domingo, 28 de agosto de 2016

História de pescador

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O velho era eu; o mar, o nosso; mas a novela é bem menor que a de Hemingway.
Na véspera ouvíramos uma notícia espantosa: um marlin fora visto na Praia Azedinha. Não contarei onde fica a Azedinha; quem sabe, sabe, quem não sabe procure no mapa; não achará, e a nossa prainha continuará como é, pequena e doce, escondida do mundo. A notícia era absurda: os marlins costumam passar a muitas milhas da costa, assim mesmo só quando tem iate de gente bem lá, como o Sr. Raymundo Castro Maya, o Sr. Betty Faria, por exemplo. Pois uma senhora o viu no rasinho, junto da pedra. As senhoras veem muita coisa no mar e no ar, que não há; mas Manuel também viu, e Manuel é pescador de seu ofício, e quando lhe mostramos a fotografia de um marlin disse: “Era esse mesmo.”
Não acreditamos — mas passamos a manhã inteira no barco, para um lado e outro. Fomos até a Ilha d’Ancora; de lá inda botamos proa para leste muito tempo, até chegar à água azul, e nada. Matamos uma cavala, um bonito, dois flaminguetes, pescamos de fundo e de corrico, voltamos sem esperança, de repente vimos uma coisa preta no mar. Que monstro do mar seria? Era grande o bicho dono daquela nadadeira, talvez um enorme cação; chegamos lá, era um peixe imenso e estranho que eu nunca tinha visto, e Zé Carlos diagnosticou ser peixe-lua, com uma cabeça enorme e um corpo curto, e Manuel confirmou: “Lá fora, no Mar Novo, eles tratam de rolão.” O bicho rolava sobre si mesmo, na verdade, perto da laje da Emerência.
Na volta eu peguei o caniço menor com linha de 9 libras, quem sabe que naquela laje perto de terra eu não matava uma enchovinha distraída? Botei o menor corocoxô de penas, passamos rente à laje do Criminoso, senti um puxão forte. Dei linha. Zé Carlos me orientava aos berros, Manuel achava que o anzol tinha é pegado na pedra, eu no fundo do meu coração achei que era o marlin. Não era, como vereis. Só ficamos sabendo o que era no fim de meia hora, na primeira vez que o bicho consentiu em vir à tona: um olho-de-boi que tinha seus vinte e cinco quilos; no mínimo vinte, isso nem tem dúvida, na pior hipótese deixo por dezoito; mas sei que estou fazendo uma injustiça.
Era grande e forte; logo disparou para o fundo, eu rodava a carretilha para um lado, ele puxava a linha para o outro; no que ele cansava um pouco, eu fazia força, ele vinha vindo a contragosto como um burro empacado, depois ganhava distância outra vez.
Tinha uma marca amarela na linha, parecia que lá do fundo ele estava vendo aquela marca. Quando chegava nela, e a marca ia sendo enrolada, ele disparava novamente. Meu braço esquerdo já estava doído de aguentar a iba na cortiça, o polegar da mão direita ferido no molinete, eu suava litros.
Agora vem...” Eu sentia que ele tinha desistido no momento de se entocar numa pedra, estava mais perto da flor d’água, porém muito longe. “Está velando”, dizia o Manuel; mas afundava outra vez, eu travava a linha quase toda, baixava o caniço para folgar um instante, puxava, ele ganhava mais cinco, dez braças para o fundo. Duas vezes Manuel chegou a pegar o bicheiro para fincar no animal, que sumia novamente. Meu polegar estava em carne viva, eu tinha de pegar a manivela com os outros dedos contra a palma da mão; dava vontade de desistir, mais de uma hora e quinze de briga, meu braço tenso tremia, eu tinha de passar a mão na testa para afastar o suor que escorria para os olhos, estava praticamente exausto de músculos e de nervos, tive de apelar para o caráter — eu não podia ter menos caráter que aquele miserável olho-de-boi que no Rio eles chamam de pintagola e no Nordeste eles tratam de arabaiana!
Determinei que ele não havia de me partir a linha; aproveitava a mínima folga para puxá-lo. De uma vez que veio à tona ele entendeu de se meter debaixo do barco; agora ele surge à popa, dá uma súbita guinada para boreste, volta... Estou de pé, o cabo do caniço fincado na barriga, suando, fazendo força, Manuel ergue o bicheiro...
Acabou a novela: Zé Carlos fizera a hélice rodar, o arabaiana viu tudo, deu uma volta à ré, afundou, andou em roda, a hélice pegou a linha e partiu, adeus, olho-de-boi, meu recorde internacional de linha de 9 libras, para sempre adeus! Ficaste por esse mar de Deus com meu corocoxô de penas, meu anzol, uma quina amarela e umas braças de linha, adeus!
Rubem Alves, in Ai de ti, Copacabana

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