Para Stefania Chiarelli
Os gatos têm a má fama de serem
ariscos, esquivos, indiferentes; de não darem a mínima para o seu
dono e de serem altivos até a intolerável arrogância. Por que
tantos atributos negativos ao membro mais inofensivo da família dos
felídeos? Talvez pela independência desses bichos. Por isso, muita
gente os despreza e mesmo os detesta.
Não fazem festa nem estardalhaço, não
são excessivamente carentes de afeto, podem dormir e sonhar por um
século e esquecer o mundo ao redor. E seus miados são notas
monótonas de uma canção minimalista. Não por acaso, um ditado
chinês diz: O cachorro é um romance, e o gato, um poema.
Nesse sábio ditado oriental reside uma
delicada definição dos gêneros literários. Pense no cotidiano de
um cão: as peripécias, o corre-corre, os latidos, os momentos de
exaltação e melancolia, os ganidos de dor, saudade ou fome, as
fugas, os saltos estabanados, os ataques de raiva, as mordidas, o
afeto meloso, as disputas ciumentas… Tudo isso lembra o trançado
de eventos e peripécias de um romance.
Agora imagine o discreto cotidiano de um
gato: a pose hierática, a atitude ensimesmada, o salto sem ruído, a
expressão misteriosa do olhar, a repetição dos gestos, como se
cada passo repetisse o anterior, o olhar em transe, focando as asas
de um inofensivo beija-flor…
O gato encarna uma subjetividade lírica
que reitera o ditado chinês. E quantos poetas não fizeram desses
bichinhos um tema lírico, um canto a esse olhar misterioso que nos
surpreende de algum lugar improvável? Um desses poetas, um dos
maiores de língua francesa, escreveu que os chineses veem a hora do
dia ou da noite nos olhos de um gato.
Algo me diz que os felinos vivem no tempo
e os cachorros, no espaço. É o que senti no meu convívio com Leon,
meu único animal de estimação. Encontrei-o num descampado próximo
do edifício onde eu morava. Um bichaninho, como se diz no Norte e em
outras regiões do Brasil. Pequeno, mirrado e faminto, sua pelagem
reluzia um amarelo vivo. Eu não era um conhecedor de felinos, mas
sabia que esses animais cultivavam a introspecção. Levei-o para o
apartamento, onde foi um hóspede discreto que, aos poucos, tornou-se
um companheiro quase silencioso. E, contrariando o senso comum, Leon
não era esquivo nem altaneiro.
Era um gato de grande caráter, e nisso
ele se diferenciava de muitos políticos. Aliás, os raros momentos
de irritação de Leon ocorriam durante as campanhas eleitorais,
quando os carros de som e trios elétricos de Manaus alardeavam
promessas absurdas e mentirosas. O gato reagia no ato, emitindo
miados dissonantes e enlouquecidos, pulando da mesa para a geladeira
e, por fim, me encarando com um olhar de revolta e indignação. Eu
fechava as portas e janelas para abafar a algaravia da propaganda
política, e ficava encharcado de suor no pequeno apartamento
transformado num forno. Mas isso era preferível às ondas sonoras de
mentiras que tanto espezinhavam Leon.
Ou seriam ondas de mentiras sonoras?
Gato, gato: o tempo passa como se fosse
uma distração. Já faz mais de dez anos. Se soubesses como os
políticos continuam os mesmos. São outros, mas os mesmos. E tudo
indica que o futuro nos reserva uma galeria de mascarados diferentes
uns dos outros, mas bastará tirar as máscaras para que os mesmos
reapareçam que nem fantasmas do passado. Bem me dizias, com teu
olhar lancinante, que alguns políticos valem menos que os dejetos
enterrados no descampado. Teus dejetos.
Mas não é só dessa militância felina
que sinto saudades. Quando eu lia um romance ou preparava uma aula,
Leon se aproximava com passos preguiçosos e deitava na escrivaninha,
ao lado de um livro de Stendhal, Apollinaire ou Zola. Às vezes,
movido por uma euforia de leitor voraz, ele mastigava páginas,
capítulos inteiros de um romance. Foi assim que as páginas de dois
preciosos livros da Bibliothèque de la Pléiade viraram bolinhas
úmidas e rolaram na lajota da sala. Mas as capas ficaram intactas,
inclusive a sobrecapa de plástico. Quando se tratava de poesia, Leon
adquiria uma expressão mais intimista, e seu olhar acompanhava cada
página lida por mim.
Como esquecer aqueles olhos de fogo que
brilhavam nas incontáveis noites de apagão? Eu subia os seis lances
de escada, abria a porta e, na escuridão, duas gotas iluminadas me
esperavam.
Tudo isso acabou.
Antes de ir embora para São Paulo, pedi
à zeladora que cuidasse de ti. Pensei: daqui a dois meses volto para
Manaus e trago de volta Leon e meus livros. Ainda hesitei, temendo
algum acidente, alguma bala perdida no bairro pobre onde ele ia
morar. A hesitação é um erro. Como nos romances de Conrad, cometi
uma grave falha moral. Pensava que um dia eu ia te buscar no
Amazonas. Pensava que um bicho, bichano vira-lata pudesse esperar.
Tarde demais. O gato, um gato, não é indiferente. Soube que, na
minha ausência, ele comia menos, miava como um desesperado. Um dia
parou de comer. A zeladora, a meu pedido, levou-o ao veterinário.
Comprei a passagem aérea, mas antes telefonei para saber como ele
estava.
“Morreu”, disse a zeladora.
“Morreu? Esse veterinário… O que ele
fez? O que disse?”
“Saudade.”
Milton Hatoum, in Um solitário
à espreita
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