Não
sou homem de igreja. Não creio e isso me dá uma tristeza. Porque,
afinal, tenho em mim a religiosidade exigível a qualquer crente. Sou
religioso sem religião. Sofro, afinal, a doença da poesia: sonho
lugares em que nunca estive, acredito só no que não se pode provar.
E, mesmo se eu hoje rezasse, não saberia o que pedir a Deus. Esse é
o meu medo: só os loucos não sabem o que pedir a Deus. Ou não se
dará o caso de Deus ter perdido fé nos homens? Enfim, meu gosto de
visitar as igrejas vem apenas da tranquilitude desses lugarinhos
côncavos, cheios de sombras sossegadas. Lá eu sei respirar. Fora
fica o mundo e suas desacudidas misérias.
Pois
numa dessas visitas me aconteceu o que não posso evitar de
relembrar. A igrejinha era de pedra crua, dessa pedra tão idosa como
a terra. Nem parecia obra de humano traço. Eu apreciava as figuras
dos santos, madeiras com alma de se crer. Foi quando escutei uns
bichanos. Primeiro, duvidei. Eram sons que não se traduziam em nada
de terreste. Estaria eu a ser chamado por forças do além?
Estremeci. Quem está preparado para dialogar com a eternidade? Os
sibilos prosseguiam e, então, me discerni: era uma velha que me
chamava. Estava meio encoberta por uma coluna. Orava com o corpo
todo, debruçada nessa pequenez de quem pede mais do que é devido.
Voltei a ouvir seu murmurinho:
— Pssst,
pssst.
— Eu?
— Sim,
próprio você. Me ajude levantar.
Tentei
ajudá-la a se erguer. Desconsegui. Nem eu esperava peso tão
volumoso daquela mínima criatura. Voltei a puxar. Nem uma carne nela
se moveu. A velha não conseguia desajoelhar-se. A rótula dela
estava colada no chão, ela não podia se levantar. E me pedia um
socorro de força e carrego. Logo a mim que sofro dos ossos,
reumasmático. Um papelito de menos de 25 linhas para mim já é um
peso tonelável. Que fazer? Me sentei ao lado da velha, hesitando em
como lhe pegar.
— Vá
me ajude, me empurre deste chão. Depresse-se, moço, que já estou
ficando pedra.
Voltei
a ajeitar as mãos no corpo dela. Era um peso sem vida, com mais
gravidade que um planeta.
— Não
rodilhe meu vestidinho. Isso veio das calamidades, fui dada esta
roupita com os padres.
Esforcei
outras tentativas: a velha não descolava. Nem um milimetrinho.
Estranhei. Estaria ela a fazer-me pouco? Um corpinho, magrito como
assim, exibir tanta tonelagem? Pensei em chamar por ajuda. Mas
ninguém mais não havia.
— Espere:
vou chamar mais alguém.
— Não
me deixa sozinha, meu filho. Não me deixe, por favor.
Me
levantei para espreitar: a igrejinha estava vazia. Dei uma volta, fui
à sacristia. Ninguém. Me juntei à velha e lhe disse que ia chamar
alguém lá fora, à rua. A senhora me segurou as mãos, com febril
fervor:
— Lá
fora, não. Não vá lá fora. Tente mais uma vez, só mais uma vez.
Ainda
me apliquei em novas forças, dobrei os intentos. Nem um deslizar da
velha. De repente, eclatou o som iremediável de uma porta. Apurei os
olhos na penumbra. Tinham fechado as pesadas portadas da igreja.
Acorri, demasiado tarde. Chamei, gritei, bati, pés e mãos. Em vão.
Tentava arrombar a porta, a velha me dissuadiu. Era pecado mais que
mortal machucar a casa de Deus.
— Mas
é para sairmos, não podemos ficar aqui presos.
Contudo,
a porta era à prova de forças. A verdade era que eu e a beata
estávamos prisioneiros daquele escuro. Acendi todas as velas que
encontrei e me sentei junto da velha. Escutei as suas falagens: sabe,
meu filho, sabe o que estive a pedir a Deus? Estive a pedir que me
levasse, minha palhota lá em cima já está pronta. E eu aqui já me
custo tanto! Problema é eu já não tenho corpo para ir sozinha para
o céu. Estou tão velha, tão cansadíssima que não aguento subir
todos esses caminhos até lá, nos aléns. Pedi sabe o quê? Pedi que
me vertesse em pássaro, desses capazes de compridas voações,
desses que viajam até passar os infinitos. É verdade, filho. Esta
tarde pedi a Deus que me vertesse em pássaro. E me desse asas só
para me levar deste mundo.
Adormeci
nessa lenga-lengação dela. Me afundei em sono igual à pedra onde
me deitava. Fiquei em total cancelamento: na ausência do ruído, dos
queixumes e rebuliços da cidade. Acordei no dia seguinte, sacudido
pelo padre: o que eu fazia ali, dormindo como um larápio, um
pilha-patos? Expliquei o motivo da velha.
— Qual
velha?, perguntou o sacerdote.
Olhei.
Da velha nem o sopro. Não estava aqui uma senhora com os joelhos
amarrados no chão? O padre, de impaciente paciência, me pediu que
saísse. E que não voltasse a usar indevidamente o sagrado daquele
lugar. Sai, cabistonto. Para além da porta, o mundo era de se
admirar, coisa de curar antigas melancolias. A luz da manhã me
estrelinhou as vistas. Nada cega mais que o sol.
Naquela
estonteação me chegou a repentina visão de uma ave, enormíssima
em branquejos. Ali mesmo, à minha frente, o pássaro desarpoava,
esvoando entre chão e folhagens. Acenei, sem jeito, barafundido. Ela
sorriu-me: que fazes, me despedes? Não, eu não vou a nenhum
lado. Foi mentira esse pedido que eu fiz a Deus. Aldrabei-Lhe bem. Eu
não quero subir para lá, para as eternidades. Eu quero ser pássaro
é para voar a vida. Eu quero viajar é neste mundo. E este mundo,
meu filho, é coisa para não se deixar por nada desse mundo.
E
levantou voo em fantásticas alegrias.
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
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