quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A velha engolida pela pedra

Não sou homem de igreja. Não creio e isso me dá uma tristeza. Porque, afinal, tenho em mim a religiosidade exigível a qualquer crente. Sou religioso sem religião. Sofro, afinal, a doença da poesia: sonho lugares em que nunca estive, acredito só no que não se pode provar. E, mesmo se eu hoje rezasse, não saberia o que pedir a Deus. Esse é o meu medo: só os loucos não sabem o que pedir a Deus. Ou não se dará o caso de Deus ter perdido fé nos homens? Enfim, meu gosto de visitar as igrejas vem apenas da tranquilitude desses lugarinhos côncavos, cheios de sombras sossegadas. Lá eu sei respirar. Fora fica o mundo e suas desacudidas misérias.
Pois numa dessas visitas me aconteceu o que não posso evitar de relembrar. A igrejinha era de pedra crua, dessa pedra tão idosa como a terra. Nem parecia obra de humano traço. Eu apreciava as figuras dos santos, madeiras com alma de se crer. Foi quando escutei uns bichanos. Primeiro, duvidei. Eram sons que não se traduziam em nada de terreste. Estaria eu a ser chamado por forças do além? Estremeci. Quem está preparado para dialogar com a eternidade? Os sibilos prosseguiam e, então, me discerni: era uma velha que me chamava. Estava meio encoberta por uma coluna. Orava com o corpo todo, debruçada nessa pequenez de quem pede mais do que é devido. Voltei a ouvir seu murmurinho:
Pssst, pssst.
Eu?
Sim, próprio você. Me ajude levantar.
Tentei ajudá-la a se erguer. Desconsegui. Nem eu esperava peso tão volumoso daquela mínima criatura. Voltei a puxar. Nem uma carne nela se moveu. A velha não conseguia desajoelhar-se. A rótula dela estava colada no chão, ela não podia se levantar. E me pedia um socorro de força e carrego. Logo a mim que sofro dos ossos, reumasmático. Um papelito de menos de 25 linhas para mim já é um peso tonelável. Que fazer? Me sentei ao lado da velha, hesitando em como lhe pegar.
Vá me ajude, me empurre deste chão. Depresse-se, moço, que já estou ficando pedra.
Voltei a ajeitar as mãos no corpo dela. Era um peso sem vida, com mais gravidade que um planeta.
Não rodilhe meu vestidinho. Isso veio das calamidades, fui dada esta roupita com os padres.
Esforcei outras tentativas: a velha não descolava. Nem um milimetrinho. Estranhei. Estaria ela a fazer-me pouco? Um corpinho, magrito como assim, exibir tanta tonelagem? Pensei em chamar por ajuda. Mas ninguém mais não havia.
Espere: vou chamar mais alguém.
Não me deixa sozinha, meu filho. Não me deixe, por favor.
Me levantei para espreitar: a igrejinha estava vazia. Dei uma volta, fui à sacristia. Ninguém. Me juntei à velha e lhe disse que ia chamar alguém lá fora, à rua. A senhora me segurou as mãos, com febril fervor:
Lá fora, não. Não vá lá fora. Tente mais uma vez, só mais uma vez.
Ainda me apliquei em novas forças, dobrei os intentos. Nem um deslizar da velha. De repente, eclatou o som iremediável de uma porta. Apurei os olhos na penumbra. Tinham fechado as pesadas portadas da igreja. Acorri, demasiado tarde. Chamei, gritei, bati, pés e mãos. Em vão. Tentava arrombar a porta, a velha me dissuadiu. Era pecado mais que mortal machucar a casa de Deus.
Mas é para sairmos, não podemos ficar aqui presos.
Contudo, a porta era à prova de forças. A verdade era que eu e a beata estávamos prisioneiros daquele escuro. Acendi todas as velas que encontrei e me sentei junto da velha. Escutei as suas falagens: sabe, meu filho, sabe o que estive a pedir a Deus? Estive a pedir que me levasse, minha palhota lá em cima já está pronta. E eu aqui já me custo tanto! Problema é eu já não tenho corpo para ir sozinha para o céu. Estou tão velha, tão cansadíssima que não aguento subir todos esses caminhos até lá, nos aléns. Pedi sabe o quê? Pedi que me vertesse em pássaro, desses capazes de compridas voações, desses que viajam até passar os infinitos. É verdade, filho. Esta tarde pedi a Deus que me vertesse em pássaro. E me desse asas só para me levar deste mundo.
Adormeci nessa lenga-lengação dela. Me afundei em sono igual à pedra onde me deitava. Fiquei em total cancelamento: na ausência do ruído, dos queixumes e rebuliços da cidade. Acordei no dia seguinte, sacudido pelo padre: o que eu fazia ali, dormindo como um larápio, um pilha-patos? Expliquei o motivo da velha.
Qual velha?, perguntou o sacerdote.
Olhei. Da velha nem o sopro. Não estava aqui uma senhora com os joelhos amarrados no chão? O padre, de impaciente paciência, me pediu que saísse. E que não voltasse a usar indevidamente o sagrado daquele lugar. Sai, cabistonto. Para além da porta, o mundo era de se admirar, coisa de curar antigas melancolias. A luz da manhã me estrelinhou as vistas. Nada cega mais que o sol.
Naquela estonteação me chegou a repentina visão de uma ave, enormíssima em branquejos. Ali mesmo, à minha frente, o pássaro desarpoava, esvoando entre chão e folhagens. Acenei, sem jeito, barafundido. Ela sorriu-me: que fazes, me despedes? Não, eu não vou a nenhum lado. Foi mentira esse pedido que eu fiz a Deus. Aldrabei-Lhe bem. Eu não quero subir para lá, para as eternidades. Eu quero ser pássaro é para voar a vida. Eu quero viajar é neste mundo. E este mundo, meu filho, é coisa para não se deixar por nada desse mundo.
E levantou voo em fantásticas alegrias.
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

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