Justinho
Salomão era ratazanado pela dúvida sem método. O homem sofria de
ser marido, lhe pesavam as frias sombras da desconfiança. A mulher,
Dona Acera, é linda de fazer crescer bocas, águas e noites.
Devorado pelo ciúme, Justinho emagrecia a pontos de tutano.
Lastimagro, cancromido, ele para se enxergar precisava procurar-se
por todo o espelho. Justinho fazia comichão às pulgas. Um dia, o
padre o avisou à saída da missa: — Seja prestável na atenção,
Justinho: sua alma é como um fumo que não tem lugar onde caiba.
Raios
picassem o padre que nunca falava direito. O que o sacerdote sabia
era do domínio incomum: Acera era demasiado mulher para esposa.
Justinho suspeitava mais dos argumentos que dos factos. Seria a
esposa mais desleal que um segredo? A resposta era sombra sem luz nem
objeto. Em véspera de viagem, a suspeição do marido se agravava.
Desta vez, um longo serviço de visitações o vai obrigar a
geográfica ausência. Acera recebe, tristonha, a notícia: —
Quanto tempo você me vai sozinhar?”
Um
mês. A mulher contorce o bâton, abana as mechas. Até uma lágrima
lhe crocodileja a pálpebra. O marido ainda mais se aflige perante
tanto inconsolo. Será verdade ou conveniência de fingimento? Quem,
tão novo, guelra tão ensanguentada, pode se aguentar em guardos de
fidelidade? Na véspera de partir, o marido se decidiu certificar em
garantia de lealdade. Primeiro se dirigiu à Igreja e solicitou
socorro do padre português. O religioso torce as mãos, reticente e,
como era hábito, barateou filosofia:
— Bem,
não sei. Para cruzar as pernas é preciso que haja duas...
— Duas
quê?
— Duas
pernas, ora essa.
E
prosseguiu divaguando, água em líquidos carreiros. Justinho
esperava que o sacerdote o tranquilizasse. Lhe dissesse, por exemplo:
vai em paz, você está bem casado, mais anelado que Saturno. Mas
não, o padre ondulava a testa de suposições.
— Não
sei, não. Quem mais espreita não é o próprio sol?
—
Explique-se
melhor, senhor padre.
— Quer
que seja mais claro? Me responda, então: onde o chão está mais
limpo não é em casa de mortos?”
Justinho
não respondeu. Voltou costas e saiu da igreja. Ainda se afastava e a
voz irada do padre se faz ouvir: — Já sei para onde vais,
criaturazita. Vais ter com o feiticeiro! Mas verás o que os meus
poderes, aliás os poderes divinos, irão fazer com esse bruxo
tropical!”
Um
arrepio ainda atravessou Justinho. Mas ele não toldou passo no
caminho para o feiticeiro e pediu que lhe assegurasse. Heresia bater
nos ambos lados da porta? Se um mortal tem mais que um deus-pai não
pode ter mais que uma crença?
— Isso
não posso. Vontade de mulher está acima dos meus poderes. Posso,
sim, destinar castigo nos abusadores.
— E
como?
—
Hei-de
tratar sua casa.
E
foi executado o tratamento: uma pequena cabaça à entrada da
residência de madeira e zinco. Desrespeitoso que entrasse haveria de
sofrer muitas consequências. O marido ainda tem acanhamento na
consciência:
—
Eles...
eles irão morrer?”
O
feiticeiro ri-se. O que iria suceder eram inchaços e gases, tudo
inflando as entranhas do culposo intrometedor. No final dos serviços
e depois de saldadas as contas, o feiticeiro hesita no momento da
despedida:
— Você,
antes de mim, consultou o senhor padre? E ele o que disse de mim?”
Justinho
subiu as omoplatas, fosse um assunto superior a suas competências. O
feiticeiro virou costas e se afasta, enquanto comenta:
— Esse
padre ainda vai chorar como a galinha. Conhece a história da galinha
que comeu o colar das missangas só para a outra galinha não usar?”
Passaram-se
dias e Justinho lá partiu. A viagem demora mais que ele pretende.
Quando regressa, a mulher está à espera dele, à entrada. Vestido
do gosto dele, penteada a presente, corpo todo na conveniência do
marido. Até o botão cimeiro está desempregado, distraído sobre o
decote. Acera, toda ela, está às ordens da saudade dele. Se
engolfinham, enredando pernas nos suspiros, confundindo lábios e
suores, vidas e corpos.
Cumpridos
os compridos amores Justinho se estira na cama, consolado. Fecha os
olhos, menino após o seio. Depois, olha para cima e é fulminado por
uma visão: dois homens flutuam de encontro ao tecto. Estão
redondos, insuflados como balões.
—
Mulher
quem é aquilo?
— Que
aquilo?”
Levanta-se
em gesto de lâmina e se espanta ainda mais ao reconhecer os
desditosos ditos. E quem eram? O padre e o feiticeiro. Esses mesmos a
que Justinho confiara a guarda de sua esposa. Esses mesmos estavam
ali perspregados no teto.
—
Vocês,
logo vocês?
—
Marido,
está falar com quem?”
Gaguejadiço
o marido aponta o teto. A mulher acredita que ele está em ataque de
religiosidade, aspirando proximidades com o céu. Justinho
insanou-se, epilétrico?
Acera
ainda correu atrás do tresloucado marido. Mas o homem, de venta
peluda, se eclipsou pelo escuro. Nem demorou: voltou com testemunhas.
Fez introduzir uns tantos no quarto e apontou os autores do
flagrante. Os outros ficaram, parvos da cara, sem nada vislumbrarem.
Só Justinho via os voáveis amantes de sua mulher. E lhe explicam o
padre e o feiticeiro não são possíveis ali Eles se ausentaram em
breve excursão à cidade. Todos os viram partir, todos lhes acenaram
à saída do machimbombo.
Os
vizinhos lhe asseguram os bons comportamentos de Acera. Despedem-se,
cuidando de o seguir, doente que estava o viajante. Dava até azar
ter um desvairado daqueles no lugar. Mesmo o enfermeiro reformado lhe
trouxe uns comprimidos de arrefecer o sangue. Justinho aceitou ficar
estendido, a apurar descansos. Dava forma à cabeça, ajustava o
pensamento à existência.
E
todos e tanto insistiram que ele deixou de ver gente suspensa no
tecto. Aos poucos se libertou das visões, manufaturas de suas
ciumeiras. Noites há em que, de sobressalto, se levanta. Escuta
risos. O padre e o feiticeiro se divertem à sua custa? Escuta
melhor: não é gargalhada, é um pranto, um pedido de socorro.
Incapazes de descer, os homens aprisionados no tecto lhe pedem uma
aguinha, migalha de entreteter fome e sede. Os pobres já são só ar
e osso.
A
voz de Acera o traz à realidade: venha marido, se deite. Se acalme.
Não quer dormir comigo? Durma em mim, então. Não me quer
atravessar? Me use de travesseiro. Isso, descanse, meu amor. E o
tempo passava, compondo semana e mais semana. Justinho não melhora.
Mais e mais escuta as lamentações dos dois que agonizam dentro das
suas paredes.
Até
que, uma noite, ele acordou estremunhado. Não eram já os gemidos
dos moribundos mas uma estrangeira acalmia. Olhou por entre o escuro
e viu Acera vagueando, o pé pedindo licença ao silêncio. O marido
nem se mexeu, desejoso de decifrar a misteriosa deambulação da
mulher. Então ele viu que Acera subia para um banco e, com um
cordel, amarrava o padre e o feiticeiro pela cintura. E assim, atados
como balões, ela os transportou para fora de casa. No quintal, Acera
limpou no rosto do padre uma lágrima e beijou a face do feiticeiro.
Depois, largou os cordéis e os dois insufláveis começaram a subir
pelos ares, atravessando nuvens e extinguindo-se no céu e nas
pupilas espantadas de Justinho Salomão.
Nessa
noite, os habitantes da vila assistiram à lua se obscurecer naquilo
que viria a ser um derradeiro e permanente eclipse.
Mia
Couto, in Contos do nascer da Terra
Nenhum comentário:
Postar um comentário