Na
minha juventude, dois viajantes britânicos eram escolhidos como tema
de discussão pelo professor de história. Nessa escolha havia um
pressuposto moral. O primeiro viajante era o naturalista, biólogo e
geógrafo Alfred Russel Wallace, que fez pesquisas científicas na
Amazônia, entre 1848 e 1852. Charles Darwin era amigo de Wallace, e
ambos elaboraram ao mesmo tempo a teoria da evolução das espécies,
mas Wallace nunca alcançou a fama de Darwin. Nosso professor do
ginásio amazonense queria reparar uma injustiça da história da
ciência e sempre falava de Wallace com admiração. Mas o outro
viajante, dizia o mestre, foi um dos maiores ladrões do século XIX.
De
fato, o fracassado botânico Henry Wickham foi um famoso impostor,
que bem podia constar na História universal da infâmia, de
Jorge Luis Borges. Em 1876, Wickham contrabandeou 70 mil sementes da
Hevea brasiliensis para o Reino Unido; as sementes roubadas
foram colocadas em estufas num jardim botânico de Londres e, meses
depois, as mudas das seringueiras brasileiras foram plantadas na
Malásia. Em menos de quarenta anos, esse ato patriótico de um
súdito da rainha Vitória aniquilou a economia da Amazônia.
Há
britânicos e britânicos que passaram pela região amazônica. Na
minha memória há, sobretudo, uma inglesa, que não foi uma
cientista ilustre, muito menos uma contrabandista. Foi apenas minha
professora, mas isso teve algum significado para um moleque de treze
anos.
Refiro-me
a uma ruiva inesquecível: Jane C. Hern. Às 16h40 das quartas e
sextas-feiras eu caminhava por uma rua sombreada por acácias e
mangueiras, parava na calçada de uma mansão amarela e avistava a
mulher ruiva aguando as delicadas flores de seu jardim inglês, um
jardim que se revoltava durante as chuvas torrenciais até readquirir
a aparência de um exuberante quintal amazônico. Jane fechava a
torneira, enrolava a mangueira e vinha me receber com um sorriso
aberto e iluminado, e não um simples ricto.
Hoje,
penso que a estreita convivência com os amazonenses mudara o sorriso
e os trejeitos de Jane. Acho que mudara também outras coisas, mais
íntimas. Mas, em 1965, a reflexão sobre essa mudança moral nem
passava pela minha cabeça.
A
professora me convidava para entrar na sala, e os minutos que
antecediam a aula eram a minha glória. Podia observá-la da cabeça
aos pés e imaginá-la na piscina da mansão, sem o marido, que eu vi
de longe uma única vez. Ele era gerente de um banco britânico que
existia desde a época do pirata H. Wickham, e até mesmo do
injustamente esquecido A. R. Wallace. Quando Jane ficava de costas
para mim, fingindo consultar um livro na estante, eu contava as
pintas na pele rosada e sem rugas, quase um milagre no clima do
equador. Ou não era milagre, e sim o olhar turvo de um curumim
encantado pela beleza ruiva. Enquanto o tempo passava, mrs. Hern,
indiferente à pontualidade britânica, continuava a exibir as costas
e os ombros nus. Ela era uma vítima feliz de outro tempo, lerdo e
arrastado, tão amazônico. Em algum momento, bem depois das quatro,
Jane se sentava à mesa, colocava a mão no meu braço e perguntava
em inglês se eu havia lido um dos capítulos do romance. Referia-se
a Treasure island, que eu lia em casa e depois relia durante a
aula. Esse romance me fascinava, mas eu não buscava exatamente o
tesouro escondido por Flint, e sim outro: a própria Jane de corpo e
alma, mais corpo que alma, pois meu ser, naquelas tardes mornas, era
mais carnívoro que platônico.
Mesmo
assim, li com prazer o romance de Stevenson, esse arquiteto de tramas
fantásticas que encontrou seu paraíso em Samoa, bem longe de
Londres e de sua Escócia natal. Agora, ao reler A ilha do
tesouro, recordo meus encontros com uma mulher de 43 anos, que
Manaus ia transformando lentamente numa cabocla inglesa.
Não
sei em qual hemisfério ela vive; talvez já nem esteja neste mundo.
De qualquer modo, Jane Constable Hern está viva na minha memória,
esse vasto rio sem margens.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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