Era
muito cedo. Antes da hora do sol — momento regular, encantador,
charmoso. A mulher bateu à porta certa de que fossem abrir.
O
velho.
O
velho aproximou-se lentamente, chinelos inaugurando o chão da manhã
e, sorriso no rosto, espreitou. Usava uma face tranquila, embora nos
lábios se descortinassem pregas de frio. Entre, minha filha, entre.
Como se o velho tivesse o dom de perceber ao que vinham as
pessoas.
Havia, na mulher, uma expressão de estranheza; mais
que frio, incômodo. Precisava ela, certamente, de um chá quente, e
que alguém comunicasse com ela numa língua inteligível. O velho
não se permitia mais do que três tentativas antes de acertar. Foi
ao russo, visitou o castelhano, arranhou o suaíli e resignou-se, já
encabulado, ao inglês. Mas ela — passiva, desentendedora. O velho
destapou o bule e sorriu. Mais do que satisfação, dentro dele
burilava já a sensação de ter encontrado mais um membro do clã:
salve!, disse-lhe, no seu impecável latim.
Tanta
alegria — recordar é crescer! —, o velho nem estranhou as horas,
nem perguntou o nome. Num tom franco, indagou: você leu
Kazantzakis?, ela ainda espantando o frio, o odor de animais vários,
o papagaio que acordava declamando sonetos e, lá mais atrás do
mundo, dois porcos que, guinchando, conversavam. Li a obra toda,
incluindo notas dispersas e cartas a amigos, respondeu.
Parados,
deambulavam entre olhares mútuos — a divisão complacente de um
momento, a alegria mansa de estar. O mundo era uma aurora
estreando-se nos seus corações, uma alforreca sem destino definido
e sem corrente para agradar. Se havia lugar estranho no mundo, era
aquela pequena loja escondida nas arquiteturas mais góticas da
Escandinávia.
— Então
talvez se lembre da discreta tirada do autor grego — olhou-a com
firmeza.
—
Sobre?
— Sobre
aquilo que a traz cá — o velho mexia na chávena com delicadeza.
— O
coração — ela, sempre em latim.
— “Se
o coração do homem não transborda de amor ou de cólera...” —
ele esperou.
— “Nada se faz no mundo” — ela sorriu.
Terminou o chá, levantou-se. — Nikos Kazantzakis, O Cristo
recrucificado.
O
velho acompanhou-a na poética digressão à janela. O sol quase
queria chegar, afastar as nuvens com prepotência e, mais do que
iluminar a Terra, penetrar nos corações humanos. Como se numa
missão divina.
— Cara
senhora... — começou o velho, mais sério. — Não vou deixá-la
cometer o mesmo erro que os outros.
Ela
voltou-se repentina, séria também:
— Os
outros?
— Os
outros todos que, antes de si, me apareceram na loja procurando novos
corações. Esgotaram os estoques, fizeram os mais incríveis pedidos
sem nunca, mas nunca, me quererem ter ouvido acerca das propriedades
dos corações dos animais.
— Mas
veio cá muita gente?
— Oh,
sim, gente suficiente para que eu tivesse de mandar vir animais de
África, das Américas... — pensativo. — Mas, diga-me: por que
precisa você de um coração novo?
— Para
dizer a verdade... — tocou-lhe no ombro — para lhe explicar isso,
teríamos que divagar por conceitos filosóficos inacessíveis ao
latim de ambos. Digamos que a solidão mudou-me a cor do coração.
—
Entendo,
entendo — o velho dirigiu-se ao balcão, retirou alguns papéis. —
Venha comigo — e abriu uma pequena porta, como importantes são
sempre as portas pequenas.
A mulher suava — no efeito do
estranho chá que havia consumido. O velho era dado a estes
comportamentos: adiantar-se em anestesias, suavizar cirurgias,
pretender adivinhar os desejos dos clientes. A mulher suava —
passando por estreitos corredores coloridos, por aves raras que não
gritavam (era cedo), por galinhas-do-mato escuras ou rosadas, por
porcos-espinhos adormecidos, cobras, ratos brancos e, no fim, os
porcos. Animal muitíssimo asseado, explicou o velho. Já deitada na
cama de dossel, antes de se iniciar o processo de hipnose, ela,
suando, sorriu para o velho: o coração de um porco...?
E
adormeceu.
Quando
retornou das abstinências do hipnotismo encontrava-se já à mesa,
tonta mas com uma sensação de aconchego no peito. Era, no fundo, o
que trazia todas as pessoas àquele local: a magia de renovar o órgão
primeiro, o bombeador de sensações, a casa mais íntima de um ser
humano.
— Não
fale. Poupe as forças — disse o velho.
Quando,
no fim da refeição, voltou a fazer um chá, começou:
— Leve
isto consigo — entregou-lhe um pequeno aglomerado de folhas,
escrito à mão num cuidadoso latim. — Vai servir-lhe para ser
feliz!
— E
o que é? — a mulher, sensível, curiosa.
— Todos
os meus apontamentos sobre a sensibilidade dos porcos. O que é
dizer: você é a primeira pessoa a levar um coração com o
respectivo manual de felicidade.
— Por
que faz isso por mim?
O
velho sorveu as últimas gotas de chá e respirou fundo, evitando as
lágrimas. Pegou na mão da mulher — gesto simples, inocente, mas
brutalmente humano (que só os velhos sabem manusear) — e murmurou
a sua frase última:
— Acima
de tudo, pela brandura no seu olhar — fez uma longa pausa. — Você
é a minha última cliente. A partir de hoje a loja está fechada!
Ondjaki,
in E se amanhã o medo
Nenhum comentário:
Postar um comentário