Alta
dirigiu na volta. Eu havia recebido recentemente uma multa por
dirigir embriagado. Seguimos pela costa até Santa Monica. Lá
estavam o oceano e as areias na escuridão. Não havia lua. Lá
estavam os peixes. Os faróis dos automóveis cruzavam por nós.
Seguíamos as lanternas traseiras vermelhas. O inferno ficava logo à
frente, abaixo do céu, estendendo seus braços. Poucos enxergavam
isso agora, mas acabariam por enxergar.
Fiquei
escutando o motor, tentando obter alguma salvação a partir deste
som. A caminho de Santa Monica, palmeiras altas começaram a surgir à
direita. Aquelas palmeiras que John Bante, o garoto do Colorado,
tanto mencionara em seus textos. Num momento de fraqueza, saquei a
rolha do vinho, passei a garrafa para Alta. Tomou um gole, como uma
profissional, olhando direto para a estrada, devolveu-a para mim...
Bante
acabou por concluir o romance. Digo, ele saiu do hospital após a
operação e o ditou a Mary, que se ocupou de datilografá-lo. Talvez
John estivesse de olho no tempo. Recebi uma cópia do original e era
uma leitura agradável. Não era Sporting Times , mas para um homem
cego, sem as pernas, funcionava superbem. Mesmo para um homem inteiro
teria sido um ótimo trabalho. Fiquei feliz quando Larkin me disse
que iria publicar o livro. E também alguns de seus primeiros textos.
Bante havia ressurgido das trevas. Sporting Times vendeu bem e as
críticas foram excelentes. Os críticos estavam impressionados com o
fato de este homem ter permanecido nas sombras por todas essas
décadas. Sporting Times estava sendo traduzido para ser editado na
Alemanha. E Bante chegou mesmo a cogitar mentalmente a possibilidade
de outro romance.
Acho
que uma ou duas semanas se passaram, não, talvez mais, umas três
semanas, me perdoem. De qualquer forma, recebi um telefonema de Mary
numa manhã de ressaca.
– Ele
voltou para o hospital, Hank...
– Outra
operação?
–
Sim...
Caralho,
pensei, quanto ainda podem cortar? O que ainda lhe resta?
Peguei
o número do quarto e fui com Alta até lá...
Ao
chegarmos, Bante estava sozinho no quarto. Parecia estar dormindo.
Podia ver sua respiração. Fomos em busca de um café.
Ao
retornarmos, havia uma enfermeira por ali, uma daquelas faceiras, que
já viram tanto o sofrimento dos mortos e dos moribundos que tudo se
tornou quase uma brincadeira. Recebeu-nos com um sorriso por sobre o
ombro:
– Só
um pouquinho, o bebê está tomando sua injeção.
Aguardamos
do lado de fora. Então ela apareceu, ainda sorrindo:
– Muito
bem, docinhos, ele é todo de vocês!
Entramos.
– Olá,
John, é o Hank e a Alta.
– Odeio
aquela enfermeira – ele disse –, ela consegue ser tão sensível
quanto um besouro japonês.
–
Trouxemos
flores – disse Alta. – Acho que você não pode ver, mas pode
sentir o cheiro delas. Aqui...
– Sim,
o cheiro está ótimo... Fico feliz que tenham vindo...
– Não
há um vaso por aqui – disse Alta. – Vou ver se arranjo um vaso.
Ela
saiu.
– Bem,
Hank, como vão as coisas?
– Ia
perguntar o mesmo para você, mas estava com medo da resposta.
– Bem,
como pode ver, o dr. Lop não deixa nunca de afiar suas facas.
Me
sentei.
–
Precisa
de água, cigarros? Esvaziar a comadre.
– Não,
está tudo certo...
– Isto
aqui é pior do que o inferno.
–
Gostaria
de estar em casa. Não consigo trabalhar aqui.
–
Imagino.
Mas escute, andei pensando sobre uma coisa...
– O
quê?
– O
que aconteceu com aquela maravilhosa Carmen em Sporting Times? Ela
realmente desapareceu no deserto?
– Não.
Ela voltou. Depois acabou se revelando uma desgraçada duma lésbica!
– ele riu.
– Puta
que pariu!
*
Alta
retornou com as flores no vaso.
– Que
tipo de hospital é este? Foi uma luta encontrar um vaso.
– É
um circo – disse Bante. – Nesta manhã estava por aqui um cara
que costumava fazer o papel de Tarzan, ele corria ao longo dos
corredores dando o seu grito das selvas. Por fim, conseguiram levá-lo
de volta para o quarto. Ele é inofensivo. Mas acho que fez com que
todos nos sentíssemos melhor. Fez a gente lembrar o passado, quando
todos estávamos na ativa...
– Ele
já entrou aqui?
– Sim,
mostrei a ele os meus cotocos e o pobre saiu correndo... Talvez seja
melhor estar aqui mesmo. Se estivesse em casa, Mary teria que ficar
sentada com uma espingarda no colo para não deixar os carregadores
de lixo me levarem...
– Não
fale uma coisa dessas... – disse Alta.
– O
que mais me incomoda são os olhos. Não estou chorando, mas as
lágrimas não param de correr. Me disseram que a única maneira de
impedir isso é retirando os olhos. O que você acha, Hank?
– Não
sou médico. Mas se fosse comigo, eu diria “não”.
– Por
quê? – Sempre acredito na possibilidade de um milagre.
– Achei
que você era o durão, o realista?
–
Também
sou um jogador. Vai começar um novo livro?
Até
então o rosto de John estivera de um marrom-acinzentado. Ao nos
fazer um breve resumo da ideia central do próximo romance, seu rosto
começou a se iluminar. Até que terminou de nos falar.
–
Parece
bem legal – disse Alta.
– Você
deveria escrevê-lo – eu disse.
Então
ficamos os três em silêncio. A conversa tinha ajudado, mas também
o deixara cansado. Haviam nos dito que não havia problema em
conversar com ele. O que eles sabiam?
Alguns
minutos se passaram. Então Bante voltou a falar:
– É
estranho pensar em como todos eles sumiram, todas as pessoas com quem
eu saía. Os camaradas, os bons amigos... Pessoas com as quais
convivi por anos, tantos e tantos anos... Quando a doença se
agravou, houve uma ou outra demonstração de apoio, mas no início,
porque depois todos desapareceram. Seguiram lá no mundo deles, onde
não havia mais lugar para mim. Jamais poderia imaginar que as coisas
seriam assim...
–
Estamos
aqui, John...
– Eu
sei. Isso é bom... Me fale sobre o Hank, Alta... Ele é mesmo tão
durão quanto deixa transparecer nos textos?
– Que
nada. É um manteiga derretida. São 110 quilos de pura manteiga.
– Era
o que eu imaginava.
–
Escute,
John, você está com um bom argumento para o seu próximo romance.
Mas por que não escreve sobre o que está acontecendo agora? Sobre
como os seus amigos deixaram você na mão?
E
quis acrescentar, deixando-o aí por horas, coberto por um lençol,
sem as pernas, cego, abandonado, esquecido num leito de hospital.
Enquanto estão por aí correndo atrás de grana ou mulheres ou
homens, ou mostrando seu brilho em conversas de festinhas. Ou
vidrados em televisores gigantes. Ou o que quer que essa gente faça,
esse pessoal de Hollywood que só produz merda e mais merda e mais
merda, mas que julgam ser a maior das maravilhas, assim como faz seu
público.
– Não,
não, não quero fazer isso.
John
Bante, o bom moço até o fim.
– Se
tem algo que vi demais nas pessoas é a amargura. É uma coisa
horrorosa, como quase todo mundo acaba se tornando amargo. É triste,
é muito triste...
– Você
está certo, John – disse Alta.
– Estou
cansado. É melhor vocês irem...
–
Tchau,
John...
–
Tchau...
Mergulhei
em meus textos, que me pareciam ir bem – com a ajuda de Céline,
Turguêniev e John Bante. Mas escrever é uma coisa estranha: você
nunca chega a lugar algum você pode até se aproximar, mas nunca
chega. É por isso que a maioria de nós precisa seguir em frente:
estamos sendo enganados, mas não podemos desistir. A insensatez é
muitas vezes a própria recompensa.
Soube
por meio de Larkin que Mary estava para perder a casa de Malibu. O
Movie Hospital não estava disposto a cobrir o total das despesas. Os
doutores Lops da vida tinham de ser pagos. As operações eram caras
e eles não queriam ter que dirigir um velho Mercedes por muito
tempo... No pé em que as coisas estavam, logo iam pedir a casa de
Malibu. Não morrer era um luxo que ele não podia se dar. Hospitais,
que deveriam ser casas de misericórdia, eram casas de negócio,
somente mais uma porra de negócio.
Antes
que eu pudesse fazer outra viagem até lá, e eu esperei demais,
tenho certeza de que não sou muito melhor do que os amigos de John
que o abandonaram, antes que eu pudesse fazer outra viagem até lá,
o telefone tocou. Era Mary.
– John
está morto – ela disse.
Não
lembro o que respondi. Não deve ter sido nada muito bom. Me senti
vazio. Acho que disse alguma coisa como, melhor assim. Você está
bem?
Idiota,
idiota.
Anotei
o local, a hora e o dia do enterro.
Viver,
morrer, ser enterrado. Aqueles que sobrevivem trocam o óleo, se
lubrificam. Trepam, talvez. Dormem. Pedem por ovos mexidos, ovos
cozidos, ovos moles...
Era
um dia quente, encontramos a igreja, quase atrasados, a Pacific Coast
Highway tinha sido bloqueada e nos vimos presos num enorme
engarrafamento e a única maneira que descobri para chegar até a
igreja foi seguir um carro funerário, que se revelou o carro certo.
A
família estava lá e também uns poucos amigos. Me perguntaram se eu
não queria fazer o discurso fúnebre, mas preferi recusar, sabedor
de que não conseguiria conter as lágrimas e que aquilo faria com
que todos se sentissem ainda piores. Vi Ben Pheasants por lá. Ben
tinha escrito ótimos artigos sobre Bante, um dos quais saíra no LA
Times. Tínhamos sido camaradas certa época. Mas acabei avacalhando
com ele num poema.
Boa
parte de nós começou a se dirigir para os automóveis. Alta segurou
minha mão. Mary permaneceu na cadeira. Ao nos afastarmos, avistei o
filho de John, Harry.
– Vá
pegá-los, Hank! – ele disse.
–
Certo,
Harry...
Então,
depois de dizer isso, me senti muito egoísta, mas era tarde demais.
Eu sabia o que ele queria dizer, melhor, talvez eu soubesse o que ele
queria dizer: seu pai, John Bante, havia me emprestado um jeito de
fazer as coisas...
E
isso era tudo, tudo o que realmente importava.
Eu
havia conhecido meu ídolo. Pouquíssimas pessoas conseguem fazer
isso de verdade.
Charles
Bukowski, in Pedaços de um caderno manchado de vinho
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