domingo, 30 de abril de 2017

Eu conheço o mestre (trecho)

Alta dirigiu na volta. Eu havia recebido recentemente uma multa por dirigir embriagado. Seguimos pela costa até Santa Monica. Lá estavam o oceano e as areias na escuridão. Não havia lua. Lá estavam os peixes. Os faróis dos automóveis cruzavam por nós. Seguíamos as lanternas traseiras vermelhas. O inferno ficava logo à frente, abaixo do céu, estendendo seus braços. Poucos enxergavam isso agora, mas acabariam por enxergar.
Fiquei escutando o motor, tentando obter alguma salvação a partir deste som. A caminho de Santa Monica, palmeiras altas começaram a surgir à direita. Aquelas palmeiras que John Bante, o garoto do Colorado, tanto mencionara em seus textos. Num momento de fraqueza, saquei a rolha do vinho, passei a garrafa para Alta. Tomou um gole, como uma profissional, olhando direto para a estrada, devolveu-a para mim...
Bante acabou por concluir o romance. Digo, ele saiu do hospital após a operação e o ditou a Mary, que se ocupou de datilografá-lo. Talvez John estivesse de olho no tempo. Recebi uma cópia do original e era uma leitura agradável. Não era Sporting Times , mas para um homem cego, sem as pernas, funcionava superbem. Mesmo para um homem inteiro teria sido um ótimo trabalho. Fiquei feliz quando Larkin me disse que iria publicar o livro. E também alguns de seus primeiros textos. Bante havia ressurgido das trevas. Sporting Times vendeu bem e as críticas foram excelentes. Os críticos estavam impressionados com o fato de este homem ter permanecido nas sombras por todas essas décadas. Sporting Times estava sendo traduzido para ser editado na Alemanha. E Bante chegou mesmo a cogitar mentalmente a possibilidade de outro romance.
Acho que uma ou duas semanas se passaram, não, talvez mais, umas três semanas, me perdoem. De qualquer forma, recebi um telefonema de Mary numa manhã de ressaca.
Ele voltou para o hospital, Hank...
Outra operação?
Sim...
Caralho, pensei, quanto ainda podem cortar? O que ainda lhe resta?
Peguei o número do quarto e fui com Alta até lá...
Ao chegarmos, Bante estava sozinho no quarto. Parecia estar dormindo. Podia ver sua respiração. Fomos em busca de um café.
Ao retornarmos, havia uma enfermeira por ali, uma daquelas faceiras, que já viram tanto o sofrimento dos mortos e dos moribundos que tudo se tornou quase uma brincadeira. Recebeu-nos com um sorriso por sobre o ombro:
Só um pouquinho, o bebê está tomando sua injeção.
Aguardamos do lado de fora. Então ela apareceu, ainda sorrindo:
Muito bem, docinhos, ele é todo de vocês!
Entramos.
Olá, John, é o Hank e a Alta.
Odeio aquela enfermeira – ele disse –, ela consegue ser tão sensível quanto um besouro japonês.
Trouxemos flores – disse Alta. – Acho que você não pode ver, mas pode sentir o cheiro delas. Aqui...
Sim, o cheiro está ótimo... Fico feliz que tenham vindo...
Não há um vaso por aqui – disse Alta. – Vou ver se arranjo um vaso.
Ela saiu.
Bem, Hank, como vão as coisas?
Ia perguntar o mesmo para você, mas estava com medo da resposta.
Bem, como pode ver, o dr. Lop não deixa nunca de afiar suas facas.
Me sentei.
Precisa de água, cigarros? Esvaziar a comadre.
Não, está tudo certo...
Isto aqui é pior do que o inferno.
Gostaria de estar em casa. Não consigo trabalhar aqui.
Imagino. Mas escute, andei pensando sobre uma coisa...
O quê?
O que aconteceu com aquela maravilhosa Carmen em Sporting Times? Ela realmente desapareceu no deserto?
Não. Ela voltou. Depois acabou se revelando uma desgraçada duma lésbica! – ele riu.
Puta que pariu!
*
Alta retornou com as flores no vaso.
Que tipo de hospital é este? Foi uma luta encontrar um vaso.
É um circo – disse Bante. – Nesta manhã estava por aqui um cara que costumava fazer o papel de Tarzan, ele corria ao longo dos corredores dando o seu grito das selvas. Por fim, conseguiram levá-lo de volta para o quarto. Ele é inofensivo. Mas acho que fez com que todos nos sentíssemos melhor. Fez a gente lembrar o passado, quando todos estávamos na ativa...
Ele já entrou aqui?
Sim, mostrei a ele os meus cotocos e o pobre saiu correndo... Talvez seja melhor estar aqui mesmo. Se estivesse em casa, Mary teria que ficar sentada com uma espingarda no colo para não deixar os carregadores de lixo me levarem...
Não fale uma coisa dessas... – disse Alta.
O que mais me incomoda são os olhos. Não estou chorando, mas as lágrimas não param de correr. Me disseram que a única maneira de impedir isso é retirando os olhos. O que você acha, Hank?
Não sou médico. Mas se fosse comigo, eu diria “não”.
Por quê? – Sempre acredito na possibilidade de um milagre.
Achei que você era o durão, o realista?
Também sou um jogador. Vai começar um novo livro?
Até então o rosto de John estivera de um marrom-acinzentado. Ao nos fazer um breve resumo da ideia central do próximo romance, seu rosto começou a se iluminar. Até que terminou de nos falar.
Parece bem legal – disse Alta.
Você deveria escrevê-lo – eu disse.
Então ficamos os três em silêncio. A conversa tinha ajudado, mas também o deixara cansado. Haviam nos dito que não havia problema em conversar com ele. O que eles sabiam?
Alguns minutos se passaram. Então Bante voltou a falar:
É estranho pensar em como todos eles sumiram, todas as pessoas com quem eu saía. Os camaradas, os bons amigos... Pessoas com as quais convivi por anos, tantos e tantos anos... Quando a doença se agravou, houve uma ou outra demonstração de apoio, mas no início, porque depois todos desapareceram. Seguiram lá no mundo deles, onde não havia mais lugar para mim. Jamais poderia imaginar que as coisas seriam assim...
Estamos aqui, John...
Eu sei. Isso é bom... Me fale sobre o Hank, Alta... Ele é mesmo tão durão quanto deixa transparecer nos textos?
Que nada. É um manteiga derretida. São 110 quilos de pura manteiga.
Era o que eu imaginava.
Escute, John, você está com um bom argumento para o seu próximo romance. Mas por que não escreve sobre o que está acontecendo agora? Sobre como os seus amigos deixaram você na mão?
E quis acrescentar, deixando-o aí por horas, coberto por um lençol, sem as pernas, cego, abandonado, esquecido num leito de hospital. Enquanto estão por aí correndo atrás de grana ou mulheres ou homens, ou mostrando seu brilho em conversas de festinhas. Ou vidrados em televisores gigantes. Ou o que quer que essa gente faça, esse pessoal de Hollywood que só produz merda e mais merda e mais merda, mas que julgam ser a maior das maravilhas, assim como faz seu público.
Não, não, não quero fazer isso.
John Bante, o bom moço até o fim.
Se tem algo que vi demais nas pessoas é a amargura. É uma coisa horrorosa, como quase todo mundo acaba se tornando amargo. É triste, é muito triste...
Você está certo, John – disse Alta.
Estou cansado. É melhor vocês irem...
Tchau, John...
Tchau...
Mergulhei em meus textos, que me pareciam ir bem – com a ajuda de Céline, Turguêniev e John Bante. Mas escrever é uma coisa estranha: você nunca chega a lugar algum você pode até se aproximar, mas nunca chega. É por isso que a maioria de nós precisa seguir em frente: estamos sendo enganados, mas não podemos desistir. A insensatez é muitas vezes a própria recompensa.
Soube por meio de Larkin que Mary estava para perder a casa de Malibu. O Movie Hospital não estava disposto a cobrir o total das despesas. Os doutores Lops da vida tinham de ser pagos. As operações eram caras e eles não queriam ter que dirigir um velho Mercedes por muito tempo... No pé em que as coisas estavam, logo iam pedir a casa de Malibu. Não morrer era um luxo que ele não podia se dar. Hospitais, que deveriam ser casas de misericórdia, eram casas de negócio, somente mais uma porra de negócio.
Antes que eu pudesse fazer outra viagem até lá, e eu esperei demais, tenho certeza de que não sou muito melhor do que os amigos de John que o abandonaram, antes que eu pudesse fazer outra viagem até lá, o telefone tocou. Era Mary.
John está morto – ela disse.
Não lembro o que respondi. Não deve ter sido nada muito bom. Me senti vazio. Acho que disse alguma coisa como, melhor assim. Você está bem?
Idiota, idiota.
Anotei o local, a hora e o dia do enterro.
Viver, morrer, ser enterrado. Aqueles que sobrevivem trocam o óleo, se lubrificam. Trepam, talvez. Dormem. Pedem por ovos mexidos, ovos cozidos, ovos moles...
Era um dia quente, encontramos a igreja, quase atrasados, a Pacific Coast Highway tinha sido bloqueada e nos vimos presos num enorme engarrafamento e a única maneira que descobri para chegar até a igreja foi seguir um carro funerário, que se revelou o carro certo.
A família estava lá e também uns poucos amigos. Me perguntaram se eu não queria fazer o discurso fúnebre, mas preferi recusar, sabedor de que não conseguiria conter as lágrimas e que aquilo faria com que todos se sentissem ainda piores. Vi Ben Pheasants por lá. Ben tinha escrito ótimos artigos sobre Bante, um dos quais saíra no LA Times. Tínhamos sido camaradas certa época. Mas acabei avacalhando com ele num poema.
Boa parte de nós começou a se dirigir para os automóveis. Alta segurou minha mão. Mary permaneceu na cadeira. Ao nos afastarmos, avistei o filho de John, Harry.
Vá pegá-los, Hank! – ele disse.
Certo, Harry...
Então, depois de dizer isso, me senti muito egoísta, mas era tarde demais. Eu sabia o que ele queria dizer, melhor, talvez eu soubesse o que ele queria dizer: seu pai, John Bante, havia me emprestado um jeito de fazer as coisas...
E isso era tudo, tudo o que realmente importava.
Eu havia conhecido meu ídolo. Pouquíssimas pessoas conseguem fazer isso de verdade.
Charles Bukowski, in Pedaços de um caderno manchado de vinho

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