domingo, 27 de agosto de 2017

A língua, um rio

O estilo que tenho construído assenta na grande admiração e respeito que tenho pela língua que foi falada nesta terra nos séculos XVI e XVII. Pegamos nos sermões do padre Antônio Vieira e, para além do preciosismo e conceptismo do gozo, por vezes um pouco obscurecedor do sentido, verificamos que há, em tudo o que escreveu, uma língua cheia de sabor e de ritmo, como se isso não fosse exterior à língua, mas lhe fosse intrínseco.
A língua é um fio que constantemente se parte e hoje estamos sempre a dar-lhe nós que bem se notam na escrita. Não sabemos ao certo como se falava na época. Mas sabemos como se escrevia. A língua que então se escrevia era um fluxo ininterrupto. Admitindo que podemos compará-la a um rio, sentimos que é como uma grande massa de água que desliza com peso, com brilho, com ritmo, mesmo que, por vezes, o seu curso seja interrompido por cataratas.
Esse gosto, que não é de hoje, converteu-se num agente transformador da minha linguagem atual. Escrevo, no fundo, como se escrevesse a língua que gostaria que se falasse.
José Saramago, in As palavras de Saramago

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