quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Matemos os pobres!

Fazia quinze dias que eu estava exilado no meu quarto, cercado de livros em voga na época, isto é, há dezesseis ou dezessete anos atrás. Refiro-me aos livros que tratam da arte de tornar os povos felizes, sábios e ricos, em vinte e quatro horas. Eu digerira, ou melhor, engolira todas as elucubrações de todos esses empresários da felicidade pública, que aconselham os pobres a se tornarem escravos, e de todos os que procuram convencê-los de que são reis destronados. Não será de admirar que eu estivesse, então, num estado de espírito que se aproximava da vertigem ou da estupidez.
Confinado no fundo do meu intelecto, apenas sentia o gérmen obscuro de uma ideia superior a todas as fórmulas de boa mulher, cujo dicionário eu acabara de percorrer. Mas, era simplesmente a ideia de uma ideia, alguma coisa de infinitamente vago.
Afinal, saí com uma grande sede. O gosto apaixonado das más leituras engendra uma necessidade proporcional do ar livre e dos refrescos.
Ao entrar num bar, um mendigo estendeu-me o chapéu, lançando-me um desses olhares inesquecíveis que seriam capazes de derrubar os tronos, se o espírito pudesse abalar a matéria e se os olhos de um magnetizador lograssem amadurecer as uvas.
Ao mesmo tempo, ouvi uma voz cochichar ao meu ouvido, uma voz que reconheci bem: era a voz de um Anjo bom, ou de um bom Demônio, que me acompanha por toda parte. Se Sócrates tinha o seu bom Demônio, porque não teria eu o meu Anjo bom, e porque não teria a honra, como Sócrates, de obter o meu título de loucura, assinado pelo sutil Lelut e pelo circunspecto Baillarger? Entre o Demônio de Sócrates e o meu, existe uma diferença: é que o de Sócrates só se manifestava para evitar, impedir, avisar, ao passo que o meu se digna aconselhar, sugerir, persuadir. O pobre Sócrates tinha apenas um demônio proibidor, e o meu é um grande afirmador, um Demônio de ação, ou de combate.
Mas, aquela voz murmurava-me o seguinte: — Só é igual de outrem quem o prova, e só é digno de liberdade quem sabe conquistá-la.
Imediatamente, saltei sobre o mendigo. Com um único soco, tapei-lhe um olho, que ficou, num segundo, grande como uma bola. Parti uma unha quebrando-lhe os dentes e, como não me sentisse bastante forte, por ter nascido franzino e ser pouco exercitado no box, para liquidar rapidamente o velhote, peguei-o com uma das mãos pela gola do casaco e, com a outra, apertei-lhe a garganta e pus-me a sacudir vigorosamente a cabeça contra um muro. Devo confessar que tomara a preocupação de inspecionar os arredores com um rápido olhar e que verificara que, naquele arrabalde deserto, estaria muito tempo fora do alcance de algum agente de polícia.
Depois, com um pontapé nas costas, bastante violento para quebrar-lhe as omoplatas, joguei por terra o enfraquecido sexagenário e, empunhando um grosso galho de árvore que estava no chão, bati-lhe com a energia dos cozinheiros, quando querem amolecer um bife.
De repente, — oh milagre! Oh satisfação do filósofo que verifica a excelência de sua teoria! — vi aquela velha carcaça voltar-se, endireitar-se com uma energia que eu jamais teria suspeitado numa máquina tão singularmente desarranjada. E, com um olhar de ódio que me pareceu de bom augúrio, o decrépito vagabundo atirou-se sobre mim, contundiu-me os dois olhos, quebrou-me quatro dentes e, com o mesmo galho de árvore, me bateu até mais não poder. Com minha enérgica medicação, eu lhe dera o orgulho e a vida.
Esforcei-me, então, por lhe fazer compreender que considerava a discussão acabada e, levantando-me com a satisfação de um sofista do Pórtico, disse-lhe o seguinte: — Cavalheiro, o sr. é meu igual! Queira dar-me a honra de partilhar comigo a minha bolsa. E, se é realmente filantropo, lembre-se de que é preciso aplicar a todos os seus confrades, quando lhe pedirem uma esmola, a teoria que eu tive o pesar de pôr à prova em suas costas.
Ele jurou que tinha compreendido minha teoria e que obedeceria ao meu conselho.
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

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