quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Recusa de ir-se embora da terra

Fotograma do Filme As vinhas da ira (1940), de John Ford

Fora, no terreiro escuro, trabalhando à luz de uma lanterna, o pai e Al carregavam o caminhão. As ferramentas por baixo de tudo, mas bem à mão para o caso de o motor enguiçar. Depois as caixas com as roupas e os utensílios de cozinha num saco de juta; a seguir, a caixa com os pratos e talheres. O balde foi amarrado atrás. Tentavam formar uma base tão nivelada quanto possível, e encheram os interstícios entre as caixas com cobertores enrolados. Cobriram tudo, depois, com os colchões e assim ficou cheio o fundo do caminhão. Finalmente, estenderam a lona sobre tudo isso e Al furou buracos nas suas extremidades, a meio metro um do outro, enfiou pequenas cordas neles e ligou-as às barras laterais do veículo.
Agora, se chover — disse ele — podemos amarrar a lona nas barras de cima e o pessoal pode ficar embaixo à vontade. Na frente, a gente ficará bem abrigado.
E o pai aplaudiu:
É uma boa ideia, Al.
Isso não é tudo — falou Al. — Assim que puder, vou comprar duas estacas e prender elas no centro do caminhão e estender sobre elas o encerado. Assim, o pessoal também não vai apanhar sol.
E o pai tornou a dizer:
É uma boa ideia. Mas por que ocê não comprou logo as estacas?
Não tive tempo — disse Al.
Não teve tempo? Mas pra andar por aí farreando, cê teve tempo! Deus sabe por onde ocê andou estas duas semanas.
A gente tem que tratar de muita coisa quando se despede de sua terra — disse Al. Depois perdeu um pouco de sua firmeza. — Pai — perguntou —, o senhor tá satisfeito que a gente vá embora?
Hein? Sim... é claro. Quer dizer, acho que sim. A gente não passou nada bem nesta terra. E lá na Califórnia vai ser tudo diferente... tem muito serviço pra gente ganhar dinheiro, e tudo lá é verde e bonito e as casas são bem branquinhas e cercadas de pés de laranjeira.
É verdade que tem laranja por toda a parte?
Bem, talvez não seja em toda a parte, mas em quase todos os lugares, ah, isso tem na certa.
O primeiro véu cinzento da madrugada surgiu e espalhou-se pelo céu. E o trabalho todo estava feito: a carne estava salgada e os galinheiros também estavam prontos para serem içados ao caminhão. A mãe abriu o forno e tirou os ossos de porco, que tinham bastante carne, e carne bem assada e apetitosa. Ruthie estava meio acordada, depois escorregou do caixote e caiu no sono novamente. Mas os adultos estacionavam ao redor da porta, algo trêmulos de frio, e roíam os ossos de porco tostados.
Acho que devemos acordar o avô e a avó — disse Tom. — Vamos partir logo, logo.
A mãe disse:
É melhor a gente esperar até o último minuto. Eles precisam descansar. E também a Ruthie e o Winfield não dormiram direito.
Bem, eles podem dormir no caminhão, depois — disse o pai. — Aquilo ali tá muito bem preparado.
De repente, os cães ergueram-se da poeira e ficaram à escuta, orelhas esticadas. Depois, latindo raivosamente, atiraram-se na escuridão.
Que diabo é isso agora? — perguntou o pai. Um instante depois, ouviram uma voz que procurava apaziguar os cachorros, e os latidos enfraqueceram. Soaram passos, então, e um homem apareceu diante deles. Era Muley Graves, com o chapéu muito puxado sobre os olhos.
Aproximou-se timidamente:
Bom dia — disse.
Mas é o Muley! — exclamou o pai, fazendo um gesto de saudação com a mão que ainda segurava o osso. — Entre, Muley, e coma qualquer coisa com a gente.
Não, obrigado — disse Muley. — Não tô mesmo com fome.
Ora, deixa disso, Muley. Toma lá! — e o pai entrou na casa e trouxe de lá a mão cheia de costeletas.
Eu não queria tirar a comida de vocês — disse ele. — Tava só passando por aqui, então me lembrei de ver como estavam todos e me despedir.
Daqui a pouco vamos partir — disse o pai. — Se ocê tivesse vindo daqui a uma hora, já não encontrava mais a gente. Tá tudo pronto pra viagem, tá vendo?
Tudo pronto. — Muley olhou o caminhão carregado. — Às vezes, eu também tenho vontade de ir procurar a minha gente.
A mãe perguntou:
Cê não teve notícias deles, lá da Califórnia?
Não — disse Muley. — Não tenho notícia nenhuma. Mas talvez seja porque nem fui ao correio saber se tinha alguma coisa. Qualquer dia tenho que ir até lá.
O pai disse:
Al, vai acordar o avô e a avó. Diz pra eles vir comer. Daqui a pouquinho vamos partir. — E quando Al já se ia em direção ao celeiro, o pai virou-se para o recém-chegado: — Muley, se ocê quiser, pode vir com a gente. Há de se arranjar mais um lugarzinho.
Muley deu uma mordida numa das costeletas e ficou mascando a carne.
Às vezes, tenho vontade de ir. Mas sei que não vou nunca — disse. — No último instante, desapareço que nem um fantasma.
Noah disse:
Aqui no campo ocê acaba esticando as canelas qualquer dia, Muley.
Eu sei. Já pensei nisso também. Às vezes, me sinto sozinho como um danado aqui, mas isso não é nada, eu até gosto. Não faz diferença. Mas se falarem à minha gente lá na Califórnia, digam que eu tô bem. Não contem como eu vivo aqui. E que vou pra lá assim que arrumar algum dinheiro.
A mãe perguntou:
E ocê vai mesmo, Muley?
Não — disse Muley brandamente. — Não quero, nem posso sair daqui. Tenho que ficar por aqui mesmo. Faz pouco tempo, inda podia ir. Mas agora não. Quando a gente fica sozinho começa a pensar e acaba sabendo o que quer. Nunca que eu vou pra Califórnia.
A luz da alvorada já era mais viva, empalidecendo a das lamparinas. Al vinha de volta e, ao lado dele, agitado e mancando, vinha o avô.
Ele não tava dormindo — disse Al. — Estava sentado no chão, atrás do celeiro. Acho que alguma coisa aconteceu com ele.
Os olhos do avô estavam embotados e não mais refletiam aquela antiga maldade que lhe era peculiar.
Não há nada comigo — falou. — Só que não quero mais ir com vocês.
Não vem conosco? — perguntou o pai. — Que é que o senhor tá dizendo? Mas a gente já embrulhou tudo. Agora não podemos mais ficar aqui. Não temos mais onde ficar.
Eu não disse procês também ficar. Vocês podem ir à vontade. Mas eu... eu fico. Tive pensando a noite toda nisso. Aqui é a minha terra. Eu sou daqui. E não me importa que lá na Califórnia as uvas até caiam na cama das pessoas. Não vou e pronto. Isso aqui não presta, mas é a minha terra. Vão vocês. Sou daqui e fico é aqui mesmo.
Os outros todos se reuniram em torno do avô e o pai disse:
Mas não pode ser, avô. Os tratores vão ocupar essas terras. Quem é que vai cozinhar pro senhor? Como é que o senhor vai viver? Não pode ficar aqui desse jeito, sem ter ninguém que tome conta do senhor. Vai morrer de fome.
O avô gritou:
Que diabo, eu sou um velho mas ainda sei tomar conta de mim! O Muley, como é que ajeita? Posso muito bem fazer a mesma coisa. Já disse: não vou com vocês. Façam o que quiserem. Podem levar a avó, se quiserem, mas a mim ninguém me tira daqui. E acabou-se!
Mas escute, avô — disse o pai sem jeito. — Escute só um instantinho.
Não quero escutar nada. Já disse o que vou fazer.
Tom tocou o ombro de seu pai:
Ô pai, vamo lá dentro. Quero dizer uma coisa pro senhor. — E quando iam andando em direção à casa, chamou: — Mãe, vem cá um momentinho, sim?
Uma lamparina iluminava a cozinha e o prato de costeletas estava bastante cheio ainda. Tom disse:
Olhe, eu sei que o avô tem o direito de dizer que não quer mais viajar com a gente, mas é que ele não pode ficar de jeito nenhum. Isso nós todos sabemos.
Claro que ele não pode ficar — disse o pai.
Então, eu pensei o seguinte: se a gente agarrar e amarrar ele à força, pode machucar ele, ou ele mesmo pode se machucar. Isso não convém. Também não adianta discutir com ele agora. Mas se ele ficar bêbado, pode mudar de ideia. O senhor tem uísque, pai?
Não — disse o pai. — Nem uma gota. O John também não tem. Quando não bebe, ele não guarda nada de uísque.
A mãe disse:
Tom, eu tenho meio vidro daquele remédio que o Winfield usava pra dormir quando tinha aquela dor de ouvido. Cê acha que serve? O Winfield dormia logo que tomava ele, mesmo quando tava cheio de dor.
Quem sabe? — disse Tom. — Traz ele, mãe. Não custa nada a gente experimentar.
Já botei o vidro no lixo — disse a mãe. Pegou a lamparina e saiu; um momento depois voltou com o vidro de remédio, cheio até a metade de um líquido escuro.
Tom tomou-o das mãos dela, desarrolhou-o e bebeu um gole.
Não tem gosto ruim — disse. — Faz pra ele uma xícara de café forte. Deixa ver... aí diz pra usar uma colher de chá. Mas é melhor a gente botar mais, pelo menos duas colheres de sopa.
A mãe tirou a tampa do fogão, colocou uma chaleira na abertura, bem sobre as brasas, e entornou nela pó de café e água.
Ele vai ter que tomar o café numa lata vazia — falou. — As xícaras já tão todas embrulhadas.
Tom e o pai tornaram a deixar a cozinha.
A gente tem o direito de dizer o que deseja. Ei, quem foi que teve comendo costeletas? — soou a voz do avô.
Nós — disse Tom. — A mãe tá fazendo uma xicra de café pro senhor e tem também carne de porco.
O avô entrou na casa e bebeu o seu café e comeu a carne de porco. O grupo, lá fora, na claridade crescente, ficou a vigiar-lhe os movimentos através da porta aberta. Viu-o bocejar e cambalear um pouco, estender os braços sobre a mesa, inclinar a cabeça e adormecer profundamente.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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