O
menino contava e recontava.
Mais
para o fim, o que parecia um copo de leite disse para a moça: “Senta
do lado dele.” Ela se sentou do meu lado. “Põe o santo na mão
dele.” Ela me deu o santo. “Abrace o santo.” Abracei o santo.
“Põe a mão no ombro dele, abraça ele.” A moça me abraçou.
“Isto. Sorria. Isto.” E para mim: “Você também, sorria.”
Clique, clique. E disse para o amarelo: “Agora, você.” E disse:
“Agora os dois, cada um de um lado dele.” E o amarelo: “Agora
deixa eu fazer uma sua.” E o branco-de-leite veio para o meu lado,
primeiro sozinho, depois com a moça. E foi assim um bocado de vezes,
me davam o santo, me tomavam o santo, e a moça perguntava: “Quantas
chapas ainda tem? Não gastem tudo.” E o copo de leite parecia que
não ouvia, batia, batia, batia, como gostava de tirar retrato. E
mais para o finzinho ainda ele virou aquele negócio preto e comprido
para as telhas e disse: “Agora é a vez da sua irmãzinha”, mas a
lagartixa parece que não gostou e saiu correndo, até se enfiar na
parede e sumir.
Eles
faziam tudo muito depressa, nessa hora. Não dava tempo de explicar
que às vezes eu penso que Deus foi melhor com as lagartixas do que
comigo. Porque Ele me deu estas duas perninhas de lagartixa, mas as
lagartixas andam e eu não. Eu queria dizer pra eles que estava doido
pra mamãe chegar, quem sabe ela fazia um café e um doce de leite?
Isso era o que me deixava triste: eles aqui e mamãe lá longe.
E
um disse (o muito branco, outra vez. Clique, clique e falando
depressa): “Nós vamos voltar. Quando foi mesmo que você disse?
Dois de fevereiro? A Festa da Padroeira. A igreja aberta o tempo
todo. Não vamos nos esquecer. Vamos trazer muitos presentes para
você, viu? Muitos brinquedos. Você é um garoto bacana, um garoto
legal.” Falavam assim. Era o jeito deles. Então ele pegou o santo
de novo e disse: “Você me dá ele? Nós voltamos aqui, vamos
trazer muitos brinquedos. Vamos levar o santo, viu? E aquilo ali
também, viu?” E aí ele deu o santo para a moça e disse: “Você
leva o santo”, e os dois carregaram o nicho, com a lamparina acesa
e tudo, o fedor do pavio queimado no azeite e eu disse: “Cuidado,
senão o pavio apaga”, e eles saíram, quase correndo, e não
olharam para trás.
Dois
de fevereiro ainda está muito longe, não está, mamãe? Ainda
estamos no mês de abril, não foi o que a senhora disse? Ainda bem
que dois de fevereiro não é Dia de São Nunca.
Sabe
o que eu penso, mamãe? Que eles devem ser os três reis magos. A
senhora não acha? Eles vão voltar, trazendo os presentes. São os
três reis magos. Mas tem a moça. Bom, pode ter morrido um rei mago
e a moça entrou no lugar dele, para continuarem sendo três. Será
que eu estou pensando certo, mamãe?
Ninguém
disse nada de certo ou errado, ninguém pensou no mais certo ou no
mais errado — um homem comentava, tentando assentar a poeira. Fora
o menino, que se mantinha alegre, calmo e sonhador como sempre, o
resto era a confusão, já próxima (ou talvez além) de um delírio.
Mas o motor da luz será desligado daqui a pouco e o escuro devolverá
de novo os homens para os seus sonhos. Restará o acabrunhamento, o
desejo da vingança. E isto não entra nos sonhos. Entra nos
pesadelos. Com certeza hoje será uma noite de pesadelos. Este homem,
porém (não o último a falar, diga-se), sente-se no direito a umas
palavras esclarecedoras. Ele disse:
—
Agora, agora, esse menino precisava lá
de santo? Ele precisa é de perna para andar.
Por
um momento os outros chegaram até a concordar. Era isso mesmo. No
que todos refletiam e achavam que estava tudo muito certo, sim
senhor, um outro homem lançava uma nova faísca, quente como uma
brasa:
— Ora
muito bem, o senhor tem toda razão. Mas o caso não é o santo. O
caso é o roubo.
Dito
isso ele foi saindo de mansinho. Queria conversar um pouco com o tio
do menino, antes que a luz se apagasse. E enquanto a luz estivesse
acesa, ele, esse tio, continuaria lá, na sua marcenaria, esquecido
no seu canto. E foi assim que o homem o encontrou: torneando
pacientemente uma cantoneira — para outro santo. O tio trabalhava e
rezava:
Louvando
a Maria
O
povo fiel
O
homem gritou da janela:
— Seu
Marceneiro. Seu Marceneiro. Roubaram o santo do menino.
Sentindo-se
interrompido, o tio recomeçou a reza:
Louvando
a Maria
O
povo fiel
O
homem pensa que ele não ouve. Insiste:
— Seu
Marceneiro. Seu Marceneiro. Roubaram o santo do menino.
O
tio volta a recomeçar:
Louvando
a...
Parou.
Sua cara atarantada parecia que ia se despregar do corpo e voar pelo
espaço, a caminho do infinito, a caminho do céu. Não era para lá
que este velho beato iria, quando morresse? Todos sabiam disto. Ele
era um santo entre os vivos, o lado de lá desta vida desgraçadamente
terrena. E o tio, com os seus velhos óculos remendados e suspensos
na testa cheia de dobras, abriu os pulmões, abriu a cancela de um
inferno jamais suspeitado. E soltou, com toda a força da sua alma, o
primeiro palavrão de sua vida, que ecoou como um trovão, um
estrondo, um ronco de Satanás.
Era
um eco capaz de arrebentar o mundo, o homem pensou, seguindo o seu
destino, debaixo das estrelas. Já não entendia mais nada.
Antônio
Torres, in Meninos, eu conto
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