Houve uma grande comoção em casa com o
primeiro telefonema da Duda, a pagar, de Paris. O primeiro telefonema
desde que ela embarcara, mochila nas costas (a Duda, que em casa não
levantava nem a sua roupa do chão!), na Varig, contra a vontade do
pai e da mãe. Você nunca saiu de casa sozinha, minha filha! Você
não sabe uma palavra de francês! Vou e pronto.
E fora. E agora, depois de semanas de
aflição, de “onde anda essa menina?”, de “você não devia
ter deixado, Eurico!”, vinha o primeiro sinal de vida. Da Duda, de
Paris.
- Minha filha...
- Não posso falar muito, mãe. Como é
que se faz café?
- O quê?
- Café, café. Como é que se faz?
- Não sei, minha filha. Com água,
com... Mas onde é que você está, Duda?
- Estou trabalhando de “au pair” num
apartamento. Ih, não posso falar mais. Eles estão chegando. Depois
eu ligo. Tchau!
O pai quis saber detalhes. Onde ela
estava morando?
- Falou alguma coisa sobre “opér”.
- Deve ser “operá”. O francês dela
não melhorou...
Dias depois, outra ligação. Apressada
como a primeira. A Duda queria saber como se mudava fralda. Por um
momento, a mãe teve um pensamento louco.
A Duda teve um filho de um francês! Não,
que bobagem, não dava tempo.
Por que você quer saber, minha filha?
- Rápido, mãe. A criança tá borrada!
Ninguém em casa podia imaginar a Duda
trocando fraldas. Ela, que tinha nojo quando o irmão menor
espirrava.
- Pobre criança... - comentou o pai.
Finalmente, um telefonema sem pressa da
Duda. Os patrões tinham saído, o cagão estava dormindo, ela podia
contar o que estava lhe acontecendo. “Au pair” era empregada,
faz-tudo. E ela fazia tudo na casa. A princípio tivera alguma
dificuldade com os aparelhos. Nunca notara antes, por exemplo, que o
aspirador de pó precisava ser ligado numa tomada. Mas agora estava
uma opér “formidable”. E Duda enfatizara a pronúncia francesa.
“Formidable.” Os patrões a adoravam. E ela prometera que na
semana seguinte prepararia uma autêntica feijoada brasileira para
eles e alguns amigos.
- Mas, Duda, você sabe fazer feijoada?
- Era sobre isso que eu queria falar com
você, mãe. Pra começar, como é que se faz arroz?
A mãe mal pôde esperar o telefonema que
a Duda lhe prometera, no dia seguinte ao da feijoada.
- Como foi, minha filha. Conta!
- Formidable! Um sucesso. Para o próximo
jantar, vou preparar aquela sua moqueca.
- Pegue o peixe... - começou a mãe,
animadíssima.
A moqueca também foi um sucesso. Duda
contou que uma das amigas da sua patroa fora atrás dela, na cozinha,
e cochichara uma proposta no seu ouvido: o dobro do que ela ganhava
ali para ser opér na sua casa. Pelo menos fora isso que ela
entendera. Mas Duda não pretendia deixar seus patrões. Eles eram
uns amores. Iam ajudá-la a regularizar a sua situação na França.
Daquele jeito, disse Duda a sua mãe, ela
tão cedo não voltava ao Brasil.
É preciso compreender, portanto, o que
se passava no coração da mãe quando a Duda telefonou para saber
como era a sua receita de suflê de chuchu. Quase não usavam o
chuchu na França, e a Duda dissera a seus patrões que suflê de
chuchu era um prato típico brasileiro e sua receita era passada de
geração a geração na floresta onde o chuchu, inclusive, era
considerado afrodisíaco. Coração de mãe é um pouco como as
Caraíbas.
Ventos se cruzam, correntes se chocam, e
uma área de tumultos naturais. A própria dona daquele coração não
saberia descrever os vários impulsos que o percorreram no segundo
que precedeu sua decisão de dar à filha a receita errada, a receita
de um fracasso. De um lado o desejo de que a filha fizesse bonito e
também - por que não admitir? - uma certa curiosidade com a
repercussão do seu suflê de chuchu na terra, afinal, dos suflês,
do outro o medo de que a filha nunca mais voltasse, que a Duda se
consagrasse como a melhor opér da Europa e não voltasse nunca mais.
Todo o destino num suflê.
A mãe deu a receita errada. Com o
coração apertado. Proporções grotescamente deformadas. A receita
de uma bomba.
Passaram-se dias, semanas, sem uma
notícia da Duda. A mãe imaginando o pior. Casais intoxicados.
Jantar em Paris acaba no hospital. Brasileira presa.
Prato selvagem enluta famílias, receita
infernal atribuída à mãe de trabalhadora clandestina, Interpol
mobilizada. Ou imaginando a chegada de Duda em casa, desiludida com
sua aventura parisiense, sua carreira de opér encerrada sem glória,
mas pronta para tentar outra vez o vestibular.
O que veio foi outro telefonema da Duda,
um mês depois. Apressada de novo. No fundo, o som de bongos e
maracas.
- Mãe, pergunta pro pai como é a letra
de Cubanacã!
- Minha filha...
- Pergunta, é do tempo dele. Rápido que
eu preciso pro meu número.
Também houve um certo conflito no
coração do pai, quando ouviu a pergunta. Arrá, ela sempre fizera
pouco do seu gosto musical e agora precisava dele. Mas o segundo
impulso venceu:
- Diz pra essa menina voltar pra casa.
JÁ!
Luís Fernando Veríssimo, in
Comédias para se ler na escola
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