Um
clarão vermelho cresceu, vindo do Oriente, e os passarinhos cantavam
e chilreavam alegremente.
— Olha
— disse Joad. — Ali adiante, tá vendo? É o poço da casa do tio
John. Ainda não posso ver o moinho de vento, mas aquele ali é o
poço dele, na certa. — Ele acelerou o passo. — Será que estão
todos lá?. — Podia-se ver a borda do poço no topo de uma
elevação. Quase correndo, Joad levantou uma nuvem de poeira à
altura dos joelhos. — Será que a minha mãe... — Eles viam,
agora, a cegonha do poço tosco, e a casa, uma pequena construção,
parecida com um caixote, sem pintura, e o celeiro de teto baixo,
armado rudemente. Fumaça escapava da estreita chaminé da casa. No
terreiro havia uma confusão de objetos: peças de mobiliário
amontoadas, as hélices e o motor de um moinho de vento, estrados de
camas, mesas, cadeiras. — Deus do céu, eles tão pra ir embora! —
exclamou Joad.
Um
caminhão estacionava também em frente à casa, um caminhão de
bordas altas, porém muito estranho, porque a frente era de um sedã,
cuja carroceria fora substituída por uma de caminhão. E assim que
se aproximavam mais, os dois homens podiam ouvir marteladas vindas do
terreiro, e quando o sol surgiu deslumbrante no horizonte, iluminando
o caminhão, puderam ver um homem e um martelo que baixava e
levantava em suas mãos. E o sol ofuscante batia agora nas janelas da
casa, refletindo-se nos batentes. Duas galinhas ciscavam o chão e
suas penas vermelhas refletiam os raios solares.
— Não
dê nenhum grito — disse Joad. — Vamos nos arrastar até lá.
E
foi andando tão depressa que levantava poeira até a altura de sua
cintura. Assim chegou à extremidade do algodoal. Encontravam-se
agora à beira do terreiro, de chão duro, batido e brilhante, com
alguns tocos de grama cobertos de pó. Joad afrouxou o passo, como se
tivesse medo de avançar. O pregador, notando sua atitude, acertou o
passo com ele. Joad continuou lentamente, e contornou o caminhão.
Era um Hudson Super-Six, sedã, cujo topo fora cortado ao meio. O
velho Tom Joad estava na carroceria do caminhão, batendo pregos do
lado do veículo. Seu rosto coberto de barba grisalha estava
debruçado sobre o trabalho e seus dentes apertavam um punhado de
pregos. Tirou, agora, um prego da boca, fazendo o martelo trovejar
sobre ele. Da casa vinha o som do bater da tampa do fogão e o choro
de uma criança. Joad encostou-se no caminhão. E seu pai olhou-o e
não o viu. Pegou outro prego e bateu-o na madeira. Um bando de
pombos ergueu voo da borda do poço, esvoaçou e voltou a pousar no
poço; pombos brancos, azuis e cinzentos, com asas da cor do
arco-íris.
Joad
segurou a borda do caminhão com os dedos convulsos; olhou o homem
grisalho, agora envelhecendo, instalado na carroceria do caminhão.
Passando a língua nos lábios ressequidos, balbuciou:
— Meu
pai.
— Que
é que ocê quer? — grunhiu o velho Tom Joad, por entre os dentes
que seguravam os pregos. Usava um chapéu preto, sujo e amarrotado e
uma camisa azul de trabalho, sem colarinho, sobre a qual ostentava um
colete de botões ausentes; suas calças de algodão eram seguras por
um largo cinto de couro, com uma enorme fivela de metal, tudo polido
por longos anos de uso; e suas botinas estavam rachadas, de solas
inchadas e deformadas por anos de sol, de umidade e de poeira. As
mangas da camisa, ele as tinha arregaçadas até os antebraços, e
mantinham-se presas pelos músculos salientes e poderosos. O ventre e
as nádegas do velho eram magros, e as pernas curtas, grossas,
fortes. Suas faces, emolduradas por uma barba pintada de preto e
branco, angulavam-se em um queixo voluntarioso, um queixo
proeminente, acentuado pela barba hirsuta, menos grisalha ali. Sobre
os salientes ossos das faces, a pele era morena, queimada do sol, e
coberta de vincos profundos ao redor dos olhos, de tanto que estes
piscaram. Tinha os olhos castanhos, cor de café, e ele impelia a
cabeça para a frente a cada vez que tinha que examinar bem alguma
coisa, porquanto aqueles olhos escuros e brilhantes estavam
enfraquecendo. Seus lábios, que mantinham seguros os pregos, eram
delgados e vermelhos.
O
velho levantou o martelo, pronto para outra pancada e deu uma
olhadela a Tom, por cima do caminhão, uma olhadela aborrecida por
ter sido interrompido. E depois seu queixo deslocou-se para a frente
e seus olhos encararam o rosto de Tom e então, gradualmente, seu
cérebro foi compreendendo aquilo que os olhos enxergavam. O martelo
pousou devagar e os dedos da mão esquerda tiraram todos os pregos da
boca. E o velho falou, admirado, hesitante, como se ainda não
compreendesse tudo:
— Mas
é o Tommy...
E,
logo, como que querendo assegurar uma coisa a si próprio:
— O
Tommy voltou!
A
boca se lhe abriu novamente e um lampejo de temor surgiu em seus
olhos.
— Tommy
— disse com suavidade —, cê não fugiu, não foi? Não tem que
se esconder? — E ficou à espera da resposta, ansiosamente.
— Não
— disse Tom. — Eu fui perdoado. Liberdade condicional. Tô com
papéis, tudo em ordem. — Agarrou a borda do caminhão e olhou para
cima.
O
velho Tom Joad depositou o martelo sobre o piso da carroceria e meteu
os pregos no bolso. Passou as pernas pela borda do caminhão e
deixou-se cair com agilidade no chão, mas, tão logo se viu ao lado
do filho, ficou embaraçado. Tom seguiu-o.
— Tommy
— disse o velho —, nós vamo pra Califórnia. Mas a gente ia te
escrever uma carta antes. — E falou, ainda incrédulo: — Cê
voltou, Tommy. Então, cê pode ir com a gente. Cê pode vir!
O
estampido de uma tampa de cafeteira surgiu da casa. O velho olhou por
cima dos ombros.
— Vamo
fazer uma surpresa pra eles — disse, e seus olhos brilharam de
excitação. — Tua mãe teve um pressentimento, ela diss’que não
ia te ver mais. Ficou com aquele olhar parado dos mortos. Não quis
ir pra Califórnia, porque diss’que aí não te ia ver nunca mais.
— Uma tampa de cafeteira fez outro estrondo na casa. — Ela vai
ter uma surpresa! — falou o velho. — Vamo entrar como se ocê
nunca tivesse ido embora daqui. Vamo ver o que tua mãe vai dizer. —
Finalmente tocou no ombro do filho, com timidez, retirando a mão em
seguida. Olhou para Jim Casy.
— O
senhor se lembra do reverendo, não se lembra, pai? Ele veio comigo —
disse Tom.
— Teve
na cadeia também?
— Não.
Encontrei ele na estrada. Tava andando sozinho por aí.
O
velho apertou gravemente as mãos do pregador.
— Seja
bem-vindo, reverendo — disse.
—
Gostei muito de vir aqui — falou Casy.
— É bom a gente ver quando um filho retorna à casa. É uma coisa
boa.
— À
casa... — falou o velho.
— Sim,
isto é, junto à família — emendou o pregador rapidamente. — A
gente esteve na outra casa a noite passada.
O
queixo do velho avançou e ele olhou estrada afora por um instante.
Depois virou-se para Tom.
— Como
é que a gente vai fazer? — começou, excitado... — Talvez seja
melhor eu entrar primeiro e dizer assim: olha, aqui tem uns
camaradas; pediram qualquer coisa pra comer. Ou então cê entra e
fica lá até ela reconhecer ocê. Como é que vai ser melhor, hein?
— E suas faces refletiam intensa emoção.
— É
melhor a gente evitar um choque — disse Tom. — Ela pode ficar
mal.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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