[…]
Acabrunhado, Bartolomeu aceitou. Primeiro, foram os outros que lhe
mudaram o nome, no batismo. Depois, quando pôde voltar a ser ele
mesmo, já tinha aprendido a ter vergonha do seu nome original. Ele
se colonizara a si mesmo. E Tsotsi dera origem a Sozinho.
— Eu
sonhava ser mecânico, para consertar o mundo. Mas aqui para nós que
ninguém nos ouve: um mecânico pode chamar-se Tsotsi?
— Ini
nkabe dziua (expressão que significa “Eu não sei”, na
língua chisena).
— Ah,
o Doutor já anda a aprender a língua deles?
—
Deles? Afinal, já não é a sua língua?
— Não
sei, eu já nem sei…
O
português confessa sentir inveja de não ter duas línguas. E poder
usar uma delas para perder o passado. E outra para ludibriar o
presente.
— A
propósito de língua, sabe uma coisa, Doutor Sidonho? Eu já me
estou a desmulatar.
E
exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada. O médico franze o
sobrolho, confrangido: a mucosa está coberta de fungos, formando uma
placa esbranquiçada.
— Quais
fungos? — reage Bartolomeu. — Eu estou é a ficar branco de
língua, deve ser porque só falo português…
O
riso degenera em tosse e o português se afasta, cauteloso, daquele
foco contaminoso. Quase colide com Suacelência que acaba de cruzar a
estrada. O Administrador vem esbaforido e cumprimenta, de forma
esquiva, os presentes. Detém-se sob a janela, aproveita a sombra
para enxugar meticulosamente o afogueado rosto.
—
Então, Excelência — inquire o velho
Sozinho —, tão cedo e já anda a chatear as moscas?
— Que
se passa, Suacelência? — pergunta o português, emendando a
indelicadeza do seu paciente.
— A
rapaziada da banda eleitoral — suspira, contendo uma emergente onda
de fúria —, a rapaziada fugiu com os instrumentos.
— Mas
isso é um bambúrrio de azar. Então os bandos roubaram-lhe a banda?
Ignorando
o tom irônico da pergunta, o Administrador acena com gravidade. Não
se tratava, segundo ele, de um simples furto. Aquilo era uma cabala
política, manobra dos inimigos da Pátria.
— Um
feiticeiro conhece todos os feiticeiros… — ironiza o velho
Sozinho.
— Por
que não me respeita, Bartolomeu? A mim que fiz tanto pelo país?
— O
país preferia que o senhor não tivesse feito nada.
— Por
que não gosta de mim?
— Eu
gosto da minha terra, da minha gente. E o senhor gosta de quem?
Contudo,
o Administrador já desandou, estrada fora, coxeando levemente.
Bartolomeu e Sidónio ficam olhando a figura do dirigente
desvanecer-se como se assistissem ao seu ocaso político.
— Sinto
pena dele — admite o português.
— Pois
eu estou-me merdando para o gajo — remata Bartolomeu.
Ri-se
para reafirmar o desprezo. E logo lhe sobrevém um ataque de tosse
que o deixa sem respirar.
— Puta
de vida — diz —, não vivemos se não nos rimos e depois morremos
por nos termos rido — e conclui, após recuperar fôlego: — O
Doutor acha que sou uma anormalidade?
O
médico olha para o parapeito e estremece de ver tão frágil, tão
transitório aquele que é o seu único amigo em Vila Cacimba. O aro
da janela surge como uma moldura da derradeira fotografia desse
teimoso mecânico reformado.
— Posso
fazer-lhe uma pergunta íntima?
—
Depende — responde o português.
— O
senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?
— Sim.
— Eu
gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.
O
desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração
temporária. O português, que era um guarda-fronteira da Vida, que
facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda de sentidos.
— Me
receite um remédio para eu desmaiar.
O
português ri-se. Também a ele lhe apetecia uma intermitente
ilucidez, uma pausa na obrigação de existir.
— Uma
marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.
Riem-se.
Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja
uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi
deixando de ser nosso.
Mia
Couto, in Venenos de Deus,
remédios do Diabo
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