Há
quem diga que o único humanista autêntico é o canibal. Seu amor
pela humanidade é o mesmo amor que temos por um bom bife, e é
sincero. Já o humanismo na sua forma não antropofágica é mais
difícil de classificar. O que é, afinal, um humanista? A própria
palavra “humanismo” tem interpretações e conotações
diferentes. No dicionário ela é descrita como uma doutrina segundo
a qual o ser humano é o criador dos seus próprios valores morais. O
que não ajuda muito. Melhor, ou mais simples, seria dizer que para
um humanista o ser humano é, ou deve ser, a medida de todas as
coisas, e assim como o sistema métrico que mede o mundo teve origem
nas dimensões do corpo humano, todos os sistemas éticos e morais do
mundo devem obedecer à primazia do humano. Ou seja: ser humanista é
não reconhecer nenhum determinante metafísico, nenhuma
interferência divina, no ser humano e nas suas circunstâncias.
Mas
essas interpretações não cobrem todos os significados de
“humanismo”. A própria história do humanismo é discutível.
Sua origem seria na Renascença, quando as trevas da Idade Média
retrocederam diante da redescoberta do mundo clássico e não só as
pinturas e esculturas de Michelangelo, Leonardo e os outros
glorificaram o corpo humano redescoberto como a glória da Grécia
antiga, berço da democracia e da filosofia, também voltou à luz do
dia depois da noite medieval. Mas a arte da Renascença foi toda
feita em louvor e com o subsídio da Igreja, seus temas predominantes
eram os santos, os mártires e os mitos da Igreja e dificilmente se
encontraria um humanista, mesmo camuflado, entre os seus praticantes.
E antes de se exaltar a Grécia antiga como um ideal de virtudes
cívicas e civilização é bom não esquecer que aquela era uma
sociedade escravocrata, também um mau exemplo de humanismo.
O
humanismo autêntico seria então um subproduto do Iluminismo do
século 18, e sua origem estaria no pensamento iconoclasta de alguns
magníficos hereges como Voltaire, Diderot, Descartes, aquela turma.
Mas até hoje se debate a ligação direta entre o Iluminismo e o
terror que se seguiu à revolução francesa, e se a idade da razão
não gerou um monstro em vez de uma sociedade iluminada. O mesmo se
pode dizer de Marx e dos outros filósofos dedicados a mudar o mundo
e a História em vez de apenas entendê-los, e cuja generosa proposta
de igualdade e fraternidade universal desaguou no totalitarismo e no
terror stalinista.
O
escritor e satirista Karl Kraus, talvez o mais vienense de todos os
vienenses, escreveu certa vez que na Áustria, nos estertores do
império austro-húngaro, estava acontecendo um ensaio do fim do
mundo. Na verdade, o que tomava forma em Viena no começo do século
20 era um novo mundo. O colapso do império dos Habsburgo coincidiu
com duas novidades de certa forma opostas no espírito europeu e na
História: o fascismo e a psicanálise. Dizem que a História do
mundo teria sido outra se Hitler tivesse se tratado com seu
contemporâneo e conterrâneo Freud, mas, infelizmente, o encontro
nunca se deu. Freud era um humanista, mas assim como suas teorias
sobre patologia e neuroses coletivas nada fizeram para deter o
pesadelo nazista que se iniciava, suas descobertas sobre o
inconsciente humano em nada ajudaram o humanismo. Pois o que ele
dizia era que o ser humano não devia sua existência e seu destino à
interferência divina, mas era regido por forças imateriais, quase
que por uma metafísica interna, que desconhecia tanto quanto
desconhecia os desígnios de Deus. O ser humano não era a medida de
todas as coisas. O ser humano, seus recônditos obscuros e os
mistérios do seu ego eram a medida de todas as coisas.
O
que significa ser um humanista, hoje? Ao contrário dos canibais, que
sabem do que gostam, não temos muita certeza que a humanidade nos
apeteça, depois de tudo o que ela aprontou. Continuamos preferindo a
lógica e a razão a qualquer tipo de superstição ou pensamento
mágico, mas com a consciência de que cada vez mais humanos preferem
o contrário. A divisão entre ricos e pobres aumenta, uma
superprodução de alimentos convive com a fome endêmica no mesmo
planeta há anos, a intransigência e o fanatismo religioso
conflagram regiões inteiras – tudo prova que o humanismo está
longe das sedes do poder e dos princípios da maioria. E muito longe
de ser uma doutrina viável, ou mesmo um sonho para um outro tempo.
A
solução talvez seja o humanismo se reconciliar com a metafísica e
pedir ajuda à providência divina, para não desaparecer.
Luís
Fernando Veríssimo
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