Fotograma do Filme As vinhas da ira (1940), de John Ford
Fora,
no terreiro escuro, trabalhando à luz de uma lanterna, o pai e Al
carregavam o caminhão. As ferramentas por baixo de tudo, mas bem à
mão para o caso de o motor enguiçar. Depois as caixas com as roupas
e os utensílios de cozinha num saco de juta; a seguir, a caixa com
os pratos e talheres. O balde foi amarrado atrás. Tentavam formar
uma base tão nivelada quanto possível, e encheram os interstícios
entre as caixas com cobertores enrolados. Cobriram tudo, depois, com
os colchões e assim ficou cheio o fundo do caminhão. Finalmente,
estenderam a lona sobre tudo isso e Al furou buracos nas suas
extremidades, a meio metro um do outro, enfiou pequenas cordas neles
e ligou-as às barras laterais do veículo.
— Agora,
se chover — disse ele — podemos amarrar a lona nas barras de cima
e o pessoal pode ficar embaixo à vontade. Na frente, a gente ficará
bem abrigado.
E
o pai aplaudiu:
— É
uma boa ideia, Al.
— Isso
não é tudo — falou Al. — Assim que puder, vou comprar duas
estacas e prender elas no centro do caminhão e estender sobre elas o
encerado. Assim, o pessoal também não vai apanhar sol.
E
o pai tornou a dizer:
— É
uma boa ideia. Mas por que ocê não comprou logo as estacas?
— Não
tive tempo — disse Al.
— Não
teve tempo? Mas pra andar por aí farreando, cê teve tempo! Deus
sabe por onde ocê andou estas duas semanas.
— A
gente tem que tratar de muita coisa quando se despede de sua terra —
disse Al. Depois perdeu um pouco de sua firmeza. — Pai —
perguntou —, o senhor tá satisfeito que a gente vá embora?
— Hein?
Sim... é claro. Quer dizer, acho que sim. A gente não passou nada
bem nesta terra. E lá na Califórnia vai ser tudo diferente... tem
muito serviço pra gente ganhar dinheiro, e tudo lá é verde e
bonito e as casas são bem branquinhas e cercadas de pés de
laranjeira.
— É
verdade que tem laranja por toda a parte?
— Bem,
talvez não seja em toda a parte, mas em quase todos os lugares, ah,
isso tem na certa.
O
primeiro véu cinzento da madrugada surgiu e espalhou-se pelo céu. E
o trabalho todo estava feito: a carne estava salgada e os galinheiros
também estavam prontos para serem içados ao caminhão. A mãe abriu
o forno e tirou os ossos de porco, que tinham bastante carne, e carne
bem assada e apetitosa. Ruthie estava meio acordada, depois
escorregou do caixote e caiu no sono novamente. Mas os adultos
estacionavam ao redor da porta, algo trêmulos de frio, e roíam os
ossos de porco tostados.
— Acho
que devemos acordar o avô e a avó — disse Tom. — Vamos partir
logo, logo.
A
mãe disse:
— É
melhor a gente esperar até o último minuto. Eles precisam
descansar. E também a Ruthie e o Winfield não dormiram direito.
— Bem,
eles podem dormir no caminhão, depois — disse o pai. — Aquilo
ali tá muito bem preparado.
De
repente, os cães ergueram-se da poeira e ficaram à escuta, orelhas
esticadas. Depois, latindo raivosamente, atiraram-se na escuridão.
— Que
diabo é isso agora? — perguntou o pai. Um instante depois, ouviram
uma voz que procurava apaziguar os cachorros, e os latidos
enfraqueceram. Soaram passos, então, e um homem apareceu diante
deles. Era Muley Graves, com o chapéu muito puxado sobre os olhos.
Aproximou-se
timidamente:
— Bom
dia — disse.
— Mas
é o Muley! — exclamou o pai, fazendo um gesto de saudação com a
mão que ainda segurava o osso. — Entre, Muley, e coma qualquer
coisa com a gente.
— Não,
obrigado — disse Muley. — Não tô mesmo com fome.
— Ora,
deixa disso, Muley. Toma lá! — e o pai entrou na casa e trouxe de
lá a mão cheia de costeletas.
— Eu
não queria tirar a comida de vocês — disse ele. — Tava só
passando por aqui, então me lembrei de ver como estavam todos e me
despedir.
— Daqui
a pouco vamos partir — disse o pai. — Se ocê tivesse vindo daqui
a uma hora, já não encontrava mais a gente. Tá tudo pronto pra
viagem, tá vendo?
— Tudo
pronto. — Muley olhou o caminhão carregado. — Às vezes, eu
também tenho vontade de ir procurar a minha gente.
A
mãe perguntou:
— Cê
não teve notícias deles, lá da Califórnia?
— Não
— disse Muley. — Não tenho notícia nenhuma. Mas talvez seja
porque nem fui ao correio saber se tinha alguma coisa. Qualquer dia
tenho que ir até lá.
O
pai disse:
— Al,
vai acordar o avô e a avó. Diz pra eles vir comer. Daqui a
pouquinho vamos partir. — E quando Al já se ia em direção ao
celeiro, o pai virou-se para o recém-chegado: — Muley, se ocê
quiser, pode vir com a gente. Há de se arranjar mais um lugarzinho.
Muley
deu uma mordida numa das costeletas e ficou mascando a carne.
— Às
vezes, tenho vontade de ir. Mas sei que não vou nunca — disse. —
No último instante, desapareço que nem um fantasma.
Noah
disse:
— Aqui
no campo ocê acaba esticando as canelas qualquer dia, Muley.
— Eu
sei. Já pensei nisso também. Às vezes, me sinto sozinho como um
danado aqui, mas isso não é nada, eu até gosto. Não faz
diferença. Mas se falarem à minha gente lá na Califórnia, digam
que eu tô bem. Não contem como eu vivo aqui. E que vou pra lá
assim que arrumar algum dinheiro.
A
mãe perguntou:
— E
ocê vai mesmo, Muley?
— Não
— disse Muley brandamente. — Não quero, nem posso sair daqui.
Tenho que ficar por aqui mesmo. Faz pouco tempo, inda podia ir. Mas
agora não. Quando a gente fica sozinho começa a pensar e acaba
sabendo o que quer. Nunca que eu vou pra Califórnia.
A
luz da alvorada já era mais viva, empalidecendo a das lamparinas. Al
vinha de volta e, ao lado dele, agitado e mancando, vinha o avô.
— Ele
não tava dormindo — disse Al. — Estava sentado no chão, atrás
do celeiro. Acho que alguma coisa aconteceu com ele.
Os
olhos do avô estavam embotados e não mais refletiam aquela antiga
maldade que lhe era peculiar.
— Não
há nada comigo — falou. — Só que não quero mais ir com vocês.
— Não
vem conosco? — perguntou o pai. — Que é que o senhor tá
dizendo? Mas a gente já embrulhou tudo. Agora não podemos mais
ficar aqui. Não temos mais onde ficar.
— Eu
não disse procês também ficar. Vocês podem ir à vontade. Mas
eu... eu fico. Tive pensando a noite toda nisso. Aqui é a minha
terra. Eu sou daqui. E não me importa que lá na Califórnia as uvas
até caiam na cama das pessoas. Não vou e pronto. Isso aqui não
presta, mas é a minha terra. Vão vocês. Sou daqui e fico é aqui
mesmo.
Os
outros todos se reuniram em torno do avô e o pai disse:
— Mas
não pode ser, avô. Os tratores vão ocupar essas terras. Quem é
que vai cozinhar pro senhor? Como é que o senhor vai viver? Não
pode ficar aqui desse jeito, sem ter ninguém que tome conta do
senhor. Vai morrer de fome.
O
avô gritou:
— Que
diabo, eu sou um velho mas ainda sei tomar conta de mim! O Muley,
como é que ajeita? Posso muito bem fazer a mesma coisa. Já disse:
não vou com vocês. Façam o que quiserem. Podem levar a avó, se
quiserem, mas a mim ninguém me tira daqui. E acabou-se!
— Mas
escute, avô — disse o pai sem jeito. — Escute só um
instantinho.
— Não
quero escutar nada. Já disse o que vou fazer.
Tom
tocou o ombro de seu pai:
— Ô
pai, vamo lá dentro. Quero dizer uma coisa pro senhor. — E quando
iam andando em direção à casa, chamou: — Mãe, vem cá um
momentinho, sim?
Uma
lamparina iluminava a cozinha e o prato de costeletas estava bastante
cheio ainda. Tom disse:
— Olhe,
eu sei que o avô tem o direito de dizer que não quer mais viajar
com a gente, mas é que ele não pode ficar de jeito nenhum. Isso nós
todos sabemos.
— Claro
que ele não pode ficar — disse o pai.
— Então,
eu pensei o seguinte: se a gente agarrar e amarrar ele à força,
pode machucar ele, ou ele mesmo pode se machucar. Isso não convém.
Também não adianta discutir com ele agora. Mas se ele ficar bêbado,
pode mudar de ideia. O senhor tem uísque, pai?
— Não
— disse o pai. — Nem uma gota. O John também não tem. Quando
não bebe, ele não guarda nada de uísque.
A
mãe disse:
— Tom,
eu tenho meio vidro daquele remédio que o Winfield usava pra dormir
quando tinha aquela dor de ouvido. Cê acha que serve? O Winfield
dormia logo que tomava ele, mesmo quando tava cheio de dor.
— Quem
sabe? — disse Tom. — Traz ele, mãe. Não custa nada a gente
experimentar.
— Já
botei o vidro no lixo — disse a mãe. Pegou a lamparina e saiu; um
momento depois voltou com o vidro de remédio, cheio até a metade de
um líquido escuro.
Tom
tomou-o das mãos dela, desarrolhou-o e bebeu um gole.
— Não
tem gosto ruim — disse. — Faz pra ele uma xícara de café forte.
Deixa ver... aí diz pra usar uma colher de chá. Mas é melhor a
gente botar mais, pelo menos duas colheres de sopa.
A
mãe tirou a tampa do fogão, colocou uma chaleira na abertura, bem
sobre as brasas, e entornou nela pó de café e água.
— Ele
vai ter que tomar o café numa lata vazia — falou. — As xícaras
já tão todas embrulhadas.
Tom
e o pai tornaram a deixar a cozinha.
— A
gente tem o direito de dizer o que deseja. Ei, quem foi que teve
comendo costeletas? — soou a voz do avô.
— Nós
— disse Tom. — A mãe tá fazendo uma xicra de café pro senhor e
tem também carne de porco.
O
avô entrou na casa e bebeu o seu café e comeu a carne de porco. O
grupo, lá fora, na claridade crescente, ficou a vigiar-lhe os
movimentos através da porta aberta. Viu-o bocejar e cambalear um
pouco, estender os braços sobre a mesa, inclinar a cabeça e
adormecer profundamente.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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