quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Nas mãos da Vida

Tudo são instrumentos nas mãos da Vida.”
Machado de Assis, in Esaú e Jacó

Numa certa idade

Desta lenta gestação, vão nascer inesperados frutos. Não terminou a aventura da qual participei apaixonadamente: a dúvida, os reveses, o aborrecimento, marcar passo, em seguida a luz entrevista, uma esperança, uma hipótese confirmada. Depois de semanas e de meses de ansiosa paciência, a embriaguez do êxito. Não compreendia bem os trabalhos de André mas minha confiança cabeçuda fortalecia a sua. Ela permanece intata. Mas por que não posso mais transmiti-la? Eu me recuso a crer que não verei jamais brilhar em seus olhos a alegria febril da descoberta.
Disse:
Nada prova que você não terá uma segunda inspiração.
Não. Em minha idade temos hábitos que freiam a invenção. Cada ano que passa fico mais ignorante.
Tornaremos a tocar no assunto daqui a dez anos. Aos setenta anos, talvez, você fará a sua maior descoberta.
Isso é bem o seu otimismo! Garanto-lhe que não.
É bem o seu pessimismo!
Rimos. Entretanto, não há do que rir. O derrotismo de André não tem fundamento, desta feita ele carece de rigor. Sim, Freud escreveu em uma de suas cartas que numa certa idade não se inventa mais nada e isso é desolador. Mas ele era, então, muito mais velho que André. Não importa. Injustificada embora, essa melancolia não me entristece menos. Se André se entrega é que, de um modo geral, ele está em crise. Surpreendo-me, mas o fato é que ele não se resigna a varar os sessenta anos. A mim, mil coisas me divertem ainda, a ele não. Antigamente, tudo o interessava, agora é um problema levá-lo a ver um filme, a uma exposição, à casa de amigos.
Que pena você não gostar mais de passear — disse. — Os dias andam tão bonitos! Pensava há pouquinho que gostaria muito de voltar a Milly e às florestas de Fontainebleau. — Você é espantosa — disse-me sorrindo.
Conhece a Europa inteira e deseja rever os arrabaldes de Paris!
Por que não? A colegial de Champeaux não é menos bela porque eu subi à Acrópole.
Pois seja. Assim que o laboratório estiver fechado, em quatro ou cinco dias, eu lhe prometo uma longa vagabundagem de carro.
Teremos tempo de fazer mais de uma pois que ficaremos em Paris até o início de agosto. Mas terá ele vontade? Perguntei:
Amanhã é domingo. Você estará livre?
Não, infelizmente! Você bem sabe da existência desse encontro com a imprensa sobre o apartheid. Eles me trouxeram uma porção de documentos que ainda não examinei.
Prisioneiros políticos espanhóis, detidos portugueses, iranianos perseguidos, rebeldes congoleses, guerrilheiros venezuelanos, peruanos, colombianos, ele está sempre pronto a ajudá-los na medida de suas forças. Reuniões, manifestos, meetings, tratados, delegações, nada ele recusa.
Você se dá demais!
Por que demais? Que outra coisa fazer?
Que fazer, mesmo, quando o mundo se descoloriu? Só resta matar o tempo. Eu também atravessei um mau período há dez anos. Estava aborrecida com meu corpo, Filipe tornara-se adulto. Após o sucesso de meu livro sobre Rousseau sentia-me vazia. Envelhecer me agoniava. Depois, iniciei um estudo sobre Montesquieu, consegui que Filipe passasse nos exames e começasse sua tese. Confiaram-me cursos na Sorbonne que me interessaram mais que meus problemas. Resignei-me a meu corpo. Pareceu-me que ressuscitava. E hoje, se André não tivesse uma consciência tão aguda de sua idade, eu esqueceria a minha.
Ele tornou a sair e eu fiquei bastante tempo no terraço. Vi voltear contra o fundo azul do céu uma grua cor de mínio. Segui com os olhos um inseto negro que fazia no ar um sulco espumoso e gelado. A perpétua juventude do mundo me deixa sem ar. Coisas que eu amei desapareceram. Muitas outras me foram dadas. Ontem à tarde, eu subia o Bulevar Raspail e o céu estava carmesim. Pareceu-me caminhar num planeta estrangeiro onde a relva fosse violeta, a terra azul. As árvores abrigavam o avermelhar de um anúncio a néon. Andersen aos sessenta anos maravilhava-se por atravessar a Suécia em menos de vinte e quatro horas quando em sua juventude a viagem durava uma semana. Conheci deslumbramentos semelhantes: Moscou a três horas e meia de Paris!
Simone de Beauvoir, in A mulher desiludida

Deus e o diabo em nossa cabeça

Tudo o que existe, toda a percepção que temos do que existe está em nossa cabeça. Quer dizer, às vezes digo que o lugar da transcendência é a mais imanente de todas as coisas, que é o cérebro humano: é aqui que está Deus, é aqui que está o diabo, que estão o mal, o bem, a justiça a injustiça. Tudo está dentro da cabeça. Então, talvez o que esteja ocorrendo conosco seja uma caminhada lenta, muito lenta, cheia de contradições, em direção à razão. Mas não creio que já tenhamos chegado.
José Saramago, in As palavras de Saramago

Djavan: Vida Nordestina

Ana Paula

- “Ana Paula?!”
- É. Por quê?
- Conta outra.
- Meu nome é Ana Paula.
- Você não vai acreditar, mas eu sempre sonhei em encontrar uma Ana Paula.
- Mesmo?
- E o meu sonho era... você. Escrito.
- Mesmo?!
- O cabelo, os olhos, até o formato do rosto.
- Que coisa!
- Sabe de uma coisa? Eu estou achando isso muito suspeito.
- Suspeito?
- Você não se chama Ana Paula, chama?
- Juro!
- Está pensando o quê? Pode parar.
- Mas...
- Você não me engana. Está tudo perfeito demais. Até o dentinho um pouco torto. Aí tem coisa. Pera lá.
- Que coisa podia ter?
- Você acha que os sonhos se realizam, assim, no mais?
- Só sei que o meu nome é Ana Paula.
- Você ia chegar assim, como eu sempre sonhei? Até o jeito de falar? Pára.
- Desculpe se eu...
- Não. Pára. Aí tem coisa. Comigo não. Não caio nessa.
E ele se afastou às pressas, fugindo, quase derrubando o sorveteiro.
Luís Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam

Um mesmo tema, leituras diversas

Espinosa, em seu Tractatus theologico-politicus, de 1650 (denunciado pela Igreja Católica Romana como obra “forjada no inferno por um judeu renegado e pelo diabo”), já observara:
Acontece com frequência que em livros diferentes lemos histórias em si mesmas semelhantes, mas que julgamos de forma muito diferente, segundo as opiniões que formamos sobre os autores. Lembro de ter lido certa vez em algum livro que um homem chamado Orlando Furioso costumava montar uma espécie de monstro alado pelos ares, voar sobre qualquer terra que quisesse, matar sem ajuda um vasto número de homens e gigantes e outras fantasias desse tipo, as quais, do ponto de vista da razão, são obviamente absurdas. Li uma história muito parecida em Ovídio, sobre Perseu, e também no livro dos Juízes e Reis, sobre Sansão, que sozinho e desarmado matou milhares de homens, e sobre Elias, que voou pelo ar e foi finalmente ao céu, num carro de fogo com cavalos ígneos. Todas essas histórias são obviamente parecidas, mas julgamo-las de modo muito diferente. A primeira buscava divertir, a segunda tinha um objetivo político, a terceira, um motivo religioso”.
Alberto Manguel, in História da leitura

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Poda

No canteiro de mágoas,
a rosa não floresce,
o mato cresce, engole, abafa,
a primavera passa
desapercebida.
No cipó que adere e se entrelaça,
a seiva estanca e morre branca.
Leva com ela outra estação perdida.
Flora Figueiredo

Anywhere out of the world

Esta vida é um hospital em que cada doente é dominado pelo desejo de mudar de leito. Um desejaria sofrer em frente à estufa, outro julga que se restabeleceria junto à janela.
Por mim, tenho a impressão de que estaria sempre bem onde não estou, e essa questão de mudança é uma das que discuto constantemente com minha alma.
Alma, minha pobre alma enregelada, que diria se fôssemos morar em Lisboa? Lá, deve fazer calor, e ficarias esperta como uma lagartixa. É uma cidade à beira-mar. Dizem que é construída de mármore e que o povo odeia os vegetais, arrancando todas as árvores. É uma paisagem ao teu gosto, uma paisagem feita de luz e minerais, além do líquido para refrescá-los!
A alma não responde.
Se amas tanto o repouso, ante o espetáculo do movimento, queres ir morar na Holanda, essa terra abençoada? Talvez te divertisses nessa região cuja imagem tantas vezes admiraste nos museus. Que achas de Rotterdam, tu que aprecias as florestas de mastros e os navios atracados junto às casas?
Minha alma continua silenciosa.
Talvez a Batávia te sorrisse mais. Além disso, encontraríamos lá o espírito da Europa casado com a beleza tropical.
Nem uma palavra. Minha alma estaria morta?
Terás chegado a um tal estado de letargia que só estejas satisfeita com teu mal? Nesse caso, fujamos para os países que evocam a Morte. Assumo o compromisso, pobre alma! Arrumaremos as malas pra Tornéu. Ou vamos mais longe ainda, para os extremos confins do Báltico; mais longe ainda da vida, se for possível; instalemo-nos no polo. Lá, o sol apenas toca a terra obliquamente, e as lentas alternativas da luz e da noite suprimem a variedade e aumentam a monotonia, essa metade do nada. Lá, poderemos tomar longos banhos de trevas, ao mesmo tempo que, para divertir-nos, as auroras boreais nos enviarão de vez em quando os seus feixes róseos, como reflexos de um fogo de artifício do Inferno!
Finalmente, minha alma intervém e exclama com sabedoria:
Não importa onde! Não importa o lugar! O essencial é que seja fora deste mundo!
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

O menino mais novo (Capítulo V)


A ideia surgiu-lhe na tarde em que Fabiano botou os arreios na égua alazã e entrou a amansá-la. Não era propriamente ideia: era o desejo vago de realizar qualquer ação notável que espantasse o irmão e a cachorra Baleia.
Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração. Metido nos couros, de perneiras, gibão e guarda-peito, era a criatura mais importante do mundo. As rosetas das esporas dele tilintavam no pátio; as abas do chapéu, jogado para trás, preso debaixo do queixo pela correia, aumentavam-lhe o rosto queimado, faziam-lhe um círculo enorme em torno da cabeça.
O animal estava selado, os estribos amarrados na garupa, e Sinha Vitória subjugava-o agarrando-lhe os beiços. O vaqueiro apertou a cilha e posse a andar em redor, fiscalizando os arranjos, lento. Sem se apressar, livrou-se de um coice: virou o corpo, os cascos da égua passaram-lhe rente ao peito, raspando o gibão. Em seguida Fabiano subiu ao copiar, saltou na sela, a mulher recuou - e foi um redemoinho na catinga.
Trepado na porteira do curral, o menino mais novo torcia as mãos suadas, estirava-se para ver a nuvem de poeira que toldava as imburanas. Ficou assim uma eternidade, cheio de alegria e medo, até que a égua voltou e começou a pular furiosamente no pátio, como se tivesse o diabo no corpo. De repente a cilha rebentou e houve um desmoronamento. O pequeno deu um grito, ia tombar da porteira. Mas sossegou logo. Fabiano tinha caído em pé e recolhia-se banzeiro e cambaio, os arreios no braço. Os estribos, soltos na carreira desesperada, batiam um no outro, as rosetas das esporas tiniam.
Sinha Vitória cachimbava tranquila no banco do copiar, catando lêndeas no filho mais velho. Não se conformando com semelhante indiferença depois da façanha do pai, o menino foi acordar Baleia, que preguiçava, a barriguinha vermelha descoberta, sem-vergonha. A cachorra abriu um olho, encostou a cabeça à pedra de amolar, bocejou e pegou no sono de novo.
Julgou-a estúpida e egoísta, deixou-a, indignado, foi puxar a manga do vestido da mãe, desejando comunicar-se com ela. Sinha Vitória soltou uma exclamação de aborrecimento, e, como o pirralho insistisse, deu-lhe um cascudo.
Retirou-se zangado, encostou-se num esteio do alpendre, achando o mundo todo ruim e insensato. Dirigiu-se ao chiqueiro, onde os bichos bodejavam, fungando, erguendo os focinhos franzidos. Aquilo era tão engraçado que o egoísmo de Baleia e o mau humor de Sinha Vitória desapareceram. A admiração a Fabiano é que ia ficando maior.
Esqueceu desentendimentos e grosserias, um entusiasmo verdadeiro encheu-lhe a alma pequenina. Apesar de ter medo do pai, chegou-se a ele devagar, esfregou-se nas perneiras, tocou as abas do gibão. As perneiras, o gibão, o guarda- peito, as esporas e o barbicacho do chapéu maravilhavam-no.
Fabiano desviou-o desatento, entrou na sala e foi despojar- se daquela grandeza.
O menino deitou-se na esteira, enrolou-se e fechou os olhos. Fabiano era terrível. No chão, despidos os couros, reduzia-se bastante, mas no lombo da égua alazã era terrível.
Dormiu e sonhou. Um pé-de-vento cobria de poeira a folhagem das imburanas, Sinha Vitória catava piolhos no filho mais velho. Baleia descansava a cabeça na pedra de amolar.
No dia seguinte essas imagens se varreram completamente. Os juazeiros do fim do pátio estavam escuros, destoavam das outras árvores. Porque seria?
Aproximou-se do chiqueiro das cabras, viu o bode velho fazendo um barulho feio com as ventas arregaçadas, lembrou-se do acontecimento da véspera. Encaminhou-se aos juazeiros, curvado, espiando os rastos da égua alazã.
A hora do almoço Sinha Vitória repreendeu-o:
- Este capeta anda leso.
Ergueu-se, deixou a cozinha, foi contemplar as perneiras, o guarda-peito e o gibão pendurados num torno da sala. Daí marchou para o chiqueiro - e o projeto nasceu.
Arredou-se, fez tenção de entender-se com alguém, mas ignorava o que pretendia dizer. A égua alazã e o bode misturavam-se, ele e o pai misturavam-se também. Rodeou o chiqueiro, mexendo-se como um urubu, arremedando Fabiano.
A necessidade de consultar o irmão apareceu e desapareceu. O outro iria rir-se, mangar dele, avisar Sinha Vitória. Teve medo do riso e da mangação. Se falasse naquilo, Sinha Vitória lhe puxaria as orelhas.
Evidentemente ele não era Fabiano. Mas se fosse? Precisava mostrar que podia ser Fabiano. Conversando, talvez conseguisse explicar-se.
Pôs-se a caminhar, banzeiro, até que o irmão e Baleia levaram as cabras ao bebedouro. A porteira abriu-se, um fartum espalhou-se pelos arredores, os chocalhos soaram, a camisinha de algodão atravessou o pátio, contornou as pedras onde se atiravam cobras mortas, passou os juazeiros, desceu a ladeira, alcançou a margem do rio.
Agora as cabras se empurravam metendo os focinhos na água, os cornos entrechocavam-se. Baleia, atarefada, latia correndo.
Trepado na ribanceira, o coração aos baques, o menino mais novo esperava que o bode chegasse ao bebedouro. Certamente aquilo era arriscado, mas parecia-lhe que ali em cima tinha crescido e podia virar Fabiano. Sentou-se indeciso. O bode ia saltar e derrubá-lo. Ergueu-se, afastou-se, quase livre da tentação, viu um bando de periquitos que voava sobre as catingueiras. Desejou possuir um deles, amarrá-lo com uma embira, dar-lhe comida. Sumiram-se todos chiando, e o pequeno ficou triste, espiando o céu cheio de nuvens brancas. Algumas eram carneirinhos, mas desmanchavam-se e tornavam-se bichos diferentes. Duas grandes se juntaram - e uma tinha a figura da égua alazã, a outra representava Fabiano.
Baixou os olhos encandeados, esfregou-os, aproximou-se novamente da ribanceira, distinguiu a massa confusa do rebanho, ouviu as pancadas dos chifres. Se o bode já tivesse bebido, ele experimentaria decepção. Examinou as pernas finas, a camisinha encardida e rasgada. Enxergara viventes no céu, considerava-se protegido, convencia-se de que forças misteriosas iam ampará-lo. Boiaria no ar, como um periquito.
Pôs-se a berrar, imitando as cabras, chamando o irmão e a cachorra. Não obtendo resultado, indignou-se. Ia mostrar aos dois uma proeza, voltariam para casa espantados.
Aí o bode se avizinhou e meteu o focinho na água. O menino despenhou-se da ribanceira, escanchou-se no espinhaço dele.
Mergulhou no pelame fofo, escorregou, tentou em vão segurar-se com os calcanhares, foi atirado para a frente, voltou, achou-se montado na garupa do animal, que saltava demais e provavelmente se distanciava do bebedouro. Inclinou- se para um lado, mas fortemente sacudido, retomou a posição vertical, entrou a dançar desengonçado, as pernas abertas, os braços inúteis. Outra vez impelido para a frente, deu um salto mortal, passou por cima da cabeça do bode, aumentou o rasgão da camisa numa das pontas e estirou-se na areia. Ficou ali estatelado, quietinho, um zunzum nos ouvidos, percebendo vagamente que escapara sem honra da aventura.
Viu as nuvens que se desmanchavam no céu azul, embirrou com elas. Interessou-se pelo voo dos urubus. Debaixo dos couros, Fabiano andava banzeiro, pesado, direitinho um urubu.
Sentou-se, apalpou as juntas doídas. Fora sacolejado violentamente, parecia-lhe que os ossos estavam deslocados.
Olhou com raiva o irmão e a cachorra. Deviam tê-lo prevenido. Não descobriu neles nenhum sinal de solidariedade: o irmão ria como um doido, Baleia, séria, desaprovava tudo aquilo. Achou-se abandonado e mesquinho, exposto a quedas, coices e marradas.
Ergueu-se, arrastou-se com desânimo até a cerca do bebedouro, encostou-se a ela, o rosto virado para a água barrenta, o coração esmorecido. Meteu os dedos finos pelo rasgão, coçou o peito magro. O tropel das cabras perdeu-se na ladeira, a cachorrinha ladrou longe. Como estariam as nuvens? Provavelmente algumas se transformavam em carneirinhos, outras eram como bichos desconhecidos.
Lembrou-se de Fabiano e procurou esquecê-lo. Com certeza Fabiano e Sinha Vitória iam castigá-lo por causa do acidente. Levantou os olhos tímidos. A lua tinha aparecido, engrossava, acompanhada por uma estrelinha quase invisível. Aquela hora os Periquitos descansavam na vazante, nas touceiras secas de milho. Se possuísse um daqueles periquitos, seria feliz.
Baixou a cabeça, tornou a olhar a poça escura que o gado esvaziara. Uns riachos miúdos marejavam na areia como artérias abertas de animais. Recordou-se das cabras abatidas a mão de pilão, penduradas de cabeça para baixo num caibro do copiar, sangrando.
Retirou-se. A humilhação atenuou-se pouco a pouco e morreu. Precisava entrar em casa, jantar, dormir. E precisava crescer, ficar tão grande como Fabiano, matar cabras a mão de pilão, trazer uma faca de ponta à cintura. Ia crescer, espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha, calçar sapatos de couro cru.
Subiu a ladeira, chegou-se a casa devagar, entortando as pernas, banzeiro. Quando fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante, as rosetas das esporas tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como pé-de-vento, levantando poeira. Ao regressar, apear-se-ia num pulo e andaria no pátio assim torto, de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com barbicacho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados.
Graciliano Ramos, in Vidas Secas

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Conforme a vontade

Assim como o córrego não produz redemoinhos se não encontrar obstáculos, assim a natureza humana como a animal não nota ou aprende se tudo se passa conforme sua vontade. Se notamos, não deve ter ocorrido conforme nossa vontade somente por isto, mas deve ter encontrado um motivo qualquer. Por outro lado, tudo que se opõe a nossa vontade, a entrecruza, se lhe opõe, portanto tudo que é desagradável e dolorido, nós o percebemos diretamente, de imediato e muito claramente. Como nós não sentimos a saúde de todo nosso corpo, mas apenas o pequeno local onde o sapato nos aperta, assim também não pensamos na totalidade de nossos interesses que vai perfeitamente bem, porém em qualquer insignificância que nos aborrece. Nisto se baseia a negatividade do bem-estar e da felicidade, muitas vezes ressaltada por mim. Em oposição à positividade da dor.”
Arthur Schopenhauer, in Parerga e Paralipomena

O amor por entre o verde

Não é sem frequência que, à tarde, chegando à janela, eu vejo um casalzinho de brotos que vem namorar sobre a pequenina ponte de balaustrada branca que há no parque. Ela é uma menina de uns 13 anos, o corpo elástico metido nuns blue jeans e num suéter folgadão, os cabelos puxados para trás num rabinho-de-cavalo que está sempre a balançar para todos os lados; ele, um garoto de, no máximo, 16, esguio, com pastas de cabelo a lhe tombar sobre a testa e um ar de quem descobriu a fórmula da vida. Uma coisa eu lhes asseguro: eles são lindos, e ficam montados, um em frente ao outro, no corrimão da colunata, os joelhos a se tocarem, os rostos a se buscarem a todo momento para pequenos segredos, pequenos carinhos, pequenos beijos. São, na sua extrema juventude, a coisa mais antiga que há no parque, incluindo velhas árvores que por ali espapaçam sua verde sombra; e as momices e brincadeiras que se fazem dariam para escrever todo um tratado sobre a arqueologia do amor, pois têm uma tal ancestralidade que nunca se há de saber a quantos milênios remontam.
Eu os observo por um minuto apenas para não perturbar-lhes os jogos de mão e misteriosos brinquedos mímicos com que se entretêm, pois suspeito de que sabem de tudo o que se passa à sua volta. Às vezes, para descansar da posição, encaixam-se os pescoços e repousam os rostos um sobre o ombro do outro, como dois cavalinhos carinhosos, e eu vejo então os olhos da menina percorrerem vagarosamente as coisas em torno, numa aceitação dos homens, das coisas e da natureza, enquanto os do rapaz mantêm-se fixos, como a perscrutar desígnios. Depois voltam à posição inicial e se olham nos olhos, e ela afasta com a mão os cabelos de sobre a fronte do namorado, para vê-lo melhor e sente-se que eles se amam e dão suspiros de cortar o coração. De repente o menino parte para uma brutalidade qualquer, torce-lhe o pulso até ela dizer-lhe o que ele quer ouvir, e ela agarra-o pelos cabelos, e termina tudo, quando não há passantes, num longo e meticuloso beijo.
Que será, pergunto-me eu em vão, dessas duas crianças que tão cedo começam a praticar os ritos do amor? Prosseguirão se amando, ou de súbito, na sua jovem incontinência, procurarão o contato de outras bocas, de outras mãos, de outros ombros? Quem sabe se amanhã quando eu chegar à janela, não verei um rapazinho moreno em lugar do louro ou uma menina com a cabeleira solta em lugar dessa com os cabelos presos?
E se prosseguirem se amando, pergunto-me novamente em vão, será que um dia se casarão e serão felizes? Quando, satisfeita a sua jovem sexualidade, se olharem nos olhos, será que correrão um para o outro e se darão um grande abraço de ternura? Ou será que se desviarão o olhar, para pensar cada um consigo mesmo que ele não era exatamente aquilo que ela pensava e ela era menos bonita ou inteligente do que ele a tinha imaginado?
É um tal milagre encontrar, nesse infinito labirinto de desenganos amorosos, o ser verdadeiramente amado... Esqueço o casalzinho no parque para perder-me por um momento na observação triste, mas fria, desse estranho baile de desencontros, em que frequentemente aquela que devia ser daquele acaba por bailar com outro porque o esperado nunca chega; e este, no entanto, passou por ela sem que ela o soubesse, suas mãos sem querer se tocaram, eles olharam-se nos olhos por um instante e não se reconheceram.
E é então que esqueço de tudo e vou olhar nos olhos de minha bem-amada como se nunca a tivesse visto antes. É ela, Deus do céu, é ela! Como a encontrei, não sei. Como chegou até aqui, não vi. Mas é ela, eu sei que é ela porque há um rastro de luz quando ela passa; e quando ela me abre os braços eu me crucifico neles banhado em lágrimas de ternura; e sei que mataria friamente quem quer que lhe causasse dano; e gostaria que morrêssemos juntos e fôssemos enterrados de mãos dadas, e nossos olhos indecomponíveis ficassem para sempre abertos mirando muito além das estrelas.
Vinicius de Moraes, in Para viver um grande amor

O guardador de rebanhos - XLIV

Acordo de noite subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez…
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

Companhia

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Minha mãe

Mas Diadorim mais não supriu o que mais não explicava. E, quem sabe para deduzir da conversa, me perguntou: ― Riobaldo, se lembra certo da senhora sua mãe? Me conta o jeito de bondade que era a dela...
Na ação de ouvir, digo ao senhor, tive um menos gosto, na ação da pergunta. Só faço, que refugo, sempre quando outro quer direto saber o que é próprio o meu no meu, ah. Mas desci disso, o minuto, vendo que só mesmo Diadorim era que podia acertar esse tento, em sua amizade delicadeza. Ao que entendi. Assim devia de ser. Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa bondade. E eu nunca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãe era a minha mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especial de minha mãe tinha sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela me fantasiou, fraseou ― só face dum momento ― feito grandeza cantável, feito entre madrugar e manhecer.
...Pois a minha eu não conheci... ― Diadorim prosseguiu no dizer. E disse com curteza simples, igual quisesse falar: barra ― beiras ― cabeceiras... Fosse cego, de nascença.
Por mim, o que pensei, foi: que eu não tive pai; quer dizer isso, pois nem eu nunca soube autorizado o nome dele. Não me envergonho, por ser de escuro nascimento. Órfão de conhecença e de papéis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões. Homem viaja, arrancha, passa! muda de lugar e de mulher, algum filho é o perdurado. Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-o-giro no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas. O senhor vê! o Zé-Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho e habilidoso. Pergunto! ― Zé-Zim, por que é que você não cria galinhas-dangola, como todo o mundo faz? ― Quero criar nada não... ― me deu resposta! ― Eu gosto muito de mudar... Está aí, está com uma mocinha cabocla em casa, dois filhos dela já tem. Belo um dia, ele tora. E assim. Ninguém discrepa. Eu, tantas, mesmo digo. Eu dou proteção. Eu, isto é ― Deus, por baixos permeios... Essa não faltou também à minha mãe, quando eu era menino, no sertãozinho de minha terra ― baixo da ponta da Serra das Maravilhas, no entre essa e a Serra dos Alegres, tapera dum sítio dito do Caramujo, atrás das fontes do Verde, o Verde que verte no Paracatú. Perto de lá tem vila grande ― que se chamou Alegres ― o senhor vá ver. Hoje, mudou de nome, mudaram. Todos os nomes eles vão alterando. E em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro Vila Risonhal O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-Grandel Como é que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado. Lá como quem diz! então alguém havia de renegar o nome de Belém ― de Nosso-Senhor-Jesus-Cristo no presépio, com Nossa Senhora e São José?! Precisava de se ter mais travação. Senhor sabe! Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele... Assim é que digo! eu, que o senhor já viu que tenho retentiva que não falta, recordo tudo da minha meninice. Boa, foi. Me lembro dela com agrado; mas sem saudade. Porque logo sufusa uma aragem dos acasos. Para trás, não há paz. O senhor sabe! a coisa mais alonjada de minha primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homem chamado Gramacêdo... Gente melhor do lugar eram todos dessa família Guedes, Jidião Guedes; quando saíram de lá, nos trouxeram junto, minha mãe e eu. Ficamos existindo em território baixío da Sirga, da outra banda, ali onde o de-Janeiro vai no São Francisco, o senhor sabe. Eu estava com uns treze ou quatorze anos…
De sorte que, do que eu estava contando, ao senhor, uma noite se passou, todo o mundo sonhado satisfeito. Declaro que era em abril, em entrar. Medeiro Vaz, para o que traçava, tinha querido se adiar das restadas chuvas de março ― dia de São José e sua enchente temposa ― para pegar céu perfeito, com os campos ainda subindo verdes, pois visto a gente ia baixar primeiro por campinas de brejais, e daí avançar aquilo que se disse, dêpo-depois. Porque era extraordinária verdade, logo conheci; não achei terrível. Tangemos, esbarrando dois dias no Vespê ― lá se tinha boa cavalaria descansada, outros cavalos sob guarda dum sitiante amigo, Jõe Engrácio, por nome. Nos caminhos ainda se lambuzava muita lama de ôntem. ― Versar viagem a cavalo sem ter estradas ― só dôido é quem faz isso, ou jagunz... ― aquele Jõe Engrácio falou, esse era homem sério trabalhador, mas demais de simplório; e, do que ele falava, ele mesmo logo se ria, fortemente. Mas erro era ― porquanto Medeiro Vaz sempre soube rumo prático, pelo firme. Modo mesmo assim, ele Jõe Engrácio reparou na quantidade de comidas e mantimentos que a gente tinha reunido, em tantos burros cargueiros: e que era despropósito, por amor daquela fartura ― as carnes e farinhas, e rapadura, nem faltava sal, nem café. De tudo. E ele, vendo o que via, perguntou aonde se ia, dando dizendo de querer ir junto. ― Bobou? ― foi só o que MedeiroVaz indeferiu. ― Bobei, chefe. Perdão peço... ― Jõe Engrácio reverenciou.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Dois tipos de ideias

Há dois tipos de ideias: ideias inertes e ideias com poder gravitacional. As ideias inertes, como o nome está dizendo, são destituídas de poder. Estão onde estão e isso é tudo. Como pedras. A maior parte das ideias que se ensinam nas escolas pertence a essa categoria. Um bom exemplo se encontra naquele parágrafo do livro de biologia que minha neta tinha de aprender. Via de regra, essas ideias são logo esquecidas. A memória as deleta e joga na lixeira. Algumas permanecem na memória consciente como lixo. Por exemplo, aprendi no curso de admissão que a ilha de Tupinambarana é a segunda maior ilha fluvial do mundo. Essa informação não faz nada com a minha cabeça. Note-se que as ideias inertes, frequentemente, possuem os critérios cartesianos de clareza e distinção. As ideias com poder gravitacional são aquelas que têm o poder de chamar outras. Elas nunca estão sozinhas. São sóis do sistema solar que é a nossa mente. Elas produzem big bangs na cabeça dos quais nascem universos. É assim que acontecem a poesia, a literatura, a música: uma única ideia explode e eis a obra!
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

RZO e Sabotage - NEURAL

Sociedade condenada

Quando você perceber que, para produzir, precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e que as leis não nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada, e a honestidade se converte em auto-sacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada.”
Ayn Rand

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Avançar para o começo

Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano.
Manoel de Barros

Do gigantismo

Olha o que aconteceu com os Grandes Impérios! Por eles se vê que a mania de grandeza é sempre fatal.
E espia só os iguanodontes, esses pesadelos ridículos...
Se fossem do tamanho de lagartixas, existiriam até hoje.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

O mendigo Sexta-Feira jogando no Mundial

Lhe concordo, doutor: sou eu que invento minhas doenças. Mas eu, velho e sozinho, o que posso fazer? Estar doente é minha única maneira de provar que estou vivo. É por isso que frequento o hospital, vezes e vezes, a exibir minhas maleitas. Só nesses momentos, doutor, eu sou atendido. Mal atendido, quase sempre. Mas nessa infinita fila de espera, me vem a ilusão de me vizinhar do mundo. Os doentes são a minha família, o hospital é o meu tecto e o senhor é o meu pai, pai de todos meus pais.
Desta feita, porém, é diferente. Pois eu, de nome posto de Sexta-Feira, me apresento hoje com séria e verídica queixa. Venho para aqui todo desclaviculado, uma pancada quase me desombrou. Aconteceu quando assistia ao jogo do Mundial de Futebol. Desde há um tempo, ando a espreitar na montra do Dubai Shoping, ali na esquina da Avenida Direita. É uma loja de tevês, deixam aquilo ligado na montra para os pagantes contraírem ganas de comprar. Sento-me no passeio, tenho meu lugar cativo lá. Junto comigo se sentam esses mendigos que todas sexta-feiras invadem a cidade à cata de esmola dos muçulmanos.
Lembra? Foi assim que ganhei meu nome de dia da semana. Veja bem: eu, que sempre fui inútil, acabei adquirindo nome de dia útil.
É ali no passeio que assisto futebol, ali alcanço ilusão de ter familiares. O passeio é um corredor da enfermaria. Todos nós, os indigentes ali alinhados, ganhamos um tecto nesse momento. Um tecto que nos cobre neste e noutros continentes.
Só há ali um no entanto, doutor. É que sou atacado de um sentimento muito ulceroso enquanto os meus olhos apanham boleia para a Coreia do Sul. O que me inveja não são esses jovens, esses finta-bolistas, todos cheios de vigor. O que eu invejo, doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a exibir bem alto as suas queixas. A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras pára perante a dor falsa de um futebolista. As minhas mágoas que são tantas e tão verdadeiras e nenhum árbitro manda parar a vida para me atender, reboladinho que estou por dentro, rasteirado que fui pelos outros. Se a vida fosse um relvado, quantos penalties eu já tinha marcado contra o destino? Eu sei, doutor, lhe estou roubando o tempo. Vou direto no assunto do meu ombro.
Pois aconteceu o seguinte: o dono da loja deu ontem ordem para limpar o passeio. Não queria ali mendigos e vadios. Que aquilo afastava a clientela e ele não estava para gastar ecrã em olho de pobre. Recusei sair, doutor. O passeio é pertença de um alguém? Para me retirarem dali foi preciso chamar as forças policiais. Vieram e me bateram, já eu estendido no chão e eles me ponteavam, com raiva como se não me batessem em mim, mas na sua própria pobreza. Proclamei que hoje voltaria mais outra vez, para assistir ao jogo. É que jogam os africanos e eles estão a contar comigo lá na assistência. Não passam sem Sexta-Feira. O dono da loja me ameaçou que, caso eu insistisse, então é que seria um festival de porrada. O que eu lhe peço, doutor, é que intervenha por mim, por nós os espectadores do passeio da Avenida Direita. O proprietário do Dubai Shoping não vai dizer que não, se for um pedido vindo de si, doutor.
Pois eu, conforme se vê, vim ao hospital não por artimanha, mas por desgraça real.
O doutor me olha, desconfiado, enquanto me vai espreitando os traumatombos.
Contrariado, ele lá me coloca sob o olho de uma máquina radiográfica. Até me atrapalho com tanta deferência. Até hoje, só a polícia me fotografou. Se eu soubesse até me tinha preparado, doutor, escovado a dentuça e penteado a piolheira.
Quando me mostram a chapa, porém, me assalta a vergonha de revelar as minhas pobres e desprevenidas intimidades ósseas. Quase eu grito: esconda isso, doutor, não me exiba assim às vistas públicas. Até porque me passa pela cabeça um desconfio: aqueles interiores não eram os meus. E o doutor não fique espinhado! Mas aquilo não são ossos: são ossadas. Eu não posso estar assim tão cheio de esqueleto. Aquela fotografia é de chamar saliva a hienas. Sem ofensa, doutor, mas eu peço que se deite fogo nessa película. E me deixe assim, nem vale a pena enrolar-me as ligaduras, aplicar-me as pomadas. Porque eu já vou indo, com as pressas. Não esqueça de telefonar ao dono da loja, doutor. Não esqueça, por favor. Foi por esse pedido que eu vim. Não foi pelo ferimento.
E logo me desando, já as ruas desaguam. Chego à loja dos televisores e me sento entre a mendigagem. Veja bem: tinham-me guardado o lugar em meu respeito. Isso me comove.
Afinal, o doutor sempre telefonou, sempre se lembrou do meu pobre pedido. Ainda há gente neste mundo! Meus olhos brilham olhando não o jogo, mas as pessoas que olhavam a montra. Quem disse que a televisão não fabrica as atuais magias? O que eu vi num adocicar de visão foi isto, sem mais nem menos: eu e os mendigos de sexta-feira estamos no mundial, formamos equipa com fardamento brilhoso. E o doutor é o treinador. E jogamos, neste momento preciso. Eu sou o extremo esquerdo e vou dominando o esférico, que é um modo de dominar o mundo. Por trás, os aplausos da multidão. De repente, sofro carga do defesa contrário. Jogo perigoso, reclamam as vozes aos milhares. Sim, um cartão amarelo, brada o doutor. Porém, o defesa continua a agressão, cresce o protesto da multidão. Isso, senhor árbitro, cartão vermelho! Boa decisão! Haja no jogo a justiça que nos falta na Vida.
Afinal, o vermelho é do cartão ou será o meu próprio sangue? Não há dúvida: necessito de assistência, lesionado sem fingimento. Suspendessem o jogo, expulsassem o agressor das quatro linhas. Surpresa minha – o próprio árbitro é quem me passa a agredir.
Nesse momento, me assalta a sensação de um despertar como se eu saísse da televisão para o passeio. Ainda vejo a matraca do polícia descendo sobre a minha cabeça. Então, as luzes do estádio se apagam.
Mia Couto, in O fio das missangas

Henfil: sempre atual


O imortal é esta vida

Ensino que a vida jamais deveria ser modificada ou esmagada devido à promessa de outro tipo de vida futura. O imortal é esta vida, este momento. Não existe uma vida após a morte, uma meta para a qual esta aponta, um tribunal ou julgamento apocalíptico. Este momento existe para sempre e você sozinho é a plateia sua”.
Irvin D. Yalom, in Quando Nietzsche Chorou

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Matemos os pobres!

Fazia quinze dias que eu estava exilado no meu quarto, cercado de livros em voga na época, isto é, há dezesseis ou dezessete anos atrás. Refiro-me aos livros que tratam da arte de tornar os povos felizes, sábios e ricos, em vinte e quatro horas. Eu digerira, ou melhor, engolira todas as elucubrações de todos esses empresários da felicidade pública, que aconselham os pobres a se tornarem escravos, e de todos os que procuram convencê-los de que são reis destronados. Não será de admirar que eu estivesse, então, num estado de espírito que se aproximava da vertigem ou da estupidez.
Confinado no fundo do meu intelecto, apenas sentia o gérmen obscuro de uma ideia superior a todas as fórmulas de boa mulher, cujo dicionário eu acabara de percorrer. Mas, era simplesmente a ideia de uma ideia, alguma coisa de infinitamente vago.
Afinal, saí com uma grande sede. O gosto apaixonado das más leituras engendra uma necessidade proporcional do ar livre e dos refrescos.
Ao entrar num bar, um mendigo estendeu-me o chapéu, lançando-me um desses olhares inesquecíveis que seriam capazes de derrubar os tronos, se o espírito pudesse abalar a matéria e se os olhos de um magnetizador lograssem amadurecer as uvas.
Ao mesmo tempo, ouvi uma voz cochichar ao meu ouvido, uma voz que reconheci bem: era a voz de um Anjo bom, ou de um bom Demônio, que me acompanha por toda parte. Se Sócrates tinha o seu bom Demônio, porque não teria eu o meu Anjo bom, e porque não teria a honra, como Sócrates, de obter o meu título de loucura, assinado pelo sutil Lelut e pelo circunspecto Baillarger? Entre o Demônio de Sócrates e o meu, existe uma diferença: é que o de Sócrates só se manifestava para evitar, impedir, avisar, ao passo que o meu se digna aconselhar, sugerir, persuadir. O pobre Sócrates tinha apenas um demônio proibidor, e o meu é um grande afirmador, um Demônio de ação, ou de combate.
Mas, aquela voz murmurava-me o seguinte: — Só é igual de outrem quem o prova, e só é digno de liberdade quem sabe conquistá-la.
Imediatamente, saltei sobre o mendigo. Com um único soco, tapei-lhe um olho, que ficou, num segundo, grande como uma bola. Parti uma unha quebrando-lhe os dentes e, como não me sentisse bastante forte, por ter nascido franzino e ser pouco exercitado no box, para liquidar rapidamente o velhote, peguei-o com uma das mãos pela gola do casaco e, com a outra, apertei-lhe a garganta e pus-me a sacudir vigorosamente a cabeça contra um muro. Devo confessar que tomara a preocupação de inspecionar os arredores com um rápido olhar e que verificara que, naquele arrabalde deserto, estaria muito tempo fora do alcance de algum agente de polícia.
Depois, com um pontapé nas costas, bastante violento para quebrar-lhe as omoplatas, joguei por terra o enfraquecido sexagenário e, empunhando um grosso galho de árvore que estava no chão, bati-lhe com a energia dos cozinheiros, quando querem amolecer um bife.
De repente, — oh milagre! Oh satisfação do filósofo que verifica a excelência de sua teoria! — vi aquela velha carcaça voltar-se, endireitar-se com uma energia que eu jamais teria suspeitado numa máquina tão singularmente desarranjada. E, com um olhar de ódio que me pareceu de bom augúrio, o decrépito vagabundo atirou-se sobre mim, contundiu-me os dois olhos, quebrou-me quatro dentes e, com o mesmo galho de árvore, me bateu até mais não poder. Com minha enérgica medicação, eu lhe dera o orgulho e a vida.
Esforcei-me, então, por lhe fazer compreender que considerava a discussão acabada e, levantando-me com a satisfação de um sofista do Pórtico, disse-lhe o seguinte: — Cavalheiro, o sr. é meu igual! Queira dar-me a honra de partilhar comigo a minha bolsa. E, se é realmente filantropo, lembre-se de que é preciso aplicar a todos os seus confrades, quando lhe pedirem uma esmola, a teoria que eu tive o pesar de pôr à prova em suas costas.
Ele jurou que tinha compreendido minha teoria e que obedeceria ao meu conselho.
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa