sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Bruma (a estrela vermelha)

E toda a ilha fugiu, e os montes não foram encontrados. (Apocalipse, XVI, 20)

Não era apreensão. Simples rancor. Bastava vê-los sair, encaminharem-se ao campo, para que o ódio me transtornasse:
Você o põe louco, Bruma!
Ela nunca respondia. Passava os braços pela cintura do meu irmão e afastavam-se rápidos.
Na hora do almoço, Og chegava correndo, ansioso por contar-me detalhes de novos astros que vira durante o passeio. A qualquer demonstração de dúvida de minha parte, ele apelava para o testemunho de Bruma:
Não era uma linda estrela? Tão vermelha que parecia o sol!
Pois era mesmo o sol, seu imbecil! — retrucava eu, irritado com a morbidez da sua imaginação.
Ela discordava. Com o mais meigo dos gestos e exibindo uma compreensão que atingia diretamente os meus nervos, pedia-me que acreditasse nele.
Tínhamos que discutir asperamente todas as manhãs, após os enervantes giros dos dois pela várzea da fazenda. Og, jurando ter divisado astros azuis, verdes, amarelos, rubros, enquanto eu, cada vez mais convencido de que era Bruma que lhe enfiava aquelas tolices na cabeça, exaltava-me:
Não existem.
Ele insistia:
Você ainda os verá, Godô.
Godô, não, sua anta! Godofredo!
Jamais se magoava com a minha agressividade, se bem que demonstrasse alguma pena por não lhe ser possível convencer-me. Os olhos vagos, distantes, como se dirigisse as palavras aos campos ou aos animais pastando ao longe, prosseguia:
Como são lindos pela manhã! A violência das cores, no primeiro momento, assusta-nos. Depois, as tonalidades se amaciam, as nossas pupilas absorvem os raios...
Raios! Só o médico acabará com essa loucura!
Geralmente acompanhava a frase com um murro no rosto dele.
Bruma chamava-me covarde e o conduzia para o interior da casa.

Nem sempre me arrependia das minhas bruscas reações. Mas, constantemente, após os atritos, procurava mamãe e tentava convencê-la da necessidade de levar meu irmão a um psiquiatra.
Ela ladeava o assunto, vencida pelo estranho carinho que dedicava ao filho mais moço.
Godofredo, você está amando Dora. (Bruma era o apelido de nossa irmã de criação.) Por que você não se aproxima dela, em vez de martirizar Og, que só cuida dos astros?
Mais irritado eu ficava, ouvindo-a falar daquele modo, sem que acreditasse estar agindo sob a inspiração do despeito.
Não amava Bruma. O que me perturbava era o seu corpo. Ao certificar-me, mais tarde, de que há muito uma paixão me rondava, já me encontrava tolhido por sentimentos contraditórios, e nenhum impulso generoso poderia levar-me a confessar um amor que se turvara ao contato do rancor. Em vez de atrair Bruma, conforme aconselhava minha mãe, agarrei-me à ideia de separá-los. E a oportunidade surgiu mais breve do que esperava. Foi na volta de um dos passeios matinais que os dois faziam. Eu estava lendo os jornais, na varanda, e quase não dei pela aproximação de Og, pois, contrariando suas normas de procedimento, entrara silencioso. Caminhava devagar, indo e vindo pela minha frente, até que, não mais se aguentando, entregou-se ao entusiasmo da última descoberta:
Este tem todas as cores, Godô. É o mais belo que já vi. Olha, olha! — E arrastava-me para fora, apontando o firmamento. Abstive-me de qualquer comentário e apressei-me em chamar por nossa mãe. Levei-a ao terreiro, mal ela me atendeu. Pedi que olhasse o céu, limpo como nunca estivera.
Não foi sem relutância que ela autorizou a ida de Og ao médico. Impossibilitada de negar o progresso da demência do filho, ainda reagia:
Só consulta, nada de hospício!

Bruma seguiu-nos. Caminhava em silêncio e só na entrada da cidade rompeu o seu mutismo:
Você sabe que ele não está louco.
No fundo, talvez desejasse me dizer que eu não agia em razão de um impulso fraternal. Mas, por lhe faltar a coragem ou por saber-me ciente do verdadeiro sentido de suas palavras, tergiversava.
Evitei uma resposta direta, que poderia desnudar meus sentimentos, torcendo o rumo da conversa:
E você, Bruma, consegue ver esse astro?
Ainda não — respondeu, erguendo a cabeça em direção às grossas nuvens que cobriam o céu.
Alguns quarteirões antes de chegarmos ao edifício, onde iríamos procurar o médico, Og nos deteve:
Repare, Godô! É impossível que você não o veja. Quantas cores!
Pupilas dilatadas, o rosto transfigurado, Og parecia mesmo contemplar um espetáculo único, que a ninguém mais seria dado ver. Estive para propor o nosso regresso a casa. Controlei-me. Não a avassalante ternura que me tomara. Abracei-o, procurando esconder as lágrimas que desciam:
Sim, é lindo. Não o perca de vista, que esta será a última vez que você o contemplará.

Barba ruiva, cortada rente, o olhar inamistoso, dr. Sacavém tinha uma fisionomia grave.
Contei-lhe as manias de Og, suas visões, o motivo da consulta. Não o impressionei nem tampouco despertei o interesse dele para as minhas informações. Limitou-se a pedir a meu irmão que falasse dos seus astros prediletos. Og acedeu prontamente ao pedido, satisfeito com o tratamento que lhe dispensavam. Repetiu, com o ardor de costume, as histórias que nos contava diariamente.
Aborrecido com aquele gasto inútil de tempo, aparteei:
Não acredito em estrelas durante o dia!
Até então calada, Bruma riu:
Acredita em porcos, não é?
Embora um pouco descontente, ao ver-se interrompido por nós, meu irmão continuou, a voz ligeiramente alteada pelo entusiasmo, a enumerar constelações, contando-lhes os hábitos, cores e formas. Quando chegou a vez do astro policrômico, o psiquiatra demonstrou sádica curiosidade pela narração, numa atitude que julguei indecorosa para um profissional. Parecia mais um astrônomo inexperiente do que um clínico.
Para desfazer certas dúvidas, experimentei a reação do dr. Sacavém:
Francamente, não entendo o seu método.
A minha intervenção lhe desagradou e respondeu-me rispidamente:
Entenderá mais tarde quando tratarmos do seu caso.
Do meu caso?! Então o senhor não percebe que somente um louco pode ver astros coloridos?!
Não, nada vejo de anormal nisso.
Já mais calmo, limpou os óculos com a gravata e indagou de Bruma se eu reagia sempre daquela maneira — irritado e agressivo.
Por ser afirmativa a resposta, o psiquiatra caminhou para mim, prendendo-me os braços. Examinou-me atentamente e balançou, desalentado, a cabeça.
Libertei-me das suas mãos com um gesto brusco e, correndo, abandonei o consultório.
Minha mãe esperava-me no alpendre da fazenda.
Ficaram lá e não quero vê-los mais — gritei, subindo a escada.
Abrigando somente duas pessoas, a nossa casa parecia ter ficado maior. Também a quietude crescia lá dentro, onde apenas o olhar de mamãe formulava perguntas. Perguntas que ficavam sem respostas e me obrigavam a escapar para o campo, a vagar pelas estradas. Não ia longe. A lembrança de Bruma feria-me. Tinha a impressão de que, a qualquer momento, surgiria na minha frente. Porque ela havia passado por todos aqueles caminhos e as sebes me falavam dos contornos do seu corpo.
A resolução veio lenta, conformada em saudade e remorso. E até chegar à cidade não sabia o que desejava fazer. De súbito, tudo se aclarou. Resoluto, tomei a direção do consultório do dr. Sacavém.
Sentia-me, no entanto, bastante confuso, pois não encontrava o edifício procurado. No lugar em que ele deveria erguer-se havia um lote vago. Parei um instante, a fim de orientar-me. Em vão. Não atinava com outro percurso. A rua era mesmo aquela. Restava informar-me, mas as pessoas a quem recorri não sabiam da existência de prédios com dez andares mencionados por mim. O maior da cidade possuía dois pavimentos. Nem ao menos, entre os cinco médicos do lugar, conheciam um com o nome de Sacavém. Percorri novamente o lugarejo, fiz outras perguntas. Inútil e angustiante busca.
Voltei ao lote. Sentei-me na grama e me abandonei ao desespero, sabendo que jamais reencontraria Bruma. Sobre os braços, chorei longamente. Ao me levantar, prestes a findar a tarde, estendia-se na minha frente uma estrela vermelha. Pouco a pouco, ela se desdobrou em cores. Todas as cores.
Murilo Rubião, in Obra completa

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