segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Minha mãe

Mas Diadorim mais não supriu o que mais não explicava. E, quem sabe para deduzir da conversa, me perguntou: ― Riobaldo, se lembra certo da senhora sua mãe? Me conta o jeito de bondade que era a dela...
Na ação de ouvir, digo ao senhor, tive um menos gosto, na ação da pergunta. Só faço, que refugo, sempre quando outro quer direto saber o que é próprio o meu no meu, ah. Mas desci disso, o minuto, vendo que só mesmo Diadorim era que podia acertar esse tento, em sua amizade delicadeza. Ao que entendi. Assim devia de ser. Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa bondade. E eu nunca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãe era a minha mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especial de minha mãe tinha sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela me fantasiou, fraseou ― só face dum momento ― feito grandeza cantável, feito entre madrugar e manhecer.
...Pois a minha eu não conheci... ― Diadorim prosseguiu no dizer. E disse com curteza simples, igual quisesse falar: barra ― beiras ― cabeceiras... Fosse cego, de nascença.
Por mim, o que pensei, foi: que eu não tive pai; quer dizer isso, pois nem eu nunca soube autorizado o nome dele. Não me envergonho, por ser de escuro nascimento. Órfão de conhecença e de papéis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões. Homem viaja, arrancha, passa! muda de lugar e de mulher, algum filho é o perdurado. Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-o-giro no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas. O senhor vê! o Zé-Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho e habilidoso. Pergunto! ― Zé-Zim, por que é que você não cria galinhas-dangola, como todo o mundo faz? ― Quero criar nada não... ― me deu resposta! ― Eu gosto muito de mudar... Está aí, está com uma mocinha cabocla em casa, dois filhos dela já tem. Belo um dia, ele tora. E assim. Ninguém discrepa. Eu, tantas, mesmo digo. Eu dou proteção. Eu, isto é ― Deus, por baixos permeios... Essa não faltou também à minha mãe, quando eu era menino, no sertãozinho de minha terra ― baixo da ponta da Serra das Maravilhas, no entre essa e a Serra dos Alegres, tapera dum sítio dito do Caramujo, atrás das fontes do Verde, o Verde que verte no Paracatú. Perto de lá tem vila grande ― que se chamou Alegres ― o senhor vá ver. Hoje, mudou de nome, mudaram. Todos os nomes eles vão alterando. E em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro Vila Risonhal O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-Grandel Como é que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado. Lá como quem diz! então alguém havia de renegar o nome de Belém ― de Nosso-Senhor-Jesus-Cristo no presépio, com Nossa Senhora e São José?! Precisava de se ter mais travação. Senhor sabe! Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele... Assim é que digo! eu, que o senhor já viu que tenho retentiva que não falta, recordo tudo da minha meninice. Boa, foi. Me lembro dela com agrado; mas sem saudade. Porque logo sufusa uma aragem dos acasos. Para trás, não há paz. O senhor sabe! a coisa mais alonjada de minha primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homem chamado Gramacêdo... Gente melhor do lugar eram todos dessa família Guedes, Jidião Guedes; quando saíram de lá, nos trouxeram junto, minha mãe e eu. Ficamos existindo em território baixío da Sirga, da outra banda, ali onde o de-Janeiro vai no São Francisco, o senhor sabe. Eu estava com uns treze ou quatorze anos…
De sorte que, do que eu estava contando, ao senhor, uma noite se passou, todo o mundo sonhado satisfeito. Declaro que era em abril, em entrar. Medeiro Vaz, para o que traçava, tinha querido se adiar das restadas chuvas de março ― dia de São José e sua enchente temposa ― para pegar céu perfeito, com os campos ainda subindo verdes, pois visto a gente ia baixar primeiro por campinas de brejais, e daí avançar aquilo que se disse, dêpo-depois. Porque era extraordinária verdade, logo conheci; não achei terrível. Tangemos, esbarrando dois dias no Vespê ― lá se tinha boa cavalaria descansada, outros cavalos sob guarda dum sitiante amigo, Jõe Engrácio, por nome. Nos caminhos ainda se lambuzava muita lama de ôntem. ― Versar viagem a cavalo sem ter estradas ― só dôido é quem faz isso, ou jagunz... ― aquele Jõe Engrácio falou, esse era homem sério trabalhador, mas demais de simplório; e, do que ele falava, ele mesmo logo se ria, fortemente. Mas erro era ― porquanto Medeiro Vaz sempre soube rumo prático, pelo firme. Modo mesmo assim, ele Jõe Engrácio reparou na quantidade de comidas e mantimentos que a gente tinha reunido, em tantos burros cargueiros: e que era despropósito, por amor daquela fartura ― as carnes e farinhas, e rapadura, nem faltava sal, nem café. De tudo. E ele, vendo o que via, perguntou aonde se ia, dando dizendo de querer ir junto. ― Bobou? ― foi só o que MedeiroVaz indeferiu. ― Bobei, chefe. Perdão peço... ― Jõe Engrácio reverenciou.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Nenhum comentário:

Postar um comentário