Fotograma de Vidas Secas, filme de Nélson Pereira dos Santos
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os
infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.
Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do
rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma
sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da
catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o
filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano
sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao
cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra
Baleia iam atrás.
Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se.
O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.
- Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da
faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se,
fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se
levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado,
praguejando baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso
salpicado de manchas brancas que eram ossadas.
O voo negro dos urubus fazia círculos altos em
redor de bichos moribundos.
- Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo.
Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca
aparecia-lhe como um fato necessário - e a obstinação da criança irritava-o.
Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o
vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.
Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e
seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que
escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a
ideia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas,
cocou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinhá Vitória
estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons
guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no
cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos
encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano
teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a
espingarda a Sinhá Vitoria, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os
bracinhos que lhe caiam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinhá
Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os
juazeiros invisíveis.
E a
viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.
Trecho inicial do capítulo I, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos
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