Dela
se sabia quase pouco. Se conhecia assim, corcunda-marreca, desde
menina. Lhe chamávamos Rosa Caramela. Era dessas que se põe outro
nome. Aquele que tinha, de seu natural, não servia. Rebatizada,
parecia mais a jeito de ser do mundo. Dela nem queríamos aceitar
parecenças. Era a Rosa. Subtítulo: a Caramela. E ríamos.
A
corcunda era a mistura das raças todas, seu corpo cruzava os muitos
continentes. A família se retirara, mal que lhe entregara na vida.
Desde então, o recanto dela não tinha onde ser visto. Era um
casebre feito de pedra espontânea, sem cálculo nem aprumo. Nele a
madeira não ascendera a tábua: restava tronco, pura matéria. Sem
cama nem mesa, a marreca a si não se atendia. Comia? Ninguém nunca
lhe viu um sustento. Mesmo os olhos lhe eram escassos, dessa magreza
de quererem, um dia, ser olhados, com esse redondo cansaço de terem
sonhado.
A
cara dela era linda, apesar. Excluída do corpo, era até de acender
desejos. Mas se às arrecuas, lhe espreitassem inteira, logo se
anulava tal lindeza. Nós lhe víamos vagueando nos passeios, com
seus passinhos curtos, quase juntos. Nos jardins, ela se entretinha:
falava com as estátuas. Das doenças que sofria essa era a pior.
Tudo o resto que ela fazia eram coisas de silêncio escondido,
ninguém via nem ouvia. Mas palavrear com estátuas, isso não,
ninguém podia aceitar. Porque a alma que ela punha nessas conversas
chegava mesmo de assustar. Ela queria curar a cicatriz das pedras?
Com maternal inclinação, consolava cada estátua:
—
Deixa, eu te limpo. Vou tirar esse sujo,
é sujo deles.
E
passava uma toalha, imundíssima, pelos corpos petrimóveis. Depois,
retomava os atalhos, iluminando-se de enquantos, no círculo de cada
poste.
De
dia lhe esquecíamos a existência. Mas às noites, o luar nos
confirmava seu desenho torto. A lua parecia pegar-se à marreca, como
moeda em encosto avaro. E ela, frente aos estatuados, cantava de
rouca e inumana voz: pedia-lhes que saíssem da pedra. Sobressonhava.
Nos
domingos ela se recolhia, ninguém. A velha desaparecia, ciumosa dos
que enchiam os jardins, manchando os sossegos do território dela.
De
Rosa Caramela, afinal, não se procurava explicação. Só um motivo
se contava: certa vez, Rosa ficara de flores na mão, suspensa à
entrada da igreja. O noivo, esse que havia, demorou de vir. Demorou
tanto que nunca veio. Ele lhe recomendara: não quero cerimónias.
Vou eu e tu, só nós ambos. Testemunhas? Só Deus, se estiver vago.
E Rosa suplicava:
—
Mas, o meu sonho?
Toda
a vida ela sonhara a festa. Sonho de brilhos, cortejo e convidados.
Só aquele momento era seu, ela rainha, linda de espalhar invejas.
Com o longo vestido branco, o véu corrigindo as costas. Lá fora, as
mil buzinas. E agora, o noivo lhe negava a fantasia. Se desfez das
lágrimas, para que outra coisa serve o verso das mãos? Aceitou. Que
fosse como ele queria.
Chegou
a hora, passou a hora. Ele nem veio nem chegou. Os curiosos se foram,
levando os risos, as zombarias. Ela esperou, esperou. Nunca ninguém
esperou tanto um tempo assim. Só ela, Rosa Caramela. Ficou-se no
consolo do degrau, a pedra sustentando o seu universal desencanto.
História
que contam. Tem sumo de verdade? O que parece é que nenhum noivo não
havia. Ela tirara tudo aquilo de sua ilusão. Inventara-se noiva,
Rosita-namorada, Rosa-matrimoniada. Mas se nada não aconteceu, muito
foi que lhe doeu o desfecho. Ela se aleijou na razão. Para sarar as
ideias, lhe internaram. Levaram-lhe no hospital, nem mais quiseram
saber. Rosa não tinha visitas, nunca recebeu remédio de alguma
companhia. Ela se condizia sozinha, despovoada. Fez-se irmã das
pedras, de tanto nelas se encostar. Paredes, chão, teto: só a pedra
lhe dava tamanho. Rosa se pousava, com a leveza dos apaixonados,
sobre os frios soalhos. A pedra, sua gémea.
Quando
teve alta, a corcunda saiu à procura de sua alma minéria. Foi então
que se enamorou das estátuas, solitárias e compenetradas.
Vestia-lhes com ternura e respeito. Dava-lhes de beber, acudia-lhes
nos dias de chuva, nos tempos de frio. A estátua dela, a preferida,
era a do pequeno jardim, frente à nossa casa. Era monumento de um
colonial, nem o nome restava legível. Rosa desperdiçava as horas na
contemplação do busto. Amor sem correspondência: o estatuado
permanecia sempre distante, sem dignar atenção à corcovada.
Da
nossa varanda lhe víamos, nós, sob o zinco, em nossa casa de
madeira. Meu pai, sobretudo, lhe via. Calava-se em si, todo. Era a
loucura da corcunda que fazia voar nossos juízos? O meu tio
brincava, para salvar o nosso estado:
—
Ela é como o escorpião, leva o veneno
nas costas.
Dividíamos
os risos. Todos, exceto meu pai. Sobejava intacto, grave.
—
Ninguém vê o cansaço dela, vocês.
Sempre a carregar as costas nas costas.
Meu
pai se afligia muito dos cansaços alheios. Ele, em si, não se dava
a fatigar. Sentava-se. Servia-se dos muitos sossegos da vida. Meu
tio, homem de expedientes, lhe avisava:
—
Mano Juca, desarasca lá uma maneira de
viver.
Meu
pai nem respondia. Parecia mesmo que ele mais se tornava encostadiço,
cúmplice da velha cadeira. Nosso tio tinha razão: ele carecia de
ocupação salariável. O único despacho de seu fazer era alugar os
próprios sapatos. Domingo, chegavam os do clube dele, paravam a
caminho do futebol.
—
Juca, vimos por causa os sapatos.
Ele
acenava, lentíssimo.
—
Já sabem o contrato: levam e, depois,
quando regressarem, contam como foi o jogo.
E
inclinava-se para tirar os sapatos debaixo da cadeira. Baixava-se com
tanto esforço que parecia estar a apanhar o próprio chão. Subia o
par de sapatos e olhava-lhes em fingida despedida:
—
Custa-me.
Só
por causa do médico é que ele ficava. Proibiram-lhe os excessos do
coração, pressas no sangue.
—
Porcaria de coração.
Batia
no peito para castigar o órgão. E voltava à conversa com o
calçado:
—
Vejam lá, vocês, sapatinhos: hora
certa, regressam de volta.
E
recebia, adiantado, os dinheiros. Ficava por muito gesto a contar as
notas. Era como se lesse um gordo livro, desses que gostam mais dos
dedos que dos olhos.
Minha
mãe: era ela que metia os pés na vida. Muito cedo saía, rumo dela.
Chegava ao bazar, a manhã ainda era pequena. O mundo transparecia,
em estreia solar. A mãe arrumava a banca antes das outras
vendedeiras. Entre couves empilhadas, se via a cara dela, gorda de
tristes silêncios. Ali se sentava, ela e o corpo dela. Na luta pela
vida, a mamã nos fugia. Chegava e partia no escuro. À noite, lhe
escutávamos, ralhando com a preguiça do pai.
—
Juca, você pensa a vida?
—
Penso, até muito.
—
Sentado?
Meu
pai se poupava nas respostas. Ela, só ela, lastimava:
—
Eu, sozinha, no serviço dentro e fora.
Aos
poucos, as vozes se apagavam no corredor. De minha mãe ainda
sobravam suspiros, desmaios da sua esperança. Mas nós não dávamos
culpa a meu pai. Ele era um homem bom. Tão bom que nunca tinha
razão.
E
assim, em nosso pequeno bairro, a vida se resumia. Até que, um dia,
nos chegou a notícia: a Rosa Caramela tinha sido presa. Seu único
delito: venerar um colonialista. O chefe das milícias atribuiu a
sentença: saudosismo do passado. A loucura da corcunda escondia
outras, políticas razões. Assim falou o comandante. Não fora isso,
que outro motivo teria ela para se opor, com violência e corpo, ao
derrube da estátua? Sim, porque o monumento era um pé do passado
rasteirando o presente. Urgia a circuncisão da estátua para
respeito da nação.
Do
modo que levaram a velha Rosa, para cura de alegadas mentalidades. Só
então, na ausência dela, vimos o quanto ela compunha a nossa
paisagem.
Ficamos
tempos sem escutar suas notícias. Até que, certa tarde, nosso tio
rasgou os silêncios. Ele vinha do cemitério, chegado do enterro de
Jawane, o enfermeiro. Subiu as pequenas escadas da varanda e
interrompeu o descanso de meu pai. Coçando as pernas, o meu velhote
piscou os olhos, calculando a luz:
—
Então, trouxeste os sapatos?
O
tio não respondeu logo. Estava ocupado a servir-se da sombra,
curando-se da transpiração. Soprou nos próprios lábios, cansado.
No seu rosto eu vi aquele alívio de quem regressa de um enterro.
—
Estão aqui, novinhos. Eh pá, Juca, me
fizeram jeito esses sapatos pretos!
Procurou
nos bolsos, mas o dinheiro, que sempre tem modos rápidos ao entrar,
demorou a sair. Meu pai lhe emendou o gesto:
— A
você não aluguei. Somos da família, calçamos juntos.
O
tio se sentou. Puxou da garrafa de cerveja e encheu um copo grande.
Depois, com ciência, pegou numa colher de pau e retirou a espuma
para outro copo. Meu pai serviu-se desse copo, só com espuma.
Proibido nos líquidos, o velho se dedicava só nos espumantes.
— É
leve, a espuminha. O coração nem nota a passagem dela.
Se
consolava, olhos em riste como se alongasse o pensamento. Não
passava de fingimento aquele afundar-se em si.
—
Estava cheio o enterro?
Enquanto
desamarrava os sapatos, meu tio explicou a enchente, multidões
pisando os canteiros, todos a despedirem do enfermeiro, coitado,
também ele se morreu.
—
Mas matou-se mesmo?
—
Sim, o gajo se pendurou. Encontraram-lhe
já estava duro, parecia gomadinho na corda.
—
Mas matou-se por qual razão?
—
Não sei lá. Dizem foi por motivo de
mulheres.
Calaram-se
os dois, sorvendo os copos. O que mais lhes doía não era o facto
mas o motivo.
—
Morrer assim? Mais vale falecer.
Meu
velho recebeu os sapatos e inspecionou-lhes com desconfiança:
—
Esta terra vem de lá?
— É
onde, esse lá?
—
Pergunto se vem do cemitério.
—
Talvez vem.
—
Então vai lá limpar, não quero poeira
dos mortos aqui.
Meu
tio desceu as escadas e sentou-se no último degrau, escovando as
solas. No enquanto, foi contando. A cerimônia decorria-se, o padre
executava as rezas, abastecendo as almas. De repente, o que sucede?
Aparece a Rosa Caramela, vestida de máximo luto.
— A
Rosa já saiu da prisão?
— perguntou, atônito,
o meu pai.
Sim,
saíra. Numa inspeção à cadeia, lhe deram amnistia. Ela era louca,
não tinha crime mais grave. Meu pai insistia, admirado:
—
Mas ela, no cemitério?
O
tio prosseguiu o relato. A Rosa, por baixo das costas, toda de negro.
Nem um corvo, Juca. Foi entrando, com modos de coveira, espreitando
as sepulturas. Parecia escolher o buraco dela. No cemitério, você
sabe, Juca, lá ninguém demora a visitar as covas. Passamos
depressa. Só essa corcunda, a gaja…
—
Conta o resto
— cortou o meu pai.
Seguiu-se
a narração: a Rosa, ali, no meio de todos, começou a cantar. Com
educado espanto, os presentes a fixavam. O padre mantinha a oração
mas ninguém já lhe ouvia. Foi então que a marreca começou a
despir.
—
Mentira, mano.
Fé
de Cristo, Juca, me desçam duas mil facas. Despiu. Foi tirando os
panos, com mais vagar que esse calor de hoje. Ninguém ria, ninguém
tossia, ninguém nada. Já nua, esroupada, ela se chegou junto à
campa do Jawane. Encimou os braços, lançou as roupas dela na cova.
A multidão receou a visão, recuou uns passos. A Rosa, então,
rezou:
—
Leva essas roupas, Jawane, te vão fazer
falta. Porque tu vais ser pedra, como os outros.
Olhando
os presentes, ela ergueu a voz, parecia maior que uma criatura:
— E
agora: posso gostar?
Os
presentes recuaram, só se escutava a voz da poeira.
—
Hein? Deste morto posso gostar! Já não
é dos tempos. Ou deste também sou proibida?
O
meu pai deixou a cadeira, parecia quase ofendido.
—
Falou assim, a Rosa?
—
Autêntico.
E
o tio, já predispronto, imitava a corcunda, seu
corpo
vesgo: e este, posso-lhe amar? Mas o meu velhote se escapou a ouvir.
—
Cala-te, não quero ouvir mais.
Brusco,
ele largou o copo pelos ares. Queria despejar a espuma mas, de
injusto lapso, saiu-lhe o copo todo da mão. Como se pedisse
desculpa, meu tio foi apanhando os vidrinhos, tombados de costas pelo
quintal.
Nessa
noite, eu desconsegui de dormir. Saí, sentei a insónia no jardim da
frente. Olhei a estátua, estava fora do pedestal. O colono tinha as
barbas pelo chão, parecia que era ele mesmo quem tinha descido, por
soma de grandes cansaços. Tinham arrancado o monumento mas
esqueceram de o retirar, a obra requeria acabamentos. Senti quase
pena do barbudo, sujo das pombas, encharcado de poeira. Me acendi,
vindo ao juízo: estou como a Rosa, pondo sentimento nos pedregulhos?
Foi então que vi a própria, a Caramela, parecia chamada pelos meus
conjuros. Fiquei quase gelado, imovente. Queria fugir, minhas pernas
se negavam. Estremeci: eu me convertia em estátua, virando assunto
das paixões da marreca? Horror, me fugisse a boca para sempre. Mas,
não. A Rosa não parou no jardim. Atravessou a estrada e chegou-se
às escadinhas de nossa casa. Baixou-se nos degraus, limpou deles o
luar. Suas coisas se pousaram num suspiro. Depois, ela se
entartarugou, aprontando-se, quem sabe, ao sono. Ou fosse de sua
intenção apenas a tristeza. Porque lhe escutei chorar, num murmúrio
de águas escuras. A corcunda se derramava, parecia era vez dela se
estatuar. Me infindei, nessa visagem.
Foi,
então. Meu pai, em apuros de silêncio, abriu a porta da varanda.
Lento, se aproximou da corcunda. Por instantes, ficou debruçado
sobre a mulher. Depois, movendo a mão como se fosse um gesto só
sonhado, lhe tocou os cabelos. Rosa nem se esboçava, a princípio.
Mas, depois, foi saindo de si, rosto na metade
da
luz. Olharam-se os dois, ganhando beleza. Ele, então, sussurrou:
—
Não chora, Rosa.
Eu
quase não ouvia, o coração me chegava aos ouvidos. Me aproximei,
sempre por trás do escuro. Meu pai lhe falava ainda, aquela sua voz
nem eu lhe havia nunca ouvido.
—
Sou eu, Rosa. Não lembra?
Eu
estava no meio das buganvílias, seus picos me rasgavam. Nem sentia.
O assombro me espetava mais que os ramos. As mãos de meu pai se
afundavam no cabelo da corcunda, pareciam gente, aquelas mãos,
pareciam gente se afogando.
—
Sou eu, Juca. O seu noivo, não lembra?
Aos
poucos, Rosa Caramela se irrealizou. Ela nunca tanto existira,
nenhuma estátua lhe merecera tantos olhos. Meigando ainda mais a
voz, meu pai lhe chamou:
—
Vamos, Rosa.
Sem
querer eu já saíra das buganvílias. Eles me podiam ver, nem me
fazia nenhum estorvo. Parecia a Lua até atiçou seu brilho quando a
corcunda se ergueu.
—
Vamos, Rosa. Pega suas coisas, vamos
embora.
E
foram-se os dois, noite adentro.
Mia
Couto, in Cada homem é uma raça
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