sábado, 30 de dezembro de 2017

Vou tratar de aprender

Fotograma do filme As vinhas da ira (1940)

Tom lançou um olhar aos degraus da porta.
Aí vem o reverendo — disse. — Aí, atrás do celeiro.
A mãe disse:
Foi a reza mais engraçada que já ouvi, essa que ele disse hoje de manhã. Na verdade, nem foi uma reza. Foi só uma falação, mas parecia uma reza.
Ele é um camarada muito engraçado — disse Tom. — Diz coisas engraçadas sempre. E muitas vezes até fala sozinho. Mas não quer voltar a ser pregador.
Repara só no olhar dele — disse a mãe. — Parece que foi purificado. Tem um olhar que, como se diz, atravessa tudo. Sim, sim, ele é na certa purificado. E anda sempre de cabeça baixa, de olhar parado no chão. É um homem com toda a certeza purificado. — E ela calou-se, porque Casy se tinha aproximado da porta.
O senhor vai apanhar uma insolação andando assim, com a cabeça descoberta — disse-lhe Tom.
Casy disse:
Sim, é possível. — E, de repente, dirigiu-se a todos: — Eu tenho que ir para o Oeste. Tenho que ir. Eu pensei em ir com vocês, se consentissem. — Estacou, embaraçado com a veemência de suas palavras.
A mãe olhou para Tom, esperando que ele dissesse qualquer coisa, porque Tom já era um homem feito. Dera-lhe esta oportunidade, que afinal era o seu direito, depois do que, falou ela mesma:
É claro que a gente ficava muito honrada com a sua companhia. Mas agora ainda não posso dizer nada de seguro. O pai diss’que os homens vão se reunir hoje de noite para combinar o dia da viagem. Acho que é melhor a gente não dizer nada enquanto todos eles não voltarem. John e o pai, o Noah, o Tom, o avô, o Al e o Connie vão todos tratar disso, logo que chegarem. Mas eu acho que, se tiver lugar, o senhor poderá vir conosco, teremos muito prazer.
O pregador suspirou.
Eu vou, de qualquer maneira — disse. — Alguma coisa vai acontecer. Eu subi naquele alto e fiquei olhando, as casas estão todas vazias e os campos estão vazios e a terra toda está vazia. Não posso continuar mais por aqui. Tenho que ir para onde toda a gente vai. Vou trabalhar a terra e talvez seja feliz.
E não vai mais fazer sermões? — inquiriu Tom.
Não, não quero saber mais disso.
E não vai batizar mais ninguém? — perguntou a mãe.
Não, também não vou batizar mais. Vou trabalhar no campo, nos campos verdes, e ficar mais perto de toda a gente. E não vou ensinar mais nada a ninguém. Eu é que vou tratar de aprender. Vou aprender por que os homens andam pelos campos, vou ouvi-los falar e cantar. Vou olhar as crianças comerem mingau e os homens e mulheres sacudirem os colchões das camas de noite. Vou comer com eles e aprender com eles. — Seus olhos tornaram-se úmidos e brilhavam. — Vou me deitar na grama, aberta e honestamente, com quem me queira. Vou gritar e praguejar à vontade e vou ouvir as canções populares. É isto que é sagrado, é isto tudo que eu não pude até agora compreender. Isto é o que é o verdadeiro, o bom.
A mãe disse:
A... mém.
O pregador sentou-se humildemente no cepo, ao lado da porta.
Que é que um homem sozinho pode fazer?
Tom tossiu com delicadeza.
Para um homem que não prega mais... — começou.
Oh, eu sou mesmo um sujeito muito falador — disse Casy. — É meu jeito e já não posso mudar. Mas não quero saber mais de pregar para o povo. Pregar é contar coisas. Mas eu não conto nada, eu faço perguntas. Isto não é pregar, é?
Não sei — disse Tom. — Pregar é ter um tom especial na voz, é um modo diferente de ver as coisas. Pregar é fazer bem ao povo, apesar de que o povo às vezes tem vontade de matar quem faz o sermão. Na última noite de Natal, o Exército da Salvação foi a McAlester pra distrair a gente. Teve música durante mais de três horas e a gente ficou sentado ali, ouvindo. Eles foram muito gentis com a gente. Mas se um só dos nossos tentasse sair da sala, todo mundo saía junto. É isso que se chama pregar. Fazer bem a alguém que tá mal e que não pode evitar que o façam. Não, o senhor não é pregador. O senhor não tá aqui forçando ninguém a ouvir música de igreja.
A mãe enfiou lenha no fogão.
Vou fazer comida pra você, mas não vai ser muita.
O avô levou o caixote para fora, sentou-se sobre ele e recostou-se à parede, e também Casy e Tom recostaram-se à parede. E a sombra da tarde abandonou a casa.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

Nenhum comentário:

Postar um comentário