quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Nove segundos

Naquela noite de 1982, quando fui com uma amiga franco-brasileira assistir ao filme Fitzcarraldo, quase nada conhecia da vida desse barão da borracha peruano.
As referências a esse mestiço ambicioso vinham de um ensaio amazônico de Euclides da Cunha, que, em 1905, navegou até as cabeceiras do Purus. Euclides, que era obcecado pela ideia do progresso e da civilização, entendeu ou intuiu que a barbárie troca de lado sem fazer cerimônia.
Agora, ao ler um ensaio de Benjamin Abdala (Fluxos comunitários: Jangadas, margens e travessias), conheci outras facetas de Carlos Fermín Fitzcarraldo. Filho de um marinheiro norte-americano com uma mestiça peruana, Fitzcarraldo morreu num naufrágio em 1897, quando tinha 35 anos. Mas essa vida breve não o impediu de construir um império econômico e descobrir um varadouro de nove quilômetros que liga o rio Urubamba ao Madre de Diós. Esse istmo, que recebeu o nome de seu descobridor, foi importante para a circulação de pessoas e o fluxo de mercadorias. O jovem magnata tentou transportar para sua propriedade em Madre de Diós um casarão com estrutura metálica construído por Eiffel. Mas, como essa tentativa malogrou, a obra foi erguida em Iquitos.
À semelhança de outros barões do “caucho” que enriqueceram em pouco tempo, Fitzcarraldo foi um predador da floresta e um implacável caçador de índios. Euclides narra, de um modo tragicômico, o primeiro contato do jovem Fitzcarraldo com os “primitivos” machcos; depois afirma que dezenas de índios foram dizimados por armas de fogo do “notável explorador” e seus capangas.
Lembro que naquela noite de inverno parisiense, eu e minha amiga Évelyne paramos de traduzir textos maçantes e fomos ver o filme de Werner Herzog. Os artigos na imprensa diziam que nesse filme havia cenas de Manaus e de seu maior símbolo arquitetônico: o Teatro Amazonas, palco de tantas óperas e operetas durante o fausto da borracha. Mas nesse filme Fitzcarraldo não é o ambicioso seringalista que executou a sangue-frio centenas de índios da Amazônia. O sonho grandioso de Brian Sweeney Fitzgerald, vulgo Fitzcarraldo, é construir um teatro em Iquitos. O subtítulo do filme é O preço de um sonho. Uma tradução mais livre e não menos fiel seria: O preço de uma loucura.
Há várias cenas épicas, de deslumbrante efeito visual, como o barco içado montanha acima por centenas de índios; ou um concerto de ópera a bordo desse mesmo barco, que navega diante do porto de Iquitos, cuja população assiste a esse espetáculo inusitado.
O filme fala da obsessão de Fitzcarraldo pelo canto lírico, que serve de mediação entre a cultura do “civilizado” e a dos “primitivos”. Mas não foram as sequências bombásticas e ousadas as que mais me emocionaram, muito menos a expressão amalucada de Klaus Kinski.
Logo no começo do filme, quando Fitzcarraldo chega a Manaus, vi uma das praças da minha infância e disse isso à minha amiga.
São cenas externas ou foram filmadas num estúdio?”, ela perguntou. “Externas”, eu disse. “É Manaus mesmo.”
Pouco minutos depois, quando a plateia ovacionava a filmagem da ópera Ernani, interpretada por Caruso e Sarah Bernhardt, uma cena de nove segundos me emocionou. No cinema do Boulevard Saint-Germain, reconheci meus pais no centro da tela. E, como minha mãe olhava e ria para a tela, era como se estivesse olhando e rindo para mim.
Voltei várias vezes ao cinema para rever esse par de figurantes felizes, e em cada sessão a saudade que sentia deles só aumentava. Quando telefonei para Manaus, minha mãe perguntou se ela estava bem no filme. Disse que ela era a melhor atriz dentre os seiscentos figurantes.
E o teu pai?”
Sério como sempre”, eu disse. “E bem mais careca. Mas não olhava para a câmera, e sim para ti.”
Ela riu com vontade. O riso, que partiu da margem esquerda do rio Negro e chegou ao orelhão gelado na rive gauche do Sena, era o riso que não pude ouvir no filme.
Nunca mais vi Fitzcarraldo. Faz algum tempo meus pais saíram deste mundo, mas permaneceram na tela, anônimos para os espectadores. Mesmo assim, ainda posso imaginá-los no outro lado do espelho: essa sala eternamente escura e silenciosa, visitada pela memória dos vivos.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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