Lhe
concordo, doutor: sou eu que invento minhas doenças. Mas eu, velho e
sozinho, o que posso fazer? Estar doente é minha única maneira de
provar que estou vivo. É por isso que frequento o hospital, vezes e
vezes, a exibir minhas maleitas. Só nesses momentos, doutor, eu sou
atendido. Mal atendido, quase sempre. Mas nessa infinita fila de
espera, me vem a ilusão de me vizinhar do mundo. Os doentes são a
minha família, o hospital é o meu tecto e o senhor é o meu pai,
pai de todos meus pais.
Desta
feita, porém, é diferente. Pois eu, de nome posto de Sexta-Feira,
me apresento hoje com séria e verídica queixa. Venho para aqui todo
desclaviculado, uma pancada quase me desombrou. Aconteceu quando
assistia ao jogo do Mundial de Futebol. Desde há um tempo, ando a
espreitar na montra do Dubai Shoping, ali na esquina da Avenida
Direita. É uma loja de tevês, deixam aquilo ligado na montra para
os pagantes contraírem ganas de comprar. Sento-me no passeio, tenho
meu lugar cativo lá. Junto comigo se sentam esses mendigos que todas
sexta-feiras invadem a cidade à cata de esmola dos muçulmanos.
Lembra?
Foi assim que ganhei meu nome de dia da semana. Veja bem: eu, que
sempre fui inútil, acabei adquirindo nome de dia útil.
É
ali no passeio que assisto futebol, ali alcanço ilusão de ter
familiares. O passeio é um corredor da enfermaria. Todos nós, os
indigentes ali alinhados, ganhamos um tecto nesse momento. Um tecto
que nos cobre neste e noutros continentes.
Só
há ali um no entanto, doutor. É que sou atacado de um sentimento
muito ulceroso enquanto os meus olhos apanham boleia para a Coreia do
Sul. O que me inveja não são esses jovens, esses finta-bolistas,
todos cheios de vigor. O que eu invejo, doutor, é quando o jogador
cai no chão e se enrola e rebola a exibir bem alto as suas queixas.
A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras
pára perante a dor falsa de um futebolista. As minhas mágoas que
são tantas e tão verdadeiras e nenhum árbitro manda parar a vida
para me atender, reboladinho que estou por dentro, rasteirado que fui
pelos outros. Se a vida fosse um relvado, quantos penalties eu já
tinha marcado contra o destino? Eu sei, doutor, lhe estou roubando o
tempo. Vou direto no assunto do meu ombro.
Pois
aconteceu o seguinte: o dono da loja deu ontem ordem para limpar o
passeio. Não queria ali mendigos e vadios. Que aquilo afastava a
clientela e ele não estava para gastar ecrã em olho de pobre.
Recusei sair, doutor. O passeio é pertença de um alguém? Para me
retirarem dali foi preciso chamar as forças policiais. Vieram e me
bateram, já eu estendido no chão e eles me ponteavam, com raiva
como se não me batessem em mim, mas na sua própria pobreza.
Proclamei que hoje voltaria mais outra vez, para assistir ao jogo. É
que jogam os africanos e eles estão a contar comigo lá na
assistência. Não passam sem Sexta-Feira. O dono da loja me ameaçou
que, caso eu insistisse, então é que seria um festival de porrada.
O que eu lhe peço, doutor, é que intervenha por mim, por nós os
espectadores do passeio da Avenida Direita. O proprietário do Dubai
Shoping não vai dizer que não, se for um pedido vindo de si,
doutor.
Pois
eu, conforme se vê, vim ao hospital não por artimanha, mas por
desgraça real.
O
doutor me olha, desconfiado, enquanto me vai espreitando os
traumatombos.
Contrariado,
ele lá me coloca sob o olho de uma máquina radiográfica. Até me
atrapalho com tanta deferência. Até hoje, só a polícia me
fotografou. Se eu soubesse até me tinha preparado, doutor, escovado
a dentuça e penteado a piolheira.
Quando
me mostram a chapa, porém, me assalta a vergonha de revelar as
minhas pobres e desprevenidas intimidades ósseas. Quase eu grito:
esconda isso, doutor, não me exiba assim às vistas públicas. Até
porque me passa pela cabeça um desconfio: aqueles interiores não
eram os meus. E o doutor não fique espinhado! Mas aquilo não são
ossos: são ossadas. Eu não posso estar assim tão cheio de
esqueleto. Aquela fotografia é de chamar saliva a hienas. Sem
ofensa, doutor, mas eu peço que se deite fogo nessa película. E me
deixe assim, nem vale a pena enrolar-me as ligaduras, aplicar-me as
pomadas. Porque eu já vou indo, com as pressas. Não esqueça de
telefonar ao dono da loja, doutor. Não esqueça, por favor. Foi por
esse pedido que eu vim. Não foi pelo ferimento.
E
logo me desando, já as ruas desaguam. Chego à loja dos televisores
e me sento entre a mendigagem. Veja bem: tinham-me guardado o lugar
em meu respeito. Isso me comove.
Afinal,
o doutor sempre telefonou, sempre se lembrou do meu pobre pedido.
Ainda há gente neste mundo! Meus olhos brilham olhando não o jogo,
mas as pessoas que olhavam a montra. Quem disse que a televisão não
fabrica as atuais magias? O que eu vi num adocicar de visão foi
isto, sem mais nem menos: eu e os mendigos de sexta-feira estamos no
mundial, formamos equipa com fardamento brilhoso. E o doutor é o
treinador. E jogamos, neste momento preciso. Eu sou o extremo
esquerdo e vou dominando o esférico, que é um modo de dominar o
mundo. Por trás, os aplausos da multidão. De repente, sofro carga
do defesa contrário. Jogo perigoso, reclamam as vozes aos milhares.
Sim, um cartão amarelo, brada o doutor. Porém, o defesa continua a
agressão, cresce o protesto da multidão. Isso, senhor árbitro,
cartão vermelho! Boa decisão! Haja no jogo a justiça que nos falta
na Vida.
Afinal,
o vermelho é do cartão ou será o meu próprio sangue? Não há
dúvida: necessito de assistência, lesionado sem fingimento.
Suspendessem o jogo, expulsassem o agressor das quatro linhas.
Surpresa minha – o próprio árbitro é quem me passa a agredir.
Nesse
momento, me assalta a sensação de um despertar como se eu saísse
da televisão para o passeio. Ainda vejo a matraca do polícia
descendo sobre a minha cabeça. Então, as luzes do estádio se
apagam.
Mia
Couto, in O fio das missangas
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