não a que – trompe l’oeil – engana):
tez de coisa nua.
Eucanaã Ferraz

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Lil Buck at Fondation Louis Vuitton

Mais meu Sirimim

Habito a paisagem sólida, querida. Venham ver vocês. Ainda é inverno: alegrias direitinhas.
Amanhece de neblina, todos os dias, frio com frio. Ainda escuro, de sazão, agora, a madrugada vem muito curta, chega logo a manhã. O clarear é que é curto, para se assistir ao madrugar. Depois da coruja piando: o hu-lhu-h’hú. Da coruja, o pio é sempre. Mas, às vezes, vira o gargalhar, seco, um estalado, coisa seca, parece gargalhadinha de velho. Outra, a outra, seus estalidos, meio estridentes: cla-kle-cle-klá. Seriam duas corujas, no cajueiro, atrás do meu quarto; ninho delas. Dado o dia, bem guardam-se.
Os galos — e pintinhos e galinhas se agitando. A galinha com treze pintinhos, ela dorme debaixo do balaio. Entremente, melros, dos melhores. Ou os outros. A cambaxilra, aqui tem muita, dá um trinadozinho tristris. Aparecem os sanhaços. Vige aqui uma ordem: deixar-se, em cada mamoeiro, um mamão maduro, para eles, os pássaros de uso, que rebuscam o fácil das frutas. Àquela árvore de flor amarela, enchida de lagartas, vão os anus-pretos, mais tarde, quando se bem diz que o sol já está quente. Vi, porém, o martim-pescador, pousado no fim da luz, lindo. Escuro-e-verde e bronze, que, quando bate o sol, vira verde-azulado. Esperando a companheira?
Sigo, ao arreia-pêlo da correnteza, pela margem do mimo riachinho, soliloquaz: todo o tempo nos cruzamos. Sirimim estava de água clarinha, desta vez, ainda meio cheio, pelo que se sabe do que foi o verão: de chuvas e enxurros a granel. Mesmo agora, se costuma de vir alguma.
Tão cheiroso, na horta, aquele lugar da roseira! A gente se lembra de que foi a Irene que a plantou. A Irene se foi, faz seis meses, mas dá notícias. Diz que não conseguiu até hoje ajuntar dinheiro, só deu para comprar um vestido. Mas a Irene vai vir, estes dias, para o casamento da Maria do Dudu. Agora escuto o ruído de um muçum, pelo sol: a bulha da água remexida. E já se plantaram novas pimenteiras.
Ali, cheirando a roseira, e um perfume que vem, sai do chão. Cheira a mel. Vem de baixo. Você não vê nada. Deve de ser uma ervinha, um capinzinho. É o melhor cheiro e sobe da terra. Está por volta da horta, onde tem mato, nos lugares não capinados.
Vou visitar o Pedro, bebemos da biquinha, que recita. Mais que todas, a água do Sirimim, quando se apanha e põe na folha de taioba, ela fica de prata — a película prateada, a tremer. É a água mais pura que há.
O Pedro, mesmo tendo agora outra cachorrinha, não se esquece da que foi tão boa, a Bolinha, extinta. Conta de quando ela desapareceu, fugida, com a doença. — “... Zé Rufino tinha visto: ela passar, zangada, lá. Longe... Arruinada, uai. De zanga. Porque, naquela certa época do ano, zangam.” O Pedro é grato à Bolinha, porque ela não incomodou ninguém aqui, e porque poupou-lhe o assistir ao seu fim.
Sentamo-nos no antigo banco, pegado ao corte do barranco, ali tem uma laranjeira bem em cima do barranco, metade das raízes ficaram para fora. Mas, a casinha, a casa, atrás da qual estamos, já é a nova! O Pedro exulta — de não cessar de a contemplar.
E considera, com domingueiros olhos de repouso, o “seu” arrozal, lá embaixo, lugar fresco — à passarada. Está contente com o movimento, com o que se faz: na pinguela, para transpor o carro-de-bois, taparam os vãos com tabatinga e palha de arroz; taparam também todo o caminho que vem da pinguela até aqui, à casa; assim, há sempre palha de arroz espalhada — para refrescar a terra, agasalhá-la da umidade, e produzir adubo, depois.
Derrubou-se a casa velha, que era só um ranchinho de capim. O Pedro botou fogo em tudo, sapé e madeira podre, com ideia de que ali desse escorpiões. Mas, antes, a mudança levou dias, porque havia muito mantimento. O Pedro e a Eva são muito acomodados. A casa nova é grandinhazinha, com os dois quartos, e a cozinha e o quarto-dos-guardados — despensa para o milho e o arroz. Sem se esquecer a sala — só com um banco e o oratório: parece que os santos é que estão de visita ao Pedro.
No dia em que na casa nova definitivamente se alojaram, à noitinha, o Pedro, entrando no quarto-dos-guardados, escutou um barulho se mexendo. Com susto, invocou São Bento, pensou que fosse cobra atrás de camundongos, que estão dando no milho. Mas era uma gambá, com sete filhotes, já instalada perto do cacho de bananas — também de mudada! Foi só o Pedro fechar a porta, e mandar à Eva: — “Minha filha, premeia eles, com o cacete!” Medita: — “O vivente tem pouca pena do vivente...” E come a gambá, refogada simples, com farinha pura; mas não chupa os ossos, porque “dá caxumba”.
Na maior alegria, o Pedro inaugurou a casa nova, com uma ladainha. Armou a ladainha de ação-de-graças. Fez roupas novas, de papel crepom, para os santos todos do oratório. Varreu o terreno. Adornou o terreiro e casa com bandeirolas de papel. Arquinhos de bambus, com flores de papel, toscas, espetadas. Não tinha padre. Então, chamou um vizinho. Antoniartur de Almeida — ladrão, mau caráter, dizem, mas com grande prática de ladainhas. Quando estavam todos juntos, o homem dirigiu umas palavras ao povo. Depois, tirou umas rezas e preces. Ao meio-dia, em ponto. Rezaram um terço e a Ladainha de Todos-os-Santos. E o Padre reflete: — “Não é segredo o que estou lhe contando: mas, neste mundo, há gente de todo jeito. E é o de que se carece...”
Depois, dias, é que foi a festa — a dos quinze anos da Eva.
Da venda de ovos e galinhas, o Pedro conseguira um dinheirinho, bem escondido, que seria para se a Eva viesse a precisar, por doenças, em o caso. Graças a Deus, porém, a Eva sempre teve saúde, assim se criou. Vai daí, o Pedro, com a influência da casa nova, resolveu gastar esse cobre na alegria. Ficou muito boa, a festa dele. Teve danças. Serviram café, rosquinha redondinha, broa e pé-de-moleque. Bancou-se o manuel-manta: que é jogo de dados, num caixote com um papel com seis quadradinhos, em que as apostas se casam. — “O Pedro não tem muita valença...” — diz o Joaquim. Mesmo tão casmurro, achou que devia dar-lhe proteção, ao irmão mais novo e afilhado; por isso, ficou lá até a festa dar em fim.
Contudo, às vezes, o Joaquim parece ter inveja do Pedro, dos agrados que lhe fazem. Não pode compreender que se preze um pobre aleijadinho, assim. Tudo ele pega, pesa, mede e apreça — o Joaquim.
O Joaquim vai se mudar daqui. Ele tem setenta-e-dois-anos, e é duro, carrancudo, prepotente. O Joaquim bebe.
A Irene foi-se empregar no Rio, e ele ficou sentido com todos, e não dizia por que, agastado. Não podia brigar com o Maninho, sem razão, nem obrigar o Maninho, a se casar com a Irene. A Maria, mulher dele, então, ainda ficou mais desgostosa. Ambos, remoeram, muito, aquilo, mais e mais a se ressentir. Daí, chegaram à decisão. Ir-se embora, mesmo largando suas benfeitorias de colono — a farturinha formada naqueles anos: bananeiras, canavial, mandioca.
Donde que, vão para perto da outra filha, a Maria Doca, mulher do Manuel Doca, deles muito querida, lá têm netinhas, no Cici.
O Joaquim é homem sério, estricto e correcto demais, não gosta de natureza para os olhos. A coisa melhor, para ele, é a fartura. A coisa pior — a que ameaça a fartura — é a vadiação. Só pensa em termos de proveito. Andar bem com os outros — isto é: os outros andando bem com ele. Acha que a gente está aqui para cumprir obrigação, fazer fartura; e, depois, no Céu, apresentar contas a Deus. Contas certas, certa a vida.
Rejeita toda mercê de beleza, desocupada e que não produz. Mesmo a roseirinha que a Irene plantou, ele diz que a tolera somente porque ela serve às plantinhas, de sombra. Mas nunca reparou em que, nas rosinhas-de-cachos, as pétalas de de-dentro é que são cor-de-rosa claro, e as de fora, mais brancas, ou parecem brancas, pelo menos, se não são. Nem jamais sentiu, rosas asas, seu perfume.
O riachinho sair por aí, correndo e cantando, aborrece a ele.
Aceita-o, servo, na horta: aprisionadas, obrigadas, as aguinhas diligentes. Mas não as que se seguem, para lá, lá, em todo o depois — as das sombras matosas, e as que, soltas, na cheia, vão de afogadilho. Da ponta para baixo, o Sirimim “está com vadiação” , vale de nada, de nenhum préstimo. Presume-se que, no fundo, detestava-o o Joaquim: como à flor que flor, a borboleta andante, o passarinho e ninho, o grilo na alface, e, à noite, no negro ermo, no ar, o pirilampadário. O meu Sirimim no descuidoso imprestar-se: a lânguida água à lengalenga e a ternura em aventura.
A ida embora do Joaquim é uma luta, que o Sirimim venceu.
A casa, que foi dele, está vaga. Quem a virá ocupar? Talvez, o velho avô da Idalina.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

Street Art

Fonte: www.streetartutopia.com

Futebol e política

Alguns amigos se juntaram e resolveram fazer algo pela pequena cidade do interior em que moravam. Pensaram que seria possível colocar um pouco de razão nessa coisa tão movida a paixões que é a política. Nada partidário. Não levantaram bandeiras. Não defenderam candidatos. Não gritaram slogans . Propuseram aos dois candidatos a prefeito que respondessem a uma série de perguntas sobre os seus planos, as mesmas perguntas para os dois. As perguntas foram feitas por escrito e eles tiveram dez dias para escrever suas respostas. As perguntas e as respostas, com a concordância de ambos, foram transformadas num tabloide e distribuídas pela população. Num dia previamente marcado, os dois candidatos deveriam ler as suas respostas e assiná-las, como um documento público. Assim aconteceu. Os dois candidatos compareceram ao local designado junto com seus partidários, que se assentaram em dois blocos de cadeiras separadas. Mas o que sucedeu nada teve de racional. Era mais como o confronto entre torcidas de dois times de futebol, cada torcida odiando a outra. Vaias, gritos, apupos, xingamentos. Ninguém estava interessado em ouvir e compreender o outro. O clima foi ficando tenso e havia a possibilidade de que, terminado o evento, houvesse um confronto físico entre os dois grupos, tal como frequentemente acontece com torcidas de futebol. Ao final, a palavra foi aberta aos presentes. Uma amiga, uma mansa mulher, se levantou trêmula e disse algo mais ou menos assim: “Eu e meu marido nos mudamos para cá por opção. Cansados da brutalidade de São Paulo, escolhemos esta cidade porque ela nos pareceu habitada por pessoas cordiais e pacíficas. Mas agora estou triste. Perdemos nossas ilusões...”. Disseram alguns participantes que foi essa fala mansa que envergonhou as torcidas já preparadas para a briga. Que pena que aconteça assim! Usando a metáfora do futebol: as eleições não são um confronto entre dois times que se odeiam. Não há dois times. O time é um só. Todos jogamos nele. Nosso time é a cidade. O que acontecer na cidade acontecerá a todos nós. O que acontece nas eleições é a escolha do técnico do time no qual todos nós jogamos. Dizem as Sagradas Escrituras que uma cidade dividida contra si mesma não pode sobreviver. Será esse o nosso destino, viver batalhas de ódio que só produzem divisões? As pessoas, por terem ideias diferentes, têm de se tornar inimigas? Alguns acham que sim. Elas se tornam inimigas daqueles que têm ideias diferentes das suas. Eu mesmo ganhei muitos inimigos... Isso acontece porque há aqueles que se julgam possuidores da verdade. Mas ninguém é dono da verdade. Por isso existe a democracia: porque ninguém tem a verdade. Só temos opiniões precárias. Quem se julga dono da verdade tem de ser intolerante.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

Recato

Um morto volta sempre para a primeira reunião familiar. E sorri, entre aliviado e agradecido, quando descobre que estão falando noutras coisas.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

domingo, 27 de agosto de 2017

A última crônica


A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.
O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você…” Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.”
Fernando Sabino, in A companheira de viagem

Noturno

Não sou o que te quer. Sou o que desce
a ti, veia por veia, e se derrama
à cata de si mesmo e do que é chama
e em cinza se reúne e se arrefece.

Anoitece contigo. E me anoitece
o lume do que é findo e me reclama.
Abro as mãos no obscuro, toco a trama
que lacuna a lacuna amor se tece.

Repousa em ti o espanto que em mim dói,
noturno. E te revolvo. E estás pousada,
pomba de pura sombra que me rói.

E mordo o teu silêncio corrosivo,
chupo o que flui, amor, sei que estou vivo
e sou teu salto em mim suspenso em nada.
Bruno Tolentino

A língua, um rio

O estilo que tenho construído assenta na grande admiração e respeito que tenho pela língua que foi falada nesta terra nos séculos XVI e XVII. Pegamos nos sermões do padre Antônio Vieira e, para além do preciosismo e conceptismo do gozo, por vezes um pouco obscurecedor do sentido, verificamos que há, em tudo o que escreveu, uma língua cheia de sabor e de ritmo, como se isso não fosse exterior à língua, mas lhe fosse intrínseco.
A língua é um fio que constantemente se parte e hoje estamos sempre a dar-lhe nós que bem se notam na escrita. Não sabemos ao certo como se falava na época. Mas sabemos como se escrevia. A língua que então se escrevia era um fluxo ininterrupto. Admitindo que podemos compará-la a um rio, sentimos que é como uma grande massa de água que desliza com peso, com brilho, com ritmo, mesmo que, por vezes, o seu curso seja interrompido por cataratas.
Esse gosto, que não é de hoje, converteu-se num agente transformador da minha linguagem atual. Escrevo, no fundo, como se escrevesse a língua que gostaria que se falasse.
José Saramago, in As palavras de Saramago

Um Café Lá em Casa com Chico Chagas e Nelson Faria

O sempre abraço

Não faz muito que foram descobertos, na sequidão do que antigamente foi a praia de Zumpa, no Equador. E aqui estão, a todo sol, para quem quiser vê-los: um homem e uma mulher descansam abraçados, dormindo amores, há uma eternidade.
Escavando o cemitério dos índios, uma arqueóloga encontrou este par de esqueletos de amor atados. Há oito mil anos que os amantes de Zumpa cometeram a irreverência de morrer sem se desprender, e qualquer um que se aproxime pode ver que a morte não lhes provoca a menor preocupação.
É surpreendente sua esplêndida formosura, tratando-se de ossos tão feios no meio de tão feio deserto, pura aridez e cinzentice; e mais surpreendente é sua modéstia. Estes amantes, adormecidos no vento, parecem não ter percebido que eles têm mais mistério e grandeza que as pirâmides de Teotihuacán ou o santuário de Machu Picchu ou as cataratas do Iguaçu.
Eduardo Galeano, in Mulheres

A companhia indesejável

A moça é daquelas que dão duro no trabalho, como chefe de órgão importante, e depois vão para casa cuidar de si mesmas. Chamemo-la Andreia. Vive só, o que é mais inteligente do que viver com um apêndice importuno. Sem empregada, tendo apenas faxineira, cuida pessoalmente de sua dieta-da-lua, de suas roupas, de suas contas, de sua música, de seu tudo. E ao apagar a luz, finda a jornada cheia de responsabilidades para com a pátria e a vida, seu sono é o da pureza de alma. Que bom viver só, sem a presença do Outro, o terrível Outro, que é sempre (ou quase) um Eu rabugento ou chatíssimo!
Semana passada, Andreia acordou disposta como sempre a lutar, e foi tomar seu chazinho-de-jasmim. A mesa, arranjada de véspera, era primor de ordem e asseio, de que a moça faz questão: um de seus traços pessoais. E que viu Andreia, além da xícara, dos apetrechos, da latinha de chá, da toalha, dos finos biscoitos? Viu que alguém passara por ali e tomara chá antes dela!
Que tomara chá, propriamente, não, mas que usara a mesa e deixara sinais, era evidente. As coisas estavam desarrumadas, a colher fora de lugar, havia rugas na toalha, um biscoito fora trincado, e até, para horror de Andreia, pequena e estranha substância se depositara sobre a mesa!
A moça correu às portas, a social e a de serviço, e achou-as trancadas como as deixara. Pela varanda fechada não poderia ter entrado ninguém. Que ser misterioso conspurcara a sua mesa? Mal indagou isto a si mesma, viu uma forma veloz deslizar pelo tapete e esconder-se atrás de uma poltrona. E essa coisa chispante, branco acinzentada, era um camundongo. Ir correndo à copa, brandir uma vassoura e atacar o bichinho foi obra de um momento. Em vão, é claro. Não há camundongo que se deixe pegar por moça nervosa e de má pontaria.
O tempo de Andreia era curto, não dava para empreender caçada em regra, com o auxílio do gato do porteiro; ela deixou o apartamento e foi muito abalada para o serviço. De lá telefonou para a Comlurb, pedindo que fossem pegar o rato em sua casa. Marcada a visita para o dia seguinte, Andreia faltou ao trabalho para atender ao matador de ratos, que apareceu com a sua instrumentália, viu, não achou sinal de rato nenhum e pediu maiores esclarecimentos:
A senhora pode me dizer o tamanho dele?
Vi só um momentinho, acho que tem uns noventa milímetros de comprimento e outros tantos de rabo.
O homem sorriu:
Ah, então o que a senhora viu foi um camundongo.
Que diferença faz? Ele rói da mesma maneira e eu me sinto ameaçada.
A diferença é que nós só cuidamos de ratos, desses ratões ou ratazanas, que medem vinte centímetros de comprimento e pouco menos de rabo. Esse ratinho da senhora é café-pequeno pra nós. Já experimentou ratoeira?
O porteiro me emprestou uma, que até agora não pegou nada.
Vai ver que o danadinho sentiu cheiro de ratoeira usada, que não engana, e não foi besta de arriscar. Eles têm um faro! Compre uma ratoeira no bazar.
É o que vou fazer já. E se ela não pegar? Se o ratinho for bastante inteligente para perceber que aquilo é de morte?
Bem, nunca se pode garantir nada a respeito do comportamento dos camundongos. Eu mesmo já lutei contra eles lá em casa, e pegava uns três por dia. Mas sabe o que aconteceu? Ficava sempre uma fêmea para parir cinco vezes por ano uma média de oito a dez filhotes de cada vez.
O quê? — Andreia teve o maior arregalo de olhos de sua vida. — E eu vou ter em casa essa cambada toda infernizando a minha vida?
Calma. Não estou dizendo que o seu camundongo…
Meu, não!
Que o camundongo desta casa se multiplique. Se é um só, como é que vai se multiplicar? Procure manter a serenidade, nem eu vim aqui para assustar mais a senhora. Vim em missão de paz.
E então?
Então, acho que tenho uma solução para o seu caso.
Diga, diga.
Tem um preparado aí que dizem que é um barato. Eu não experimentei, mas um amigo meu afiançou que é tiro e queda. O nome é Catitoline. Não sabe que o povo chama camundongo de catito? Pois é.
Ah, obrigada pela indicação! Vou rezar para que esse tal de Catitoline dê certo. Bem, me esqueci de que não rezo, mas Deus é grande. O que eu não posso é viver em companhia de um ratinho, e muito menos se ele for de família numerosa.
Pelo telefone, Andreia comprou imediatamente o raticida.
Agora vamos à luta — exclamou com voz de combate.
Pegou da bula, que era vasta, alastrada em duas páginas de tipo miúdo, com ilustrações. Sem tempo a perder, procurou o essencial; dosagem, e como preparar a isca. Espalhou pela casa, do quarto de dormir até a área de serviço, as pequenas porções de pó róseo impregnadas em pedacinhos de folhas de chicória — ah, esperança! ah, incerteza! porque Andreia confiava e descria ao mesmo tempo. Sua cabeça não sossegava, com o pensamento de já não morar só, de ter uma companhia que ela não convidara nem desejava — a mísera, assustadora, incontrolável companhia de um ratinho mais ou menos invisível.
Suas noites eram povoadas de ratinhos que bailavam sobre a escova de dentes ou se escondiam no sutiã. Despencavam-se do lustre, em brincadeira perversa, indo cair dentro dos chinelos. E até no chuveiro eles se mostravam, envolvidos em água. Andreia tinha medo de dormir; passou a ter pesadelos acordada. Um dia, abriu o livro de Manuel Bandeira, poeta de sua devoção, e um camundongo saltou do interior, entre duas folhas. Será que Catitoline resolve?
Andreia lera, afobada, que era preciso insistir de quatro a seis dias na aplicação; se fosse o caso, até dez. Pela manhã, passava em revista as porções, que diminuíam de tamanho. O ratinho cevava-se. Andreia, ao renovar as iscas, chegou a pensar que, no fundo, estava criando e alimentando um rato, em vez de exterminá-lo. Era preciso ter paciência e persistência. No dia em que nenhuma folha de chicória aparecesse mexida, a guerra estaria ganha.
O ratinho continuava circulando pelo apartamento, circulando e comendo. Foram dias penosos de incerteza, quando quem menos ou nada comia era Andreia, receosa de que, depois da refeição de Catitoline, o danado fosse degustar sobremesa de queijo, na mesa de jantar. Todos os lugares, móveis, vasilhas e utensílios da casa estavam sob suspeita. Poluídos? Não poluídos? Quem sabe! Na dúvida, tocava o mínimo possível nos objetos. Com a ponta dos dedos.
As amigas, a quem Andreia contara o problema, indagavam da evolução dos acontecimentos. Aconselhavam dobrar, triplicar a dose de Catitoline. Fazer novena para santa Ludvígia, protetora contra animais daninhos. Recorrer à macumba do Morro dos Cabritos. Contratar um segurança que permanecesse indormido no interior do apartamento. Apelar para o presidente Figueiredo, por que não? Tão fértil, a imaginação das pessoas!
Como é: o ratão está engordando com as mordomias? — telefonou um amigo, e Andreia desligou, indignada. É brincadeira que se faça?
Pouco a pouco, as iscas foram se mostrando intactas. Assim ficaram durante cinco dias. Tempo bastante para Andreia confiar no veredicto das amigas:
Esse, nunca mais. Pode crer.
Nenhuma notícia do ratinho. Procura-que-procura em toda parte, esconderijo, ângulo, nada. Como podia desaparecer assim? Por que o cadáver não ficara exposto, certificante? Afinal, um rato é um rato, não uma abstração.
De qualquer maneira, Andreia dedicou um pensamento de gratidão ao Catitoline, veneno milagroso e sutil, lento e misterioso. Leu com aprazimento a bula, antes percorrida de relance. A curiosidade a incitava: Por que motivo o cadáver desaparecera?
A bula informou-lhe que o ratinho não apodrecia nem cheirava mal porque se recolhera ao lugar de origem e aí quedara morto, mumificado. É das excelências de Catitoline: fulmina e impede o mau cheiro.
Mas que é que ele tem de especial para fazer a mumificação? Que substância gostosa é essa, que mantém a gula do ratinho durante tantos dias, sem provocar-lhe cólicas e até o incitando a comer mais?
A bula, copiosa e ilustrada, respondeu, em exatas palavras, que o elemento químico responsável pela morte e pela conversão do camundongo em múmia inodora era segredo de fabricação, protegido pelas leis de propriedade industrial, mantido nos últimos quinze anos pela multinacional proprietária da fórmula, bolada por eminente cientista holandês, especializado em raticídio. Quanto ao sabor da comida, a bula riu e não escondeu:
Ora, o ratinho não é levado pela fome, mas pelo desejo sexual. A substância empregada proporciona-lhe grande prazer e até mesmo orgasmo. O camundongo morre feliz, depois de uma temporada erótica da maior intensidade. Não é o alimento que move os bichos e tantos seres humanos; é o sexo.
Vivendo e aprendendo — concluiu Andreia, voltando à paz e à ventura de morar sozinha. O que — acrescente-se — não é sinônimo de viver sozinha.
Carlos Drummond de Andrade, in Boca de luar