Mercadinho
é imagem de confusão organizada. Todos comprando tudo ao mesmo
tempo em corredores estreitos, carrinhos e pirâmides de coisas se
comprimindo, apalpamento, cheiração e análise visual de gêneros
pelas madamas, e, a dominar o vozerio, o metralhar contínuo das
registradoras. Um olho visível, múltiplo e implacável, controla os
menores movimentos da freguesia, devassa o mistério de bolsas e
bolsos, quem sabe se até o pensamento. Parece o caos; contudo nada
escapa à fiscalização. Aquela velhinha estrangeira, por exemplo,
foi desmascarada.
— A
senhora não pagou a dúzia de ovos quebrados.
—
Paguei.
Antes
que o leitor suponha ter a velhinha quebrado uma dúzia de ovos,
explico que eles estão à venda assim mesmo, trincados. Por isso são
mais baratos, e muita gente os prefere; casca é embalagem. A senhora
ia pagar a dúzia de ovos perfeitos, comprada depois; mas e os
quebrados, que ela comprara antes?
A
velhinha se zanga e xinga em ótimo português-carioca o rapaz da
caixa. O qual lhe responde boas, no mesmo idioma, frisando que gringo
nenhum viria lá de sua terra da peste para dar prejuízo no Brasil,
que ele estava ali para defender nosso torrão contra piratas da
estranja. A mulher, fula de indignação, foi perdendo a voz.
Caixeiros acorreram, tomando posição em defesa da pátria ultrajada
na pessoa do colega; entre eles, alguns portugueses. A freguesia fez
bolo. O mercadinho parou.
Eis
que irrompe o tarzã de calção de banho ainda rorejante e berra
para o caixa:
— Para
com isso, que eu não conheço essa dona mas vê-se pela cara que é
distinta.
—
Distinta?
Roubou cem cruzeiros à casa e insultou a gente feito uma danada.
—
Roubou
coisa nenhuma, e o que ela disse de você eu não ouvi mas subscrevo.
O que você é, é um calhorda e quer fazer média com o patrão à
custa de uma pobre mulher.
O
outro ia revidar à altura, mas o tarzã não era de cinema, era de
verdade, o que aliás não escapou à percepção de nenhum dos
presentes. De modo que enquanto uns socorriam a velhinha, que
desmaiava, outros passavam a apoiá-la
moralmente, querendo arrebentar aquela joça. O partido nacionalista
acoelhou-se. Foram tratando de cerrar as portas, para evitar a
repetição do saque de Caxias. Quem estava lá dentro que morresse
de calor; enquanto não viessem a radiopatrulha e a ambulância, a
questão dos ovos ficava em suspenso.
— Ah,
é? — disse o vingador. — Pois eu pago os cem cruzeiros pelos
ovos mas você tem de engolir a nota.
Tirou-a
do bolso do calção, fez uma bolinha, puxou para baixo, com dedos de
ferro, o queixo do caixa, e meteu-lhe o dinheiro na boca.
Assistência
deslumbrada, em silêncio admiracional. Não é todos os dias que se
vê engolir dinheiro. O caixa começou a mastigar, branco, nauseado,
engasgado.
Uma
voz veio do setor de ovos:
— Ela
não roubou mesmo não! Olha o dinheiro embaixo do pacote!
Outras
vozes se altearam: — Engole mais os outros cem! — Os ovos também!
— Salafra — Isso! — Aquilo!
A
onda era tamanha que o tarzã, instrumento da justiça divina, teve
de restabelecer o equilíbrio.
—
Espera
aí. Este aqui já pagou. Agora vocês é que vão engolir tudo, se
maltratarem este rapaz.
Carlos
Drummond de Andrade, in 70
historinhas
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