Naquela
noite de 1982, quando fui com uma amiga franco-brasileira assistir ao
filme Fitzcarraldo, quase nada conhecia da vida desse barão
da borracha peruano.
As
referências a esse mestiço ambicioso vinham de um ensaio amazônico
de Euclides da Cunha, que, em 1905, navegou até as cabeceiras do
Purus. Euclides, que era obcecado pela ideia do progresso e da
civilização, entendeu ou intuiu que a barbárie troca de lado sem
fazer cerimônia.
Agora,
ao ler um ensaio de Benjamin Abdala (Fluxos comunitários:
Jangadas, margens e travessias), conheci outras facetas de Carlos
Fermín Fitzcarraldo. Filho de um marinheiro norte-americano com uma
mestiça peruana, Fitzcarraldo morreu num naufrágio em 1897, quando
tinha 35 anos. Mas essa vida breve não o impediu de construir um
império econômico e descobrir um varadouro de nove quilômetros que
liga o rio Urubamba ao Madre de Diós. Esse istmo, que recebeu o nome
de seu descobridor, foi importante para a circulação de pessoas e o
fluxo de mercadorias. O jovem magnata tentou transportar para sua
propriedade em Madre de Diós um casarão com estrutura metálica
construído por Eiffel. Mas, como essa tentativa malogrou, a obra foi
erguida em Iquitos.
À
semelhança de outros barões do “caucho” que enriqueceram em
pouco tempo, Fitzcarraldo foi um predador da floresta e um implacável
caçador de índios. Euclides narra, de um modo tragicômico, o
primeiro contato do jovem Fitzcarraldo com os “primitivos”
machcos; depois afirma que dezenas de índios foram dizimados por
armas de fogo do “notável explorador” e seus capangas.
Lembro
que naquela noite de inverno parisiense, eu e minha amiga Évelyne
paramos de traduzir textos maçantes e fomos ver o filme de Werner
Herzog. Os artigos na imprensa diziam que nesse filme havia cenas de
Manaus e de seu maior símbolo arquitetônico: o Teatro Amazonas,
palco de tantas óperas e operetas durante o fausto da borracha. Mas
nesse filme Fitzcarraldo não é o ambicioso seringalista que
executou a sangue-frio centenas de índios da Amazônia. O sonho
grandioso de Brian Sweeney Fitzgerald, vulgo Fitzcarraldo, é
construir um teatro em Iquitos. O subtítulo do filme é O preço
de um sonho. Uma tradução mais livre e não menos fiel seria: O
preço de uma loucura.
Há
várias cenas épicas, de deslumbrante efeito visual, como o barco
içado montanha acima por centenas de índios; ou um concerto de
ópera a bordo desse mesmo barco, que navega diante do porto de
Iquitos, cuja população assiste a esse espetáculo inusitado.
O
filme fala da obsessão de Fitzcarraldo pelo canto lírico, que serve
de mediação entre a cultura do “civilizado” e a dos
“primitivos”. Mas não foram as sequências bombásticas e
ousadas as que mais me emocionaram, muito menos a expressão
amalucada de Klaus Kinski.
Logo
no começo do filme, quando Fitzcarraldo chega a Manaus, vi uma das
praças da minha infância e disse isso à minha amiga.
“São
cenas externas ou foram filmadas num estúdio?”, ela perguntou.
“Externas”, eu disse. “É Manaus mesmo.”
Pouco
minutos depois, quando a plateia ovacionava a filmagem da ópera
Ernani, interpretada por Caruso e Sarah Bernhardt, uma cena de
nove segundos me emocionou. No cinema do Boulevard Saint-Germain,
reconheci meus pais no centro da tela. E, como minha mãe olhava e
ria para a tela, era como se estivesse olhando e rindo para mim.
Voltei
várias vezes ao cinema para rever esse par de figurantes felizes, e
em cada sessão a saudade que sentia deles só aumentava. Quando
telefonei para Manaus, minha mãe perguntou se ela estava bem no
filme. Disse que ela era a melhor atriz dentre os seiscentos
figurantes.
“E
o teu pai?”
“Sério
como sempre”, eu disse. “E bem mais careca. Mas não olhava para
a câmera, e sim para ti.”
Ela
riu com vontade. O riso, que partiu da margem esquerda do rio Negro e
chegou ao orelhão gelado na rive gauche do Sena, era o riso que não
pude ouvir no filme.
Nunca
mais vi Fitzcarraldo. Faz algum tempo meus pais saíram deste
mundo, mas permaneceram na tela, anônimos para os espectadores.
Mesmo assim, ainda posso imaginá-los no outro lado do espelho: essa
sala eternamente escura e silenciosa, visitada pela memória dos
vivos.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
Nenhum comentário:
Postar um comentário