Desta
lenta gestação, vão nascer inesperados frutos. Não terminou a
aventura da qual participei apaixonadamente: a dúvida, os reveses, o
aborrecimento, marcar passo, em seguida a luz entrevista, uma
esperança, uma hipótese confirmada. Depois de semanas e de meses de
ansiosa paciência, a embriaguez do êxito. Não compreendia bem os
trabalhos de André mas minha confiança cabeçuda fortalecia a sua.
Ela permanece intata. Mas por que não posso mais transmiti-la? Eu me
recuso a crer que não verei jamais brilhar em seus olhos a alegria
febril da descoberta.
Disse:
— Nada
prova que você não terá uma segunda inspiração.
— Não.
Em minha idade temos hábitos que freiam a invenção. Cada ano que
passa fico mais ignorante.
—
Tornaremos a tocar no assunto daqui a dez
anos. Aos setenta anos, talvez, você fará a sua maior descoberta.
— Isso
é bem o seu otimismo! Garanto-lhe que não.
— É
bem o seu pessimismo!
Rimos.
Entretanto, não há do que rir. O derrotismo de André não tem
fundamento, desta feita ele carece de rigor. Sim, Freud escreveu em
uma de suas cartas que numa certa idade não se inventa mais nada e
isso é desolador. Mas ele era, então, muito mais velho que André.
Não importa. Injustificada embora, essa melancolia não me
entristece menos. Se André se entrega é que, de um modo geral, ele
está em crise. Surpreendo-me, mas o fato é que ele não se resigna
a varar os sessenta anos. A mim, mil coisas me divertem ainda, a ele
não. Antigamente, tudo o interessava, agora é um problema levá-lo
a ver um filme, a uma exposição, à casa de amigos.
— Que
pena você não gostar mais de passear — disse. — Os dias andam
tão bonitos! Pensava há pouquinho que gostaria muito de voltar a
Milly e às florestas de Fontainebleau. — Você é espantosa —
disse-me sorrindo.
—
Conhece a Europa inteira e deseja rever
os arrabaldes de Paris!
— Por
que não? A colegial de Champeaux não é menos bela porque eu subi à
Acrópole.
— Pois
seja. Assim que o laboratório estiver fechado, em quatro ou cinco
dias, eu lhe prometo uma longa vagabundagem de carro.
Teremos
tempo de fazer mais de uma pois que ficaremos em Paris até o início
de agosto. Mas terá ele vontade? Perguntei:
—
Amanhã é domingo. Você estará livre?
— Não,
infelizmente! Você bem sabe da existência desse encontro com a
imprensa sobre o apartheid. Eles me trouxeram uma porção de
documentos que ainda não examinei.
Prisioneiros
políticos espanhóis, detidos portugueses, iranianos perseguidos,
rebeldes congoleses, guerrilheiros venezuelanos, peruanos,
colombianos, ele está sempre pronto a ajudá-los na medida de suas
forças. Reuniões, manifestos, meetings, tratados,
delegações, nada ele recusa.
— Você
se dá demais!
— Por
que demais? Que outra coisa fazer?
Que
fazer, mesmo, quando o mundo se descoloriu? Só resta matar o tempo.
Eu também atravessei um mau período há dez anos. Estava aborrecida
com meu corpo, Filipe tornara-se adulto. Após o sucesso de meu livro
sobre Rousseau sentia-me vazia. Envelhecer me agoniava. Depois,
iniciei um estudo sobre Montesquieu, consegui que Filipe passasse nos
exames e começasse sua tese. Confiaram-me cursos na Sorbonne que me
interessaram mais que meus problemas. Resignei-me a meu corpo.
Pareceu-me que ressuscitava. E hoje, se André não tivesse uma
consciência tão aguda de sua idade, eu esqueceria a minha.
Ele
tornou a sair e eu fiquei bastante tempo no terraço. Vi voltear
contra o fundo azul do céu uma grua cor de mínio. Segui com os
olhos um inseto negro que fazia no ar um sulco espumoso e gelado. A
perpétua juventude do mundo me deixa sem ar. Coisas que eu amei
desapareceram. Muitas outras me foram dadas. Ontem à tarde, eu subia
o Bulevar Raspail e o céu estava carmesim. Pareceu-me caminhar num
planeta estrangeiro onde a relva fosse violeta, a terra azul. As
árvores abrigavam o avermelhar de um anúncio a néon. Andersen aos
sessenta anos maravilhava-se por atravessar a Suécia em menos de
vinte e quatro horas quando em sua juventude a viagem durava uma
semana. Conheci deslumbramentos semelhantes: Moscou a três horas e
meia de Paris!
Simone
de Beauvoir, in A mulher desiludida
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